A esperança dança na corda bamba

Daniela Aragão Daniela Aragão 13/10/2016

Domingo em fim de tarde, meus amigos após votarem, oferecem-me carona para minha casa. No meio do caminho, estacionam o carro para buscar a filha na casa de uma amiga.  No rádio começa a tocar “O bêbado e a equilibrista”, na voz de Elis Regina. Esta canção tornou-se tão batida quanto “Trem das onze”, “Pra não dizer que não falei das flores”, “Andança”, “Ronda” e “Cidade Maravilhosa”. Talvez, devido à gravidade do instante político, ative-me em cada verso de “O bêbado e a equilibrista”. Desafiador exercício, tentar colocar-se como ouvinte surpresa e inaugural, diante de uma canção que, devido ao excesso de popularidade, tornou-se anódina.

O som do acordeon começa a apontar do fundo e mimetiza a memória longínqua de uma caixinha de música, sem bailarina ou arlequim. O bongô vem chegando devagarinho junto com o violão, e a Pimentinha introduz os primeiros versos.  João Bosco e Aldir Blanc se uniram nesta canção, que se tornou o hino da anistia. Impossível não me lembrar da frequência com que tocava nas rádios e TVs. A imagem eternizada de Elis, com vestido preto de corte sóbrio, cantando parada no centro de um circo sem plateia.

A câmera gira ao redor da cantora, rodeada por cadeiras coloridas e vazias.  “O bêbado e a equilibrista”, tal qual “O que é, o que é” (Gonzaguinha), apesar da força e beleza indiscutível da arquitetura dos versos e sons, tornaram-se composições que perderam seu caráter combativo e transformaram-se em efusivas melôs de festa. Se me faço entender, foram destituídas da carga erótico-política e tornaram-se canções onipresentes nas vozes de cantores de churrascos, bêbados nos botequins em fins de noite, comemorações explosivas de alegria incomensurável nas passagens de ano.  Esvaziaram.

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Ando com minha cabeça já pelas tabelas. Não tenho reclames contra a abertura da obra, ideia defendida por Umberto Eco e depois reestruturada pelo próprio, assustado com a amplitude desenfreada de possibilidades. Há “limites na interpretação”, só assim permito-me não machucar tanto, ao notar que o som das panelas batidas mudou de foco e direção, com os tempos e as vontades: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/

Muda-se o ser, muda-se a confiança/ Todo o mundo é composto de mudança/Tomando sempre novas qualidades/Continuamente vemos novidades,/Diferentes em tudo da esperança:/Do mal ficam as mágoas na lembrança,/E do bem (se algum houve) as saudades”.

A atemporalidade das grandes obras é fato a ser dignificado sempre, e que me conforte a força inextinguível dos criadores de ontem, hoje e amanhã: Camões, Chico Buarque de Hollanda, Gonzaguinha. Volto a ouvir o disco de capa vermelha, de Chico, que contém canções históricas, que celebravam a esperança da abertura política de um Brasil tão massacrado. Pátria esfarrapada, que ansiava por tempos mais justos.

“Vai passar” (Chico Buarque e Francis Hime), samba quase epopeia, em sua longa estrutura narrativa é para ser retomado em todos os tempos críticos, cujos “podres poderes” ameaçam enlamaçar, enfumaçar e emparedar todos os sonhos. O tempo e seu eterno retorno, às vezes, inexplicavelmente breve, prossegue em seu ininterrupto movimento. “Compositor de destinos e tambor de todos os ritmos” ele nos nocauteia quando, ilusoriamente, caminhamos sob areias movediças: “Dormia/A nossa pátria mãe tão distraída/Sem perceber que era subtraída/Em tenebrosas transações”.  

Uma ameaça de alegria foi apenas um susto “E um dia, afinal/tinham direito a uma alegria fugaz/Uma ofegante epidemia/Que se chamava carnaval”. Recolhamos nossas bandeiras vermelhas de sangue, suor e sonho.  

Apagaram o verde da nossa bandeira ainda a tremular, sem o sentido de representação de matas, pois já destroçadas, queimadas e vendidas. Apagaram o azul dos rios e mares, hoje, sujos de lama e de lixo. Apagaram o amarelo do sol, que brilha irradiando o ouro, somente para a mesma parca parcela abominável.

Tentemos conservar, ao menos, as estrelas-artistas, que em tão mínimo número ainda iluminam o nosso país, quase sem cor e esperança, que dança na corda bamba. 

Daniela Aragão é Doutora em Literatura Brasileira pela Puc-Rio e cantora. Desenvolve pesquisas sobre cantores e compositores da música popular brasileira, com artigos publicados em jornais como Suplemento Minas de Belo Horizonte e AcheiUSA. Gravou, em 2005, o CD Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso.

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