As interessantes notações sobre
tradução e tradutibilidade em Gramsci (
CC, v.1, p. 185-90) estão imersas em uma preocupação de renovar o conceito de ideologia vigente na tradição do chamado marxismo da Terceira Internacional, herdeiro da Segunda Internacional. Esta tradição considerava a ideologia como ciência positiva de classe, turvando assim as relações complexas entre teoria do proletariado e filosofia (concepção de mundo), história e polÃtica, povo e intelectuais. O problema da universalidade da ideologia incidia, mais que uma mera tertúlia diletante, sobre uma questão dramática de estratégia revolucionária no perÃodo entreguerras (1919-1939): a ideologia bolchevique, vitoriosa na Revolução Soviética - depois simplificada no exemplo pervertido do
Manual de Bukharin (emblemático do marxismo praticado pela Terceira Internacional) -, tinha conteúdo universal, passÃvel de encontrar uma reverberação e uma evolução orgânica no Ocidente capitalista, ou respondia apenas à s particularidades atrasadas da formação social russa e dos povos do Oriente?
Para o pensador italiano, existe a possibilidade de as experiências históricas importantes - pelo seu grau latente de universalidade - encontrarem similares em outros ambientes culturais, desde que devidamente traduzidas. Dessa maneira, em Gramsci, há sempre a possibilidade de uma determinada linguagem vocabular e cultural encontrar uma tradução em outra - "a linguagem da polÃtica francesa [...] corresponde e pode ser traduzida na linguagem da filosofia clássica alemã" (CC, v. 1, p. 185-8). Ou seja, a revolução filosófica de Kant e Hegel tinha uma reverberação na polÃtica prática dos revolucionários franceses. Citando um verso de Giosuè Carducci, assim expressa Gramsci essa tradução (Revolução Francesa-filosofia clássica alemã): "Emmanuel Kant decapitou Deus; Maximilien Robespierre, o rei".
Vale observar que da possibilidade da tradução advém o problema - de difÃcil resolução - da tradutibilidade de uma linguagem polÃtica, filosófica, estética ou cientÃfica em outra. O problema da tradutibilidade surge em Gramsci (CC, v. 1, p. 185) através de uma sentença de Lenin a propósito do fracasso da revolução no Ocidente após a Revolução Soviética - "Vilitch [Lenin] escreveu ou disse [...] o seguinte: não soubemos ‘traduzirÂ’ nas lÃnguas européias a nossa lÃngua".
Traduzir não significa, portanto, repetir, mas recriar. Em Gramsci, freqüentemente deparamos com traduções e problemas da tradutibilidade histórica: o Renascimento foi um antecedente elitista da Reforma protestante (Erasmo e Lutero), a Reforma protestante foi o ancestral rude da filosofia clássica alemã (Lutero e Hegel), o proletariado da Alemanha unificada foi o portador da filosofia clássica nacional antecedente (Hegel e filosofia da práxis), os jacobinos foram Kant e Hegel, e vice-versa.