Artigo Luiz S?rgio Henriques
1964: Uma pedagogia interrompida
*Luiz S?rgio Henriques
31/03/04
(As fotos deste artigo s?o ilustrativas)
Deste ponto de vista, o mais grave numa ditadura ? a ruptura desta rela??o pedag?gica. Os mais experientes, punidos pela derrota, perdem o contato direto com quem chega ? vida adulta. E quem come?a a vida em tempos de autoritarismo v?-se diante de um terreno minado: ou adere ? situa??o estabelecida mais ou menos oportunisticamente, ou se rebela com maior ou menor grau de consci?ncia. E os danos s?o quase t?o graves num caso e no outro. Os oportunistas correm um risco humano alt?ssimo, que nem ? preciso descrever. E os rebeldes, s? pelo fato de serem rebeldes e de lutarem contra uma ditadura, n?o garantem para si, automaticamente, personalidades democr?ticas nem fazem necessariamente a pol?tica mais razo?vel.
Este ? um drama t?pico dos tempos de chumbo: como no poema de Brecht, quem luta pela amizade entre os homens nem sempre tem tempo, ou condi?es, de ser am?vel. Uma ditadura deforma a todos, at? aqueles que, em princ?pio acertadamente, a combatem.
Na verdade, sob qualquer aspecto, a luta armada dos anos 60 e 70 era
absolutamente invi?vel e, com todo o respeito pelo sacrif?cio imposto a
muitos, talvez seja adequado v?-la, desencantadamente, como um dos efeitos
da pedagogia interrompida em 1964. O saldo foi tr?gico: perdemos gente capaz
de trabalhar muito, e de modo muito produtivo, pelas melhores causas do
nosso pa?s e do nosso povo. Nos anos de ferro e fogo, foi custoso retomar o curso da pol?tica, da
participa??o no partido "consentido" e nos sindicatos. Atuar no ent?o
partido de frente - dizia-se equivocadamente - era "legitimar" os militares
no poder. N?o raro, v?amos esta atividade reduzida aos nossos "grandes
velhos" - personalidades de trajet?ria densa, de diferentes orienta?es e
escolhas de vida, mas de firm?ssima implanta??o na hist?ria da Rep?blica:
gente do calibre de Ulysses Guimar?es, Tancredo Neves, Alceu de Amoroso Lima
ou Barbosa Lima Sobrinho. Na esquerda, desde os tempos da Frente Ampla e at? meados dos anos 70, s? os
comunistas do PCB trilhavam invariavelmente este curso, pagando, ali?s, o
pre?o da acusa??o renitente de "reformismo" ou "capitula??o", dirigida pelos
grupos da extrema-esquerda adeptos da ilus?o armada. Assim como pagariam,
posteriormente, o dur?ssimo tributo cobrado pela repress?o, na forma do
assassinato deliberado de dirigentes como Luiz In?cio Maranh?o, Orlando
Bonfim, Davi Capistrano, entre v?rios outros. Ao que se sabe, a liquida??o
f?sica dos comunistas passou a ser, inclusive, um dos requisitos da
distens?o lenta, segura e gradual, como forma de prevenir uma poss?vel
recupera??o vigorosa da velha legenda ap?s o regime militar, como tinha
acontecido pouco antes com o colapso do salazarismo em Portugal. Era natural que, nas novas condi?es da clandestinidade do p?s-64, estes
velhos comunistas parecessem, cada vez mais, n?o falar a linguagem dos
jovens ou, pelo menos, da maioria dos que se interessavam pela vida p?blica
e de algum modo agiam politicamente. No entanto, faziam um movimento correto
sob todos os pontos de vista e at? bastante rico de possibilidades te?ricas:
em termos simples, aliavam-se aos democratas e aos liberais para combaterem
a ditadura. ? sua maneira, com a linguagem de comunistas da III
Internacional, com as d?vidas e preocupa?es herdadas do colapso do
stalinismo em 1956, faziam pol?tica de verdade, dura, cotidiana,
clandestina, mas com dimens?o hist?rica e voca??o hegem?nica. A prosa das
suas vidas e do seu tipo de pol?tica - na apar?ncia nada her?ica - podia
eventualmente brilhar como poesia, como no "Rasga Cora??o", do Vianinha, ou no
"Eles n?o usam blacktie", de Guarnieri e Hirszman. Mas o importante ? que, sem
pegar em armas, era grande pol?tica, capaz de prever nos tra?os essenciais o
que viria a seguir: a luta pela Constituinte e o estabelecimento, entre n?s,
de um regime republicano com amplas liberdades. A nova esquerda que sucedeu ao PCB nasceu em pol?mica com a id?ia de frente,
aferrada, muitas vezes rigidamente, ? id?ia de cis?o, de autonomia dos
"trabalhadores", entendidos como um bloco social que, em estado de natureza,
chicoteava e expulsava do Templo os trezentos picaretas. Entre Tancredo e
Maluf, n?o viu motivos para escolher, preferindo preservar a pr?pria
identidade e omitir-se, "revolucionariamente", num contexto que decidia
entre a redemocratiza??o ou a reprodu??o do regime autorit?rio em trajes
civis (e esfarrapados de corrup??o caricata). Alguns anos depois, a
extraordin?ria dificuldade para assinar e homologar a Carta de 1988 iria
sugerir uma esp?cie de mal-estar subjetivo diante da estrutura institucional
de uma rep?blica democr?tica, ainda que, objetivamente, aquela esquerda
fosse um dos pilares do novo pa?s que surgia: era como se fosse melhor um
capitalismo politicamente tosco, n?o democr?tico, e por isso mesmo alvo
ideal de uma estrat?gia ? moda bolchevique. E talvez n?o casualmente, uma
vez no poder, esta esquerda "social", avessa ao mundo maquiav?lico da
pol?tica, teve de abandonar apressadamente suas veleidades rupturistas,
enquanto caminhava atrapalhadamente no sentido oposto, o da ado??o
subalterna do programa advers?rio. De resto, n?o seria a primeira vez que a ortodoxia doutrin?ria e a vol?pia
desorientada de ruptura se mostrariam n?o como atitudes contr?rias ?
subalternidade, mas como sua v?spera, seu pressuposto indispens?vel. E
condenadas - a ortodoxia e a subalternidade - a se reproduzirem
indefinidamente, condicionando-se uma ? outra num ros?rio de acusa?es
violentas, de pesadas recrimina?es de "trai??o", tais como aquelas que
povoaram a hist?ria da esquerda no s?culo XX e, agora, assolam o campo da
"intelligentsia" petista e ex-petista. Pelo menos, e se servir de consolo, j?
sabemos que este c?rculo vicioso s? pode ser rompido restaurando-se a
rela??o pedag?gica pr?pria da vida democr?tica, inclusive entre esta nova
esquerda e o velho comunismo, entre presente e passado, no que este tem de
mais digno de preserva??o. E, entre o que deve ser preservado
(evidentemente, no seu esp?rito e na sua inspira??o ?ltima), est? a pol?tica
comunista de frente democr?tica, amplamente exitosa no p?s-64.
Objetivamente, as condi?es para o restabelecimento desta rela??o pedag?gica
est?o mais claras do que nunca. Resta saber se haver? atores e sujeitos
coletivos capazes de protagoniz?-la com consci?ncia e obstina??o. Podemos
esperar algum tempo por isto, mas n?o indefinidamente. (*) Editor do site "Gramsci e o Brasil", em www.gramsci.org