Artigo Luiz S?rgio Henriques

Por

1964: Uma pedagogia interrompida

*Luiz S?rgio Henriques
31/03/04
(As fotos deste artigo s?o ilustrativas)

A vida na democracia ? um exerc?cio pedag?gico permanente. Embora n?o haja ningu?m investido do papel s? de professor ou s? de aluno - ao contr?rio, como na li??o rosiana, professor ? quem, de repente, aprende! -, em princ?pio cabe ?s velhas gera?es socializar politicamente as mais novas, transmitindo-lhes um legado de id?ias e lutas, enquanto tentam recolher, do contato com os jovens, novas inquieta?es e atitudes.

Deste ponto de vista, o mais grave numa ditadura ? a ruptura desta rela??o pedag?gica. Os mais experientes, punidos pela derrota, perdem o contato direto com quem chega ? vida adulta. E quem come?a a vida em tempos de autoritarismo v?-se diante de um terreno minado: ou adere ? situa??o estabelecida mais ou menos oportunisticamente, ou se rebela com maior ou menor grau de consci?ncia. E os danos s?o quase t?o graves num caso e no outro. Os oportunistas correm um risco humano alt?ssimo, que nem ? preciso descrever. E os rebeldes, s? pelo fato de serem rebeldes e de lutarem contra uma ditadura, n?o garantem para si, automaticamente, personalidades democr?ticas nem fazem necessariamente a pol?tica mais razo?vel.

Este ? um drama t?pico dos tempos de chumbo: como no poema de Brecht, quem luta pela amizade entre os homens nem sempre tem tempo, ou condi?es, de ser am?vel. Uma ditadura deforma a todos, at? aqueles que, em princ?pio acertadamente, a combatem.

O Brasil de 1964 (mas, especialmente, depois de 1968) ? pr?digo em exemplos desse tipo. Uma parte da juventude - generosa, sem d?vida - escolheu enfrentar o regime nos pr?prios termos deste, despeda?ando-se na tortura, na morte e, nos casos mais favor?veis, no ex?lio. Era tal a despropor??o de for?as que a derrota estava dada desde o in?cio. N?o havia sa?da para a luta armada, quer se apresentasse como mera resist?ncia, quer pretendesse indicar uma via qualquer para o socialismo, sob a influ?ncia da ent?o recente revolu??o cubana ou da chinesa, na sua fase extremista da revolu??o cultural e do impag?vel "livrinho vermelho". E mesmo que, raciocinando por absurdo, a vit?ria pelas armas fosse poss?vel, podemos nos perguntar legitimamente que tipo de socialismo teria advindo desta forma militarizada de entender a luta pol?tica.

Na verdade, sob qualquer aspecto, a luta armada dos anos 60 e 70 era absolutamente invi?vel e, com todo o respeito pelo sacrif?cio imposto a muitos, talvez seja adequado v?-la, desencantadamente, como um dos efeitos da pedagogia interrompida em 1964. O saldo foi tr?gico: perdemos gente capaz de trabalhar muito, e de modo muito produtivo, pelas melhores causas do nosso pa?s e do nosso povo.

Nos anos de ferro e fogo, foi custoso retomar o curso da pol?tica, da participa??o no partido "consentido" e nos sindicatos. Atuar no ent?o partido de frente - dizia-se equivocadamente - era "legitimar" os militares no poder. N?o raro, v?amos esta atividade reduzida aos nossos "grandes velhos" - personalidades de trajet?ria densa, de diferentes orienta?es e escolhas de vida, mas de firm?ssima implanta??o na hist?ria da Rep?blica: gente do calibre de Ulysses Guimar?es, Tancredo Neves, Alceu de Amoroso Lima ou Barbosa Lima Sobrinho.

Na esquerda, desde os tempos da Frente Ampla e at? meados dos anos 70, s? os comunistas do PCB trilhavam invariavelmente este curso, pagando, ali?s, o pre?o da acusa??o renitente de "reformismo" ou "capitula??o", dirigida pelos grupos da extrema-esquerda adeptos da ilus?o armada. Assim como pagariam, posteriormente, o dur?ssimo tributo cobrado pela repress?o, na forma do assassinato deliberado de dirigentes como Luiz In?cio Maranh?o, Orlando Bonfim, Davi Capistrano, entre v?rios outros. Ao que se sabe, a liquida??o f?sica dos comunistas passou a ser, inclusive, um dos requisitos da distens?o lenta, segura e gradual, como forma de prevenir uma poss?vel recupera??o vigorosa da velha legenda ap?s o regime militar, como tinha acontecido pouco antes com o colapso do salazarismo em Portugal.

De todo modo, os "velhos" do partid?o traziam em si a marca de uma defici?ncia tremenda, que poucos analistas souberam avaliar corretamente em toda a sua dram?tica extens?o. Mesmo no per?odo constitucional, entre 1947 e 1964, o PCB tinha sido um partido ilegal, ?s vezes alvo direto da repress?o, ?s vezes meramente tolerado, com seus candidatos avulsos apresentados sob a cobertura de variados outros partidos. Pensando bem, aquela n?o era propriamente apenas uma marca negativa do velho partid?o, mas um estigma da democracia brasileira e do seu sistema de partidos: hoje, quando gozamos de um regime in?dito de liberdades, podemos imaginar, com espanto, o que ter? significado esta amputa??o de direitos pol?ticos, que atingia em cheio o mais importante partido de esquerda e, conseq?entemente, as possibilidades de representa??o dos subalternos, dos de baixo.

Era natural que, nas novas condi?es da clandestinidade do p?s-64, estes velhos comunistas parecessem, cada vez mais, n?o falar a linguagem dos jovens ou, pelo menos, da maioria dos que se interessavam pela vida p?blica e de algum modo agiam politicamente. No entanto, faziam um movimento correto sob todos os pontos de vista e at? bastante rico de possibilidades te?ricas: em termos simples, aliavam-se aos democratas e aos liberais para combaterem a ditadura. ? sua maneira, com a linguagem de comunistas da III Internacional, com as d?vidas e preocupa?es herdadas do colapso do stalinismo em 1956, faziam pol?tica de verdade, dura, cotidiana, clandestina, mas com dimens?o hist?rica e voca??o hegem?nica. A prosa das suas vidas e do seu tipo de pol?tica - na apar?ncia nada her?ica - podia eventualmente brilhar como poesia, como no "Rasga Cora??o", do Vianinha, ou no "Eles n?o usam blacktie", de Guarnieri e Hirszman. Mas o importante ? que, sem pegar em armas, era grande pol?tica, capaz de prever nos tra?os essenciais o que viria a seguir: a luta pela Constituinte e o estabelecimento, entre n?s, de um regime republicano com amplas liberdades.

Estas linhas n?o s?o inteiramente nost?lgicas. O partid?o acabou inapelavelmente junto com a experi?ncia sovi?tica, ? qual, apesar da sua ?bvia inser??o nacional, estava umbilicalmente ligado e da qual decorriam limites insuper?veis. Como se sabe, tudo o que existe merece morrer, mas pode-se envelhecer e morrer bem, deixando inclusive um legado proveitoso ou potencialmente proveitoso. E a hist?ria da oposi??o ao regime militar segundo a pol?tica pecebista de ampla coaliz?o, em defesa da democracia dita burguesa (no l?xico da esquerda autorit?ria), ? um desses legados que, incompreensivelmente, ainda se insiste em ignorar ou passar por alto, como nota de p? de p?gina sem maiores conseq??ncias. No entanto, as implica?es s?o muito amplas, pois o exemplo brasileiro confirma uma tend?ncia mais geral: todas as vezes que, na teoria ou na pol?tica, a id?ia comunista se aproximou da id?ia democr?tica, o resultado foi perturbadoramente produtivo, como que a comprovar, reiteradamente, que o comunismo ? mesmo uma "heresia do liberalismo". A perda de conex?o entre um e outro costuma ser catastr?fica para ambos. No nosso caso, esta perda esvazia - mais cedo ou mais tarde - a dimens?o de liberdade que devia ser intr?nseca, mas de fato nem sempre ?, ao projeto de qualquer esquerda.

A nova esquerda que sucedeu ao PCB nasceu em pol?mica com a id?ia de frente, aferrada, muitas vezes rigidamente, ? id?ia de cis?o, de autonomia dos "trabalhadores", entendidos como um bloco social que, em estado de natureza, chicoteava e expulsava do Templo os trezentos picaretas. Entre Tancredo e Maluf, n?o viu motivos para escolher, preferindo preservar a pr?pria identidade e omitir-se, "revolucionariamente", num contexto que decidia entre a redemocratiza??o ou a reprodu??o do regime autorit?rio em trajes civis (e esfarrapados de corrup??o caricata). Alguns anos depois, a extraordin?ria dificuldade para assinar e homologar a Carta de 1988 iria sugerir uma esp?cie de mal-estar subjetivo diante da estrutura institucional de uma rep?blica democr?tica, ainda que, objetivamente, aquela esquerda fosse um dos pilares do novo pa?s que surgia: era como se fosse melhor um capitalismo politicamente tosco, n?o democr?tico, e por isso mesmo alvo ideal de uma estrat?gia ? moda bolchevique. E talvez n?o casualmente, uma vez no poder, esta esquerda "social", avessa ao mundo maquiav?lico da pol?tica, teve de abandonar apressadamente suas veleidades rupturistas, enquanto caminhava atrapalhadamente no sentido oposto, o da ado??o subalterna do programa advers?rio.

Um dos diagn?sticos dessa trajet?ria em ziguezague aponta uma car?ncia de reflex?o madura sobre as formas da pol?tica moderna. Havia muito de voluntarismo, e de recusa da media??o pol?tica, nos componentes b?sicos da nova esquerda hegem?nica, no seu sindicalismo de orienta??o pr?-pol?tica ou antipol?tica, nas correntes de extrema-esquerda egressas da luta armada e no catolicismo social radicalizado. Como resultado, uma autopercep??o messi?nica, salvacionista, refundadora de tudo, vingadora intransigente de quinhentos anos de desmandos dos poderosos e mis?rias dos dominados. Preto no branco, o bem contra o mal, a salva??o contra o pecado. Nos ?ureos tempos, uma UDN de macac?o ou de soci?logos, para usar outra met?fora neste nosso tempo de met?foras. Ora, nada mais avesso ao tempo longo da democracia, ?s suas media?es complexas, ? progressiva socializa??o da pol?tica, ? mobiliza??o de compet?ncias e de um "progresso intelectual de massas" - todos estes, elementos para governar bem e para estar presente na sociedade de modo l?cido, requisitos indispens?veis para uma estrat?gia reformista, gradual e, se quiserem, para um reformismo forte, como deve ser e como precisamos.

De resto, n?o seria a primeira vez que a ortodoxia doutrin?ria e a vol?pia desorientada de ruptura se mostrariam n?o como atitudes contr?rias ? subalternidade, mas como sua v?spera, seu pressuposto indispens?vel. E condenadas - a ortodoxia e a subalternidade - a se reproduzirem indefinidamente, condicionando-se uma ? outra num ros?rio de acusa?es violentas, de pesadas recrimina?es de "trai??o", tais como aquelas que povoaram a hist?ria da esquerda no s?culo XX e, agora, assolam o campo da "intelligentsia" petista e ex-petista. Pelo menos, e se servir de consolo, j? sabemos que este c?rculo vicioso s? pode ser rompido restaurando-se a rela??o pedag?gica pr?pria da vida democr?tica, inclusive entre esta nova esquerda e o velho comunismo, entre presente e passado, no que este tem de mais digno de preserva??o. E, entre o que deve ser preservado (evidentemente, no seu esp?rito e na sua inspira??o ?ltima), est? a pol?tica comunista de frente democr?tica, amplamente exitosa no p?s-64. Objetivamente, as condi?es para o restabelecimento desta rela??o pedag?gica est?o mais claras do que nunca. Resta saber se haver? atores e sujeitos coletivos capazes de protagoniz?-la com consci?ncia e obstina??o. Podemos esperar algum tempo por isto, mas n?o indefinidamente.

(*) Editor do site "Gramsci e o Brasil", em www.gramsci.org

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