Big Charles, o inesquecível Caboclim da lua 

Daniela Aragão Daniela Aragão 17/11/2018

A primeira vez que ouço alguns toques leves na porta da sala, penso tratar-se de audição prolongada de meu sono. Viro a cabeça para outro lado no travesseiro e volto a dormir. Os toques reincidem, agora acompanhados por uma voz doce e peculiarmente grave “- Vem, veinha, tomar o cafezinho que o veinho já fez. Tem pão, manteiga, queijinho e linguiça”. 

Não sei se me irrito ou levanto rapidamente da cama, lavo o rosto, troco de roupa e bato na porta bem ao lado. Big Charles era o vizinho inquieto, sensacional, perturbador, amoroso, criativo, doce, raivoso e musicalíssimo que me acordava quase todas as manhãs.  Em seu  apartamento conjugado, ele distribuía sua ebulição criativa por todos os lados.

Nas paredes, telas encharcadas de cores, ou, segundo Big, “inconclusas invenções”, com imensos rasgos cometidos pelo próprio autor.  No alto de seu estágio de vida sexysagenária, era hora de estraçalhar tudo e recomeçar a todo instante. Todos os segundos, todas as horas, todos os dias, eram sementes de renovação. Urgentes.  Aliás, Big era um veinho  sempre jovem, avant garde em sua pequenez de gigante.

O pequeno grande homem demorou um bom tempo para assumir seus parcos 1,49 m de altura. Como disse o amigo e maestro Sylvio Gomes, “o João Carlos era tão tímido, mas tão tímido, que mal saía do quarto nos seus tempos de juventude, quando morava com suas tias num apartamento em Copacabana”.

Antes que assumisse a persona Big Charles, que o tornou único, descobriu que estatura mignon era apenas um detalhe na grandeza de criadores como Toulouse Lautrec (1,42 m), um de seus ídolos ao lado de Erick Satie, John Coltrane, Tom Jobim e Edson Machado: “Por ser baterista, as pessoas costumam achar que eu fico em casa ouvindo som pesado. Veinha, não sabem que na verdade eu amo é ouvir o Satie”. Com os olhos marejados, abre um caderno e me mostra um desenho de um passarinho que fez na página de um de seus incontáveis diários.

Na época em que éramos vizinhos de porta, por razões de economia de espaço, Big escolhera substituir as grandes telas e a tinta a óleo pelo lápis de cor, papel e xadrez. Certa vez ele fez uma festa com tubinhos de xadrez que lhe presenteei da loja de meu pai. Vermelho, preto, azul, verde, cada cor transformava-se numa invenção instantânea.

Deixo um pequeno quadro composto por Big preencher, absoluto, uma das paredes de minha sala. Trata-se de um desenho abstrato, elaborado com xadrez preto sobre folha de papel ofício. Jamais passa despercebido pelas visitas, que ora dizem que a imagem traduz um peixe, ora fluxos indecifráveis.

Big era experiente em todos os segmentos da vida. Transitava com total desenvoltura por qualquer parada.  Conhecia com a sola de suas pequenininhas sandálias Havaianas o submundo dos moradores de rua, bêbados, maltrapilhos e malandros. Frequentava sessões de audição de  jazz na casa de doutores, era amigo do plebeu e do rei com a mesma verdade.  

Nos conhecemos e tornamo-nos amigos na gravação do CD “Poema e Canção”, do saudoso jornalista e crítico musical João Medeiros Filho. Big participou da arregimentação dos músicos e de quase todas as faixas do disco, tocando bateria. Timming, personalidade e sabedoria era sua tríade máxima. Do enclausuramento no aquário do Estúdio Nave, saía às vezes raivoso e esbaforido, para fazer alguma crítica sobre um andamento errado, um detalhe na levada que poderia ser intensificado ou atenuado. João Medeiros o ouvia com o respeito e cúmplice admiração de amigo-irmão.

Há cerca de um mês recebi um telefonema do saxofonista Breno Mendonça, menino prodígio que conheci na época em que fui crooner na orquestra de jazz da Pró-Música. Quase duas décadas sem ver este músico que bem cedo anunciava um talento promissor. Breno me convida para participar de uma homenagem ao Big Charles, que reunirá no Teatro Carlos Magno, os músicos que com ele trabalharam e foram estimulados na descoberta e desenvolvimento de suas potencialidades.

Big Charles foi acima de tudo uma escola, ensinou muita gente a ouvir, tocar e conhecer músicas e músicos incríveis. Num de nossos últimos encontros, o Veinho arrasou meu coração com uma aula sobre o tema Marília, de Victor Assis Brasil. Numa mão o cigarro, sobre a mesa um copinho de cachaça e na outra mão o vinil envelhecido. Peço para ouvir mais uma vez a canção e o danadinho aproveita o momento e me confessa um segredo: “Véia, quando eu morava no Rio me encontrava sempre com o Victor num bar. Conversávamos muito, mas nunca tive coragem de dizer pra ele que eu era músico”.

Big Charles trazia em si a marca de uma personalidade forte, inquieta e visionária. Passaria um bom tempo a enumerar a quantidade de músicos que por ele foram influenciados, com suas lições de estímulo e coragem. Guardo na memória e hoje dou gargalhadas, ao me recordar de uma apresentação que fiz no pequeno palco do Muzik com ele, Márcio Hallack (piano), Hélio Quirino (contrabaixo). O Veinho não queria me deixar perder o prumo diante do trio que quebrava tudo atrás de mim. Mandando ver, com a intensidade rítmica de suas pequenas mãos a manipular as baquetas,  Big só gritava “Canta Véia, vai com tudo Véia”.

Em seus últimos anos de vida, Big Charles morou numa pequena e aconchegante casa situada no pico do morro, no bairro Retiro. Sem perder os mínimos lastros e estilhaços poéticos do cotidiano, o pequeno grande homem subia a pé o altíssimo morro das Pedras Preciosas e ia saudando os cães e pessoas que passavam pelo caminho. Cachorros aliás eram uma de suas paixões, cuidou da cadela Pirata até seus últimos dias e abrigava, na medida do possível, sempre um vira-lata que por obra do destino suplicasse com as patas em sua porta.

Gostava de cozinhar, mas não negava sua indisfarçável preguiça para assuntos de ordem e limpeza. Preferia utilizar o fogão como objeto descartável a ter que criar embate com produtos de limpeza. Pareciam uma instalação os dois pequeninos fogõezinhos sobre o canto da pia. Obra que seria brevemente desfeita e substituída pelo fogão novinho que estava prestes a chegar.  Big era hábil e talentoso para preparar uma boa comida mineira com feijão, couve, angu, torresmos. As sobremesas chegavam pelas mãos de amigos, que se revezavam no seu amplo agápe de convidados do universo da arte. Tinha gente do cinema, da música, das artes plásticas. Quem chegava era sempre muito bem recebido. 

Sua ânima lírica e iconoclasta criou a tão bela “Ópera dos caboclim da lua”, autorretrato em forma de desenho sonoro: “Caboclim da lua,/ caboclim do céu/ viaja nas estrelas e cai/no meu chapéu/Quando cai a noite, quando cai o dia/Quando cai sua estrela do oriente/Acorda Luzia, sabiá/rasgou o dia/Pintou gavião no meu/quintal, vai lá andorinha/vai/Dá nele com o pau/Moreninha linda/molhada com as lágrimas de Nosso Senhor/Quero teu amor/ Fuiê, fuiô,de fufuia faz fumado”.

Homem original, gauche, à deriva das forças aniquiladoras de qualquer poder que caminhasse na contramão da verdade criativa. Ainda ouço seus desafiadores discos “Retrato de cabeça” e “Ancestrais futuros”. Big Charles aponta caminhos, passeia por abismos, ultrapassa fronteiras.

Quando desço o calçadão da Rua Halfeld, espero ser surpreendida por ele nas imediações a qualquer instante e receber o convite para um café. Às vezes me esqueço de que o Caboclim da lua foi encontrar as estrelas.

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