Asilo do Esquecimento

Ricardo Corr?a Ricardo Corr?a 04/04/06

Imagine uma por??ozinha de tempo. Coisa de um minuto... No futebol ? tempo suficiente para mudar tudo. Em um minuto se ganha ou se perde um t?tulo, encerram-se carreiras, nascem craques. Imagine ent?o o que ? capaz de acontecer em uma por??o grande de tempo... de mais de 50 anos, por exemplo. Tradi?es s?o criadas, mitos s?o desfeitos, craques nascem e morrem.

Visitando o arquivo hist?rico de Juiz de Fora, lendo jornais de ?pocas distantes, dos long?nquos anos 50, passando p?gina a p?gina at? os dias atuais, relembrei parte da hist?ria de tr?s velhinhos famosos em Juiz de Fora. S?mbolos do esporte durante um s?culo inteiro. Amados por v?rias gera?es. Dois deles de 93 anos, e um, mais novo, que est? completando 90.

O primeiro, mais velho, de fei?es avermelhadas, n?o foi o mais famoso, mas dizem, o mais querido dos tr?s irm?os. Ganhou fama cedo, e dominou as competi?es que disputou na juventude. Antes dos 20 anos de idade, era dif?cil para os outros jovens super?-lo. Nasceu e cresceu no mesmo lugar, o Bairro Po?o Rico, onde tinha uma casa pomposa, que deixou-se corroer com o tempo.

O segundo foi sim o mais famoso, e ainda ?. Na verdade ? o que teima em permanecer praticando o esporte para o qual nasceu. De pele meio branca, meio negra, o antigo morador de Santa Terezinha conseguiu fazer amizades por toda a cidade. N?o foi o primeiro a comemorar uma vit?ria, nem o que mais se destacou como jovem. Mas na fase adulta, ningu?m o superou.

Um ca?ula de 90 anos, o terceiro ?, para muitos, um garoto de apartamento. Preconceito por ter nascido e crescido no Centro, em plena Avenida Rio Branco, e com nomes importantes da cidade fazendo parte de sua fam?lia. O garoto prod?gio, que superou os mais velhos com apenas um ano de idade, em 1917, na primeira vez que se realizou uma disputa entre os tr?s nos gramados de Juiz de Fora. Veio sob o signo e a cor da esperan?a. Coloriu de vez a cidade naqueles tempos.

Tr?s senhores distintos, com inf?ncias e vidas distintas. Mas acometidos do mesmo mal. Foram deixados no asilo do esquecimento. H? quem diga, e de fato ? verdade, que eles n?o se cuidaram. Deixaram-se perder por, primeiro, n?o se preparar para os novos tempos. Ah, a velha luta dos idosos com a modernidade! N?o que eles sejam contra, mas precisam se adaptar e, muitas vezes, n?o se aprende t?o f?cil a viver uma nova era, como andar de bicicleta.

O senhor do Po?o Rico perdeu o f?lego. Deixou de praticar o esporte que mais gostava. Desanimou. O do Centro da cidade seguiu o mesmo caminho, logo depois, magoado por ter sido tra?do pelo seu irm?o mais velho, de Santa Terezinha, que aos trancos e barrancos tenta resistir.

O velhinho de vermelho at? tentou voltar. Foi pego pelas armadilhas do mundo moderno. Levou um daqueles "golpes do Jo?o sem bra?o". Desses que alguns aposentados costumam levar na porta do banco. Ofereceram ajuda ao velhinho, ele aceitou. Prometeram lev?-lo para voltar a jogar bola. Sumiram e o velhinho voltou ? solid?o.

O senhor de verde fechou-se em sua casa. Ali?s, uma bela casa ainda hoje. Preocupou-se apenas com os parentes mais pr?ximos. Aqueles que lhe sustentavam. Escondeu de todos uma d?vida que se acumulou e hoje ele n?o tem como pagar. Nem aposentadoria para isso tem. Agora, calmamente tenta voltar a sair de casa. E voltar aos campos. Mas parece ter, com todo esse tempo trancado e sozinho, perdido a coragem de dar mais de um passo. E sair do lugar. H? anos sonha no dia em que vai pisar nos gramados. Mas teme sair sozinho. Quer que lhe busquem em casa e lhe garantam que n?o ter? nenhum risco no caminho.

O velhinho que veste luto quase morreu. Esteve de fato no CTI. Continuou praticando futebol, mas sem orienta??o, sem se precaver. Perdeu a consci?ncia. Hoje n?o decide mais o seu futuro. Terceirizou seus sonhos pra sobreviver. N?o tem plano de sa?de, n?o tem economias para o futuro. Nunca fez um plano de previd?ncia e agora arranjou algu?m para lhe emprestar um dinheiro para a passagem at? os gramados. Sabe que isso ? passageiro, mas n?o sabe sair do lugar. Vive de uma verba p?blica min?scula, como uma aposentadoria, e n?o tem mais a quem pedir cr?dito. Andou com quem n?o devia e perdeu as refer?ncias. Por sorte, ainda tem muitos que o amam e fazem tudo por ele.

Mas a culpa n?o ? s? dos velhinhos, como gostam de dizer por a?. Critic?-los simplesmente ? muito f?cil, mas, repito: eles foram deixados no asilo do esquecimento. Foram abandonados antes de abandonar a esperan?a. Volto a remeter ?s p?ginas de jornais que vi no arquivo hist?rico nos ?ltimos dias. Amareladas como a hist?ria e as camisas dos tr?s velhinhos, mostram claramente que eles foram, aos poucos, sendo substitu?dos por outros senhores de fora. Se antes ocupavam metade dos jornais, e tinham mais import?ncia do que a Copa do Mundo, perderam espa?o. Foram desvalorizados e se desiludiram.

Se os velhinhos n?o se cuidaram, n?s tamb?m n?o cuidamos deles. As administra?es p?blicas n?o deram a eles as condi?es que precisavam para sobreviver. A imprensa n?o se aprofundou em descobrir porque eles estavam em franca decad?ncia. Porque a sa?de deles s? piorou a cada dia. Deixou eles chegarem ? beira da morte e at? hoje n?o faz tanta coisa para mudar. Esqueceu-se de sua fun??o social, de ser tamb?m um servi?o de utilidade p?blica. De que ? sua fun??o lutar para que as coisas daqui continuem valorizadas e n?o caiam no esquecimento.

E os velhinhos continuam a?, esperando que algu?m fa?a alguma coisa. Assim como a administra??o p?blica, a imprensa e a sociedade de um modo geral. Com todos parados, ou andando para tr?s. A sa?de e a expectativa de vida dos senhores s? diminuem. Eles s?o acometidos do mesmo problema dos jornais do arquivo hist?rico: corro?dos pelo tempo, sem preserva??o e sem perspectivas de que suas p?ginas percam as manchas do tempo. Mas n?o ? preciso nem dizer seus nomes para que todos saibam exatamente de quem estamos falando. Ainda s?o conhecidos. At? quando?