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Enrico Berlinguer - 1972-1978

Marco Mondaini - Fevereiro 2007
 

A presente antologia berlingueriana compreende três blocos de textos, correspondentes a três períodos distintos da sua liderança à frente do PCI:

1) 1969/1971 - Berlinguer vice-secretário;

2) 1972/1978 - Berlinguer secretário-geral (1a fase): os anos do "compromisso histórico" e da "solidariedade nacional", bloco que se segue imediatamente abaixo; 

3) 1979/1984 - Berlinguer secretário-geral (2a fase): os anos da "alternativa democrática" e da "renovação da política".

1. O governo de virada democrática. A aliança entre comunistas, socialistas e católicos [1]

Não foi pequeno o legado político deixado por Palmiro Togliatti aos seus sucessores à frente do Partido Comunista Italiano, na década de 1970. Personagem decisivo nas escolhas feitas pelo PCI ao fim da Segunda Guerra Mundial, Togliatti conseguiu levar o partido - depois de vitoriosa a resistência partigiana - para longe de uma linha insurrecional, por intermédio da elaboração de uma estratégia direcionada ao desenvolvimento máximo da democracia em todas as relações socioeconômicas e político-ideológicas existentes no território italiano: a "democracia progressiva".

Na verdade, a guiar Togliatti na defesa dessa nova estratégia encontrava-se o objetivo de destruir por completo as bases materiais e ideais que sustentavam o fascismo, desde a década de 1920. Em outras palavras, para o líder comunista italiano, falecido em 1964, a fim de que fossem cortadas todas as raízes responsáveis pelo surgimento do fascismo, outro caminho não poderia existir senão aquele da instauração da democracia entendida como um processo contínuo de ampliação.

Porém, para que fosse vitoriosa a estratégia da "democracia progressiva", as três grandes correntes político-ideológicas que se encontraram na resistência ao fascismo deveriam estar unidas na luta contra o ressurgimento de todo e qualquer regime análogo àquele liderado por Benito Mussolini. Ou seja, comunistas, socialistas e católicos não poderiam deixar de se aliar com vistas à formação de uma nova Itália.

Quase três décadas após a elaboração desta estratégia unitária, o novo secretário-geral do PCI, Enrico Berlinguer, voltaria a enfatizar a necessidade do reencontro das três grandes correntes populares antifascistas italianas, com vistas à construção de um novo governo - um governo de "virada democrática".

Em um país como a Itália, uma perspectiva nova somente pode ser realizada com a colaboração entre as grandes correntes populares: a comunista, a socialista e a católica. Nesta colaboração, a unidade das esquerdas é condição necessária, mas não suficiente.

A natureza da sociedade e do Estado italiano, sua história, o peso das classes médias, a agudeza das grandes questões sociais, mas também políticas e ideais (a feminina, a camponesa, a meridional), a profundidade das raízes do fascismo, enfim, a grandiosidade mesma dos problemas a resolver e enfrentar impõe uma tal colaboração.
Estamos dispostos a assumir nossas responsabilidades.

Sobre a questão da participação comunista num governo ou numa maioria parlamentar, definimos há muito tempo uma posição de princípio. Em duas hipóteses tal participação é admissível: ou a necessidade de enfrentar um ataque reacionário, que crie uma situação de emergência para a sorte da democracia; ou então a existência de condições que consintam realizar um programa renovador, que tenha o apoio consciente e ativo das grandes massas e que tenda a reforçar a unidade dos trabalhadores e das suas representações políticas e ideais. [...]

A construção de uma alternativa de governo está vinculada ao avanço destas múltiplas relações unitárias: quanto mais se for além da convergência sobre medidas particulares de reforma para se chegar à unidade sobre grandes temas da política nacional, tanto mais será difícil para a Democracia Cristã ocultar suas contradições internas, e da sua crise poderá brotar um deslocamento político de fundo de correntes católicas e seu entendimento com as forças socialistas e comunistas. Este é o mapa da mudança. Este é o modo de incidir sobre a DC. Esta é o caminho para fazer avançar uma alternativa de governo, baseada na colaboração das grandes correntes populares, democráticas, antifascistas.

Nós, comunistas, pretendemos jogar todo o nosso peso e dar toda a nossa contribuição para fazer amadurecer uma tal alternativa de governo. Para que se chegue a isso, é necessário que a unidade de esquerda supere os limites existentes até agora.

Origina-se daí o nosso discurso em relação ao Partido Socialista. Reconhecemos a mudança positiva que se deu na linha do Partido Socialista; e o fazemos com mais força ainda porque sabemos que nossa política unitária, perseguida tenazmente também nos momentos em que a polêmica era mais áspera, foi uma das condições desta mudança.

Não se mostrou realista, porém, a hipótese pela qual o PSI - coligando-se de algum modo com a oposição de esquerda, com os sindicatos, com as massas em luta, mas consideradas freqüentemente como força de pura pressão, e estando em um governo fundado na lógica da discriminação à esquerda - conseguiria impor de maneira gradual e indolor uma superação à esquerda dos governos de centro-esquerda e uma marginalização das forças de direita presentes de maneira tão consistente na DC, no governo, nos aparelhos de poder.

A unidade pela qual trabalhamos não comporta de nenhum modo o ofuscamento das características originais do nosso partido, da sua face verdadeira, da sua função histórica, que é insubstituível. Somos nós mesmos a não querer nos confundir com nenhum outro. Ao mesmo tempo, estamos conscientes de que, em um país como a Itália, não se pode ir adiante no caminho rumo ao progresso, à democracia, à emancipação do trabalho, sem a contribuição autônoma de outros componentes, entre os quais são essenciais o socialista e o católico.

Eis o significado profundo, não tático, do reconhecimento do pluralismo político e ideal que fizemos e repetimos, e que não vale apenas nas condições atuais da Itália, mas também na construção do socialismo no nosso país.

2. A ameaça do extremismo terrorista. A estratégia da vigilância democrática [2]

Em 12 de dezembro de 1969, tem início na Itália uma gigantesca onda de atentados terroristas responsáveis pela irradiação de um sentimento de medo por todas as regiões do território italiano - era a chamada "estratégia da tensão".

Fechando um biênio (1968-1969), em que novos ventos de mudança começaram a soprar com força, capitaneados pelo movimento estudantil e pelo movimento operário, uma bomba explode no Banco Nacional da Agricultura, na praça Fontana, em Milão. São 17 mortos e 88 feridos nesta que seria apenas a primeira de uma série interminável de carnificinas ocorridas na Itália até a década de 1980: a "estação das bombas".

Patrocinados inicialmente por grupos de extrema-direita neofascista, os atentados terroristas rapidamente começariam a ser levados a cabo também por agrupamentos de extrema-esquerda, formados na esteira da radicalização do movimento estudantil. Sintomaticamente, enquanto era realizado o XIII Congresso do Partido Comunista Italiano, chega a notícia de que havia sido encontrado um corpo dilacerado na base de uma torre elétrica de alta tensão localizada em Segrate, próximo a Milão, exatamente a cidade onde transcorria o congresso comunista.

O estupor é geral quando se descobre que aquele corpo despedaçado era do intelectual, empresário e dono de uma das maiores editoras italianas, Giangiacomo Feltrinelli, que, preocupado com a ascensão das ameaças golpistas de extrema-direita, começara a construir uma organização clandestina - os "Grupos de Ação Partigiana". Feltrinelli morrera ao tentar acionar os explosivos numa típica ação terrorista. Nesse contexto de crescente ameaça terrorista, Berlinguer e os comunistas italianos optam pelo reforço da estratégia adotada no pós-guerra - a da vigilância democrática.

O desafio das forças reacionárias à democracia italiana é insolente, e os perigos, graves. Mas aceitamos este desafio. Que estes senhores tomem cuidado, que a DC também tome cuidado para não quebrar a cara. As palavras do camarada [Luigi] Longo foram muito claras. Estamos prontos para combater em todos os terrenos, mobilizando as imensas energias democráticas deste país que já soube rechaçar outros complôs, outras ameaças, e ir adiante.

É também destas graves ameaças, da necessidade urgente de tirar a Itália desta obscura crise que emerge a necessidade de uma virada democrática, de uma nova direção política do país. Como o debate sublinhou vigorosamente, sabemos que o avanço na direção desta nova perspectiva requer um trabalho múltiplo e organizado em todos os terrenos: lutas reivindicatórias; lutas por reformas de estrutura; construção das mais amplas alianças sociais; defesa e desenvolvimento de uma rede de organismos democráticos de base e sua vinculação com as assembléias eletivas; batalhas ideais e de cultura.

Sabemos que este avanço não acontecerá de modo calmo e linear, mas através de fases alternadas e confrontos também ásperos. Todavia, há uma urgência premente, e é por isso que o voto de 7 de maio deve dar um poderoso impulso acelerador para que se vá adiante no caminho de uma alternativa de linha política e de governo.

Por isto, pedimos aos eleitores para bloquear e bater a força fascista, para golpear pela esquerda a DC, para fazer avançar a esquerda e o PCI. Pôr o problema deste modo significa trabalhar por um deslocamento de fundo, na direção da esquerda e na nossa direção, de estratos inteiros de trabalhadores, de classes médias, de intelectuais, de técnicos, de católicos, de mulheres. O voto no PCI, como sublinhou o camarada Longo, e o voto nas listas da esquerda unida para o senado é aquele que não só constitui a garantia mais segura contra toda ameaça à liberdade, mas também dá ímpeto, força, peso, capacidade de iniciativa às forças populares e democráticas presentes em todos os alinhamentos políticos.

Algumas palavras ainda, neste ponto, sobre os grupelhos extremistas. Fez-se grande barulho sobre isto, como se estivéssemos preocupados em perder votos à esquerda. Buscou-se reduzir nossa polêmica, que envolveu no passado, e mesmo neste congresso, problemas teóricos de concepção do mundo e de moral revolucionária, a um episódio de briga eleitoral.

Tolice. O que queremos sublinhar é que a situação mudou profundamente em relação a 1968 e a 1969. A política e a atividade dos dirigentes destes grupos não são mais a expressão, ainda que infantil e aventureira, deformada, do protesto e da rebelião juvenil. Ao contrário, assistimos a uma degeneração que deve preocupar não apenas a nós.

De uma parte, os dirigentes destes grupos se contrapõem abertamente ao movimento operário organizado, aos sindicatos, ao PCI, com um só objetivo: a desagregação. De outra, já é claro o risco de que, independentemente da vontade e da boa fé, a atividade destes grupos venha a ser utilizada pelas forças conservadoras e reacionárias como elementos daqueles tenebrosos planos de provocação de que falava antes, planos direcionados a golpear as próprias bases da democracia italiana, e em primeiro lugar a classe operária.

Este é o problema que colocamos ao partido, mas o colocamos com espírito aberto e confiante nos milhares de jovens que, com toda a boa fé, ainda seguem estes grupos. A eles estendemos a mão, queremos abrir os olhos para ajudá-los a voltar seu espírito de luta, seu ímpeto combativo, sua vontade de renovação, contra o inimigo verdadeiro, o fascismo, as forças conservadoras, o grande empresariado. Por isto, e não por mesquinho cálculo de partido, renovamos o apelo à vigilância, à disciplina democrática e de classe, como também, certamente, contra o desperdício dos votos.

3. O compromisso histórico: o aprendizado com a trágica experiência chilena [3]

A proposição de uma aliança de caráter antifascista que reunisse as três grandes forças de caráter democrático e popular italianas - isto é, comunistas, socialistas e católicos - não representa uma novidade na estratégia política desenvolvida pelo Partido Comunista Italiano.

Entretanto, é inquestionável a inflexão acontecida na forma de pensar tal aliança com a ascensão de Enrico Berlinguer à secretaria-geral do partido, em particular depois da trágica experiência vivida pelas esquerdas chilenas com deposição do presidente da República, Salvador Allende, e o conseqüente fim do governo da Unidade Popular, em 11 de setembro de 1973, por intermédio do golpe de Estado encabeçado pelo general Augusto Pinochet.

De maneira extremamente veloz, Berlinguer captou, na grave derrota sofrida pelas esquerdas chilenas, um recado que deveria ser decifrado o mais rapidamente possível pelas esquerdas italianas, em nome da preservação do tecido democrático nacional. A interpretação dada pelo comunista italiano aos fatos chilenos tinha um sinal inequívoco de que a linha política seguida pelo PCI era justa, devendo ser aprofundada no sentido da (re)construção dos laços de união existentes entre as forças responsáveis pela derrota do fascismo na Segunda Guerra Mundial.

O termo criado por Berlinguer para assinalar tal necessidade política não deixava margem a dúvida: o risco à democracia duramente conquistada nos anos da Resistência não deveria ser desprezado - muito pelo contrário, ele se mostrava cada vez maior com as ações terroristas patrocinadas pelo extremismo de direita e de esquerda. Assim, não restava outra opção a não ser a de proclamar, em alto e bom som, a exigência do estabelecimento de um "compromisso histórico", que reunisse às esquerdas comunista e socialista o centro democrata-cristão.

Os acontecimentos chilenos ocorreram e foram vividos como um drama por milhões de homens espalhados em todos os continentes. Percebeu-se e continua a se perceber que se trata de um fato de importância mundial, que não somente suscita sentimentos de execração em relação aos responsáveis pelo golpe reacionário e pelos massacres de massa, e de solidariedade com os que dele foram vítimas e a ele resistem, mas também propõe interrogações, as quais apaixonam os combatentes da democracia em cada país e levam à reflexão. [...] 

Com este fim, é indispensável assumir também a tarefa de uma atenta reflexão, para tirar da tragédia política do Chile úteis ensinamentos relativos a um mais amplo e aprofundado juízo, seja sobre o quadro internacional, seja sobre a estratégia e tática do movimento operário e democrático em vários países, entre os quais o nosso. [...]

Assim, nossa tarefa essencial - e é uma tarefa que deve ser assumida - é a de preparar o tecido unitário, recolher a grande maioria do povo em torno de um programa de luta pelo saneamento e a renovação democrática de toda a sociedade e do Estado, e fazer corresponder a este programa e a esta maioria uma coalizão de forças políticas capaz de realizá-lo. Só esta linha, e nenhuma outra, pode isolar e derrotar os grupos conservadores e reacionários, pode dar à democracia solidez e força invencível, pode fazer avançar a transformação da sociedade. Ao mesmo tempo, só percorrendo este caminho podem-se criar, a partir de agora, as condições para construir uma sociedade e um Estado socialista que garantam o pleno exercício e o desenvolvimento de todas as liberdades.

Sempre soubemos, e continuamos a saber, que o avanço das classes trabalhadoras e da democracia será combatido, com todos os meios possíveis, pelos grupos sociais dominantes e seus aparelhos de poder. E sabemos, como mostra ainda uma vez a trágica experiência chilena, que esta reação antidemocrática tende a se tornar mais violenta e feroz quando as forças populares começam a conquistar os espaços fundamentais de poder no Estado e na sociedade.

Mas que conclusões devemos tirar desta consciência? Talvez aquela, proposta por alguns, de abandonar o terreno democrático e unitário em benefício de uma estratégia leviana, com a qual, todavia, chega-se rápida e inevitavelmente ao isolamento da vanguarda e à sua derrota? Ao contrário, pensamos que, se os grupos sociais dominantes obstinam-se em romper o quadro democrático, dividir em dois o país e desencadear a violência reacionária, isto deve nos levar ainda mais a ter nas mãos, firmemente, a causa da defesa da liberdade e do progresso democrático, a evitar a divisão frontal do país e a nos empenhar com ainda maior decisão, inteligência e paciência no sentido de isolar os grupos reacionários e buscar todo possível entendimento e convergência entre todas as forças populares. [...]

Em todos estes casos, sempre respondemos assumindo a bandeira da liberdade e o método da democracia, chamando as grandes massas trabalhadoras e populares a lutas bastante duras, e promovendo o mais amplo entendimento e convergência entre todas as forças interessadas na salvaguarda dos princípios da Constituição antifascista. [...]

O problema das alianças é, então, o problema decisivo de toda revolução e de toda política revolucionária, assim como também é decisivo para a afirmação da via democrática. [...]

Assim, não nos limitamos a buscar e a estabelecer convergências com figuras sociais e categorias econômicas já definidas, mas queremos conquistar e incluir, em um articulado conjunto de alianças, grupos inteiros da população, forças sociais não classificáveis como classes, tais como são, precisamente, as mulheres, os jovens e as jovens, as massas populares do Mezzogiorno, as forças da cultura, os movimentos de opinião; e propomos objetivos não apenas econômicos e sociais, mas de desenvolvimento civil, de progresso democrático, de afirmação da dignidade da pessoa, de expansão das múltiplas liberdades do homem. Eis o modo pelo qual nós entendemos e cumprimos o trabalho concreto de construir e preparar as bases, as condições e as garantias daquilo que se costuma chamar um "modelo" novo de socialismo. [...]

Conscientes disso, sempre pensamos - e hoje a experiência chilena reforça esta persuasão - que a unidade dos partidos dos trabalhadores e das forças de esquerda não é condição suficiente para garantir a defesa e o progresso da democracia, nos casos em que se contraponha a esta unidade um bloco de partidos que se situem do centro até a extrema-direita. O problema político central na Itália foi, e continua a ser mais do que nunca, exatamente evitar que se chegue a uma coligação estável e orgânica entre o centro e a direita, a uma ampla frente de tipo clerical-fascista, e em vez disso conseguir deslocar as forças sociais e políticas que se situam no centro até posições coerentemente democráticas.

Obviamente, a unidade, a força política e eleitoral das esquerdas e o entendimento cada vez mais sólido entre suas diversas e autônomas expressões são a condição indispensável para manter no país uma crescente pressão para a mudança e para determiná-la. Mas seria de todo ilusório pensar que, ainda que os partidos e as forças de esquerda conseguissem chegar ao patamar de 51% dos votos e da representação parlamentar (o que assinalaria, por si só, um grande passo adiante nas relações de força entre os partidos na Itália), este fato garantiria a sobrevivência e a ação de um governo que fosse a expressão de tais 51%.

Eis por que falamos não de uma "alternativa de esquerda", mas de uma "alternativa democrática", isto é, de uma perspectiva política de colaboração e entendimento das forças populares de inspiração comunista e socialista com as forças populares de inspiração católica, além de outras forças de orientação democrática. [...]

Certamente, somos os primeiros a compreender que o caminho rumo a esta perspectiva não é fácil nem pode ser encurtado. Bem sabemos, também, quantas e quais batalhas árduas e urgentes será necessário conduzir, nos mais variados planos e não somente no plano do nosso partido, com determinação e com paciência, para afirmar esta perspectiva.

Mas não se pode crer que o tempo à disposição seja indefinido. A gravidade dos problemas do país, as ameaças sempre iminentes de aventuras reacionárias e a necessidade de abrir finalmente à nação um caminho seguro de desenvolvimento, de renovação social e de progresso democrático tornam sempre mais urgente e maduro que se chegue ao que pode ser definido como o novo grande "compromisso histórico" entre as forças que reúnem e representam a grande maioria do povo italiano.

4. O compromisso histórico. O esclarecimento da nova estratégia dos comunistas italianos [4]

Se a estratégia proposta por Berlinguer de uma aliança entre comunistas, socialistas e católicos deita raízes na própria história do Partido Comunista Italiano, tendo um relativo consenso no seu interior, o mesmo não pode ser dito em relação à terminologia empregada pelo secretário-geral do partido para defini-la após os fatos acontecidos no Chile.

De uma maneira praticamente imediata, a expressão "compromisso histórico" começou a ser questionada das mais variadas formas, com ênfases também distintas. Isto, a começar pelo próprio presidente de honra do partido, Luigi Longo, que considerou equívoco o termo, já que a categoria gramsciana de "bloco histórico" seria mais apropriada, reforçando os vínculos existentes com as tradições teóricas do partido.

Na militância comunista, de outra parte, soava estranho falar em qualquer tipo de compromisso com a Democracia Cristã, já que, desde a derrota do fascismo, esta havia se tornado a grande adversária do PCI, tendo sido responsável direta pelo agravamento das discriminações levantadas contra os comunistas em território italiano, nos anos mais duros da guerra fria. Em poucas palavras, as dúvidas da gigantesca militância comunista giravam ao redor da seguinte questão: como assumir um compromisso, ainda mais histórico, com um adversário feroz depois de um quarto de século de graves enfrentamentos?

Diante de tais restrições surgidas tanto na cúpula do partido, como nas suas bases, não restava outra opção a Berlinguer a não ser sair em campo aparando as arestas, esclarecendo as dúvidas sobre a nova linha política por ele proposta. Tarefa de não pequena monta, pois que levada a cabo num momento de crescente tensão social, com a temperatura política crescendo de maneira acelerada em função do agravamento das ações terroristas patrocinadas pelos extremismos, de esquerda e direita.

Fez-se muito rumor sobre nossas recentes tomadas de posição, as quais nada mais são do que a reproposição e o desenvolvimento da indicação fundamental dada pelo nosso XIII Congresso, em março de 1972. Dissemos, então, que a salvação do país, o futuro da República, a renovação da sociedade só são possíveis se se realizar um encontro, uma colaboração, um entendimento entre os três grandes componentes populares italianos: o comunista, o socialista, o católico. Falamos recentemente de um "compromisso histórico", formulação que chocou e surpreendeu, apesar de exprimir de outra forma a substância da estratégia que seguimos há muitos anos. [...]

Mas o ponto sobre o qual queremos chamar a atenção dos trabalhadores e das outras forças de esquerda é a necessidade de buscar, de construir uma coalizão social, política e também de governo, que, não reduzível a uma simples maioria parlamentar por causa da amplitude das suas bases, proteja o país de toda aventura reacionária e garanta a renovação da sociedade. [...]

Não tenho aqui o tempo necessário para me aprofundar na discussão (seria uma discussão muito longa) sobre a diferença que pode existir entre "compromisso histórico", "bloco histórico", "encontro histórico", e assim por diante. Digamos brevemente que a substância é igual, em última análise; e digamos, sempre brevemente, e remontando àquilo que disse há alguns dias no discurso de Bolonha, que usei a expressão "compromisso histórico" também com uma intenção um pouco provocadora. Como sabemos, sendo a palavra "compromisso" entendida e usada correntemente, na vida comum e também na vida política, com um significado, digamos, um pouco negativo, tê-la escolhido serviu para chamar a atenção, para provocar uma discussão sobre a substância da nossa política. E este efeito foi obtido.

O mesmo camarada que fez aqui uma das perguntas relativas a esta questão disse que, no ônibus, nos meios de transporte que levam ao trabalho, não se fala mais de futebol, mas se fala de "compromisso histórico". Não acredito que seja propriamente assim, creio que se fala também de futebol e não há nada de mau que também se fale de futebol; também falamos disso e não vejo por que os operários não se devam interessar por futebol. De toda forma, é certamente importante que, além do esporte, além das questões salariais, sindicais e econômicas, também se fale de política e se fale de modo particular, hoje, na questão do "compromisso histórico". [...]

Vocês conhecem as distorções que foram feitas da nossa proposta. Por exemplo, afirmei que, ainda que os partidos de esquerda alcançassem, de eleição em eleição, 51% dos votos em toda a Itália (já temos isso na Emília, na Úmbria, na Toscana, mas falo de toda a Itália), esta maioria eleitoral não seria por si só suficiente para formar um governo capaz de durar, de resistir à hostilidade frontal dos restantes 49% e, concomitantemente, de realizar a obra de transformação que estaria na base do seu programa.

Alguns disseram que isto significa que os comunistas (imaginem só!) não querem que os partidos de esquerda alcancem 51% de votos [...]. O problema de fundo é ver se estes 51% poderiam governar, realizar aquela obra de renovação de que falei, tendo contra si todo o resto do país, digamos 49%. Num país como a Itália, pensamos que isto não seria possível. Pensamos que esta divisão frontal do país - de uma parte, os partidos de esquerda, de outra, todos os outros partidos contrários, alinhados de maneira decidida e enfurecida - não seria do interesse do nosso país e levaria à ruína a experiência de renovação da sociedade.

De resto, foi o que aconteceu no Chile. As esquerdas chilenas tinham 46%, e não acredito que as coisas teriam sido muito diversas se tivessem chegado a 51%. Os trágicos eventos do Chile nos ensinam e confirmam a justeza desta nossa formulação, desta nossa perspectiva política.

Naturalmente, não cometeremos nunca o erro de colocar no mesmo plano os delitos dos militares golpistas, que assim são e devem ser definidos, os delitos das forças imperialistas e reacionárias no Chile, com os erros que podem ter sido cometidos pelas forças populares. Mas lá, precisamente, o imperialismo americano - e ninguém pode negar que houve a mão do imperialismo americano -, bem como as forças capitalistas reacionárias internas da indústria, das finanças, da agricultura trabalharam arduamente para que se criasse uma divisão frontal no Chile: de um lado, a base, ainda que bastante ampla, que sustentava o governo da Unidade Popular, composta pela maioria dos operários e dos trabalhadores, por uma grande parte dos camponeses e pela parte mais avançada dos intelectuais; de outro lado, não apenas os grandes capitalistas, os grandes agricultores, os grandes financistas, isolados e sem base de massa, mas também a classe média e uma parte dos operários, dos trabalhadores, dos camponeses.

Eis a situação que permitiu a vitória do golpe militar fascista. Eis a situação que devemos evitar na Itália. Eis as razões pelas quais defendemos um "compromisso histórico", isto é, uma perspectiva de encontro, de colaboração (que não quer dizer, necessariamente, de governo, e, sobretudo, não quer dizer de governo imediato) entre todas as forças democráticas e antifascistas que têm uma base popular.

Há, ainda, uma outra falsificação: a que nos atribui a proposta de um acordo bilateral imediato com a DC, da forma como ela é hoje, passando por cima dos outros partidos. Não há nada disso. Sempre dissemos que, na Itália, existem três grandes forças de orientação popular: PCI, PSI, DC; sempre reconhecemos, e continuamos a reconhecer, a grande função que cabe ao PSI em uma política de renovação e de progresso democrático, e não queremos de nenhuma maneira passar por cima do PSI; e, ao mesmo tempo, reconhecemos e continuamos a reconhecer a função que também podem vir a ter, se tomarem uma orientação diversa daquela atual, isto é, uma orientação democrática e progressista, os partidos que são definidos como "menores", como o partido socialdemocrata e o partido republicano. [...]

Devemos considerar este dado de fato. De uma parte, propomo-nos naturalmente reduzir esta força (em outras palavras, o raciocínio que fiz antes no sentido de alterar a relação de força entre as esquerdas e a DC), mas, de outra parte, devemos ter também uma política em relação à DC, se não quisermos que a DC tome o caminho reacionário, porque isto teria as conseqüências mencionadas para a vida política do país, para o destino da democracia italiana.

5. O referendo sobre o divórcio. Uma batalha em defesa dos direitos civis [5]

Das inúmeras batalhas travadas pelo Partido Comunista Italiano durante os anos Berlinguer, uma se destaca pelo fato de ter sido responsável pelo afloramento de uma nova Itália no campo dos costumes. Do interior de uma Itália tradicionalista, informada pelos dogmas da Igreja Católica, sobe à tona uma outra Itália aberta às formas contemporâneas de vida cotidiana.

Dito de outra forma, no decorrer do ano de 1974, do interior obscuro de uma Itália ameaçada de um retrocesso de caráter confessional, nasce uma Itália verdadeiramente laica, plenamente garantidora dos direitos civis, das liberdades e garantias individuais e do pluralismo de opinião e consciência. A batalha em questão foi travada em torno da manutenção, ou não, da lei que dava aos cidadãos e cidadãs italianos o direito de se divorciarem.

Primeiro referendo da história da república italiana depois daquele que derrotou a monarquia em 1946, o referendo sobre o divórcio colocou em trincheiras opostas os defensores de um Estado laico, marcado pela nítida separação entre Igreja e Estado, religião e política, e os que pretendiam se utilizar da confusão entre as duas instituições a fim de preservar o status quo.

Assim, de um lado, posicionavam-se os setores mais retrógrados da Democracia Cristã, tendo à frente o secretário-geral, Amintore Fanfani, e, de outro lado, todas as forças republicanas do país, aí incluídos os socialistas e comunistas. No seu íntimo, Enrico Berlinguer via no referendo uma batalha perdida, em função da força do discurso religioso num país maciçamente católico. Porém, o resultado que sai das urnas, em 12 de maio de 1974, surpreende a todos: com uma maioria de 59%, a lei sobre o divórcio foi mantida. Era a vitória de uma Itália que se queria livre de qualquer espécie de intromissão confessional na vida particular dos indivíduos.

Por que falei de uma campanha argumentada e simples? Porque, antes de tudo, ilustrando e explicando os fins e os conteúdos da lei, vamos propor aos eleitores este primeiro quesito: o que significa a solicitação de abolir o instituto do divórcio? Significa -afirmamos - negar em princípio o direito e o dever do Estado italiano, em casos bem delimitados de matrimônios já falidos, de declarar a dissolução e disciplinar as conseqüências jurídicas, econômicas e sociais, no interesse dos próprios cônjuges, dos filhos e da sociedade inteira.

Ora, esta pretensão, esta negação de um direito-dever do Estado italiano é de todo absurda e inadmissível, tanto mais que até mesmo a Igreja, através dos tribunais eclesiásticos, sempre reservou para si mesma a faculdade de anular matrimônios falidos. E por que, então, esta faculdade deveria ser negada ao Estado? Derivaria daí a conseqüência paradoxal de uma disparidade de condições entre os que se casam na Igreja e os que se casam civilmente. Eis uma das razões que nos levaram a repelir a chamada notificação do Conselho Permanente do Episcopado Italiano, que contradiz, entre outras coisas, toda concepção pluralista e democrática de sociedade e, em substância, é uma manifestação de integrismo.

Vamos lutar, pois, contra a prevalência de um espírito abusivo que os próprios católicos de sentimento democrático não podem querer nem aceitar, porque o que se golpeia é a idéia mesma de liberdade. Tanto isto é verdadeiro que o único país europeu em que se aboliu o divórcio, quando venceu o fascismo, foi a Espanha franquista, que é também o país no qual existe a vergonhosa barbárie do garrote vil.

Eis o conjunto de razões pelas quais dizemos que o tema essencial da campanha do referendo é o tema da liberdade - o tema que sempre, em todos os tempos e lugares, mais do que qualquer outro, movimentou e inflamou o espírito e as ações humanas. E formular a campanha deste modo significa dar-lhe um fôlego que vai além dos limites de classe e das tradicionais posições políticas de esquerda, centro e direita, porque, para defender uma causa de liberdade, podem-se alinhar homens e forças de todos os setores e orientações, inclusive homens e mulheres muito distantes do nosso campo de classe e das nossas concepções ideais e políticas, das nossas e de outras forças de esquerda.

Trata-se, pois, de dizer "não" à revogação de uma lei e também, além da própria questão do divórcio, de dizer "não" àqueles que promoveram o referendo e recusaram toda proposta de acordo razoável para evitá-lo: e, assim, de dizer "não" a uma grave tentativa de abuso, de divisão dos trabalhadores e das forças populares, de perturbação da paz religiosa da Itália.

A batalha do referendo - sabemos - será difícil, como o são quase todas as nossas batalhas. Um dos nossos objetivos é fazer dela uma ocasião e um instrumento para que as novas massas de cidadãos possam compreender a política unitária, democrática e nacional do nosso partido, elevando sua consciência civil e seu nível cultural. [...]

Por que, então, se quer tirar do Estado italiano o direito de legislar sobre os casos de dissolução do matrimônio? Quer-se talvez um Estado teocrático, confessional, que imponha a todos os cidadãos a obrigação de observar os preceitos e os sacramentos de uma religião?

Neste ponto, surge um grande problema. A Itália chegou bastante tarde à unidade nacional também porque, até há um século, subsistiu um Estado pontifício, um poder temporal que se estendia sobre um vasto território da Itália e que, hoje, a Igreja reconhece ser um anacronismo. E por que, então, a Itália atual, depois de um Concílio ter declarado que a Igreja não quer mais privilégios, deve ser tratada ainda como uma província sujeita a um regime especial, quase como um braço secular? Eis um grande tema que deve interessar a todos aqueles, crentes e não crentes, que querem ser cidadãos de uma República livre e soberana, não anticlerical, mas também não clerical. [...]

Infelizmente, devemos notar com pesar que o empenho de uma parte do clero na atual campanha do referendo vem assumindo, cada vez mais, um caráter de ingerência em questões políticas, civis e jurídicas, e, assim, de retorno do espírito clerical. Não se pode silenciar diante de tal fenômeno, um fenômeno que duvidamos possa vir a ser vantajoso ao prestígio da Igreja, que de toda forma é anacrônico e não responde ao nível de consciência democrática dos cidadãos, crentes e não crentes.

Em 12 de maio, trata-se de defender com a lei o direito de uma minoria, qual seja, a minoria constituída por aqueles que possam necessitar do divórcio.

De tudo isto resulta o significado do voto, quer no seu aspecto específico, que diz respeito à manutenção ou não de uma lei sempre passível de aperfeiçoamento, mas irrenunciável, quer nas suas implicações gerais, que são políticas, mas não no sentido de que se trata de escolher a favor de um partido, mas, antes, no sentido de frustrar uma manobra da direita e um ataque à liberdade.

6. A introdução de elementos de socialismo no capitalismo. Uma nova etapa da revolução democrática antifascista [6]

Um dos momentos mais ricos, em termos teóricos, do período em que o Partido Comunista Italiano esteve sob a liderança de Enrico Berlinguer deu-se a partir da defesa da idéia de que era possível uma saída progressiva da lógica capitalista.

Atualizando a concepção gramsciana de "guerra de posição" e a togliattiana "democracia progressiva", Berlinguer apresenta a proposta da "introdução de elementos de socialismo na estrutura da sociedade capitalista" como a "nova etapa da revolução democrática antifascista". Em outras palavras, Berlinguer buscava esclarecer de que maneira os comunistas imaginavam a via de construção do socialismo nos países de capitalismo desenvolvido, em particular as nações da Europa ocidental.

O secretário-geral do PCI compreendia tal proposição como a afirmação de um forte poder democrático, suficientemente robusto para ser responsável pela programação do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, uma programação feita por uma autoridade pública democrática e eficiente conseguiria dar forma a um novo campo de atividade empresarial, não mais dominado por monopólios.

Dessa forma, ficava clara a maneira berlingueriana de conceber a idéia de revolução socialista: uma revolução de caráter processual, que representasse o ápice do alargamento da democracia existente, e não sua negação. Uma revolução socialista que fosse o desaguadouro da ampliação sem limites da democracia, e não um acontecimento pensado em função do arruinamento das regras do jogo democrático.

Não restava dúvida em relação à opção realizada por Berlinguer de dar continuidade à tradição reformista (um reformismo forte) dos comunistas italianos, um reformismo aberto à superação da sociedade capitalista, um reformismo voltado à revolução.

Qual é o sentido geral destas três condições e qual perspectiva derivaria delas para o caminho da nossa sociedade? Cada uma de tais condições, e a conexão entre elas, requerem uma transformação do desenvolvimento econômico, da vida social, do bloco de poder e dos valores ideais e morais, uma transformação que, objetivamente, leva à superação progressiva da lógica do sistema capitalista.

De fato, as novidades que continuamente se afirmariam - nas relações de produção, na distribuição da renda, nas formas de consumo e nos hábitos de vida, na natureza do poder, através de reformas sociais, da planificação de relevantes setores econômicos e da extensão da vida democrática - introduziriam na ordem e no funcionamento geral da sociedade alguns elementos que são próprios do socialismo. Não se trata, pois, de colocar como objetivo próximo uma sociedade socialista, porque, para tanto, faltam ainda algumas condições de fundo, quer internas, quer internacionais, mas de realizar medidas e diretrizes que são por alguns aspectos de tipo socialista.

A luta de libertação nacional colocou as premissas da construção de uma ordem superior de sociedade e Estado abertos a todo e qualquer progresso. Então, agora, há necessidade de uma nova etapa da revolução democrática e antifascista, chamando a grande maioria dos cidadãos a se unirem - com um esforço excepcional de trabalho, luta, cultura e criatividade - em torno de um conjunto de objetivos que realizem a salvação e o renascimento do país, e o levem adiante. [...]

Evidentemente, uma das exigências que colocamos em primeiro plano é a de uma efetiva programação do desenvolvimento, confiada a um robusto e respeitável poder democrático. Isto significa subtrair às concentrações monopolistas, aos grandes grupos financeiros, às sociedades "multinacionais" o poder de determinar, como tem acontecido até agora, as linhas do desenvolvimento geral do país, as escolhas fundamentais relativas aos investimentos privados e públicos e à estrutura do mercado.

Mas esta indispensável avocação ao poder político democrático da função de definir as escolhas fundamentais e de operar as intervenções, a fim de proceder ao desenvolvimento na direção de determinadas metas, não implica absolutamente a estatização de toda a economia nem o desaparecimento dos mecanismos de mercado que constituem critérios necessários para medir o caráter econômico e verificar a validade das escolhas produtivas das empresas públicas e privadas.

Como se sabe, consideramos também que o setor público na Itália é já bastante amplo para poder constituir uma alavanca de orientação e de iniciativa na vida econômica a serviço dos interesses coletivos. O problema não é de quantidade, mas de qualidade, e diz respeito, assim, ao modo como são geridas as empresas públicas e as de participação estatal, um modo frequentemente inspirado em critérios burocráticos e clientelistas, fora de qualquer controle democrático e parlamentar.

Mas também os outros meios e instrumentos de intervenção e de direção, inúmeros e poderosos, dos quais o Estado dispõe no campo econômico (do orçamento público à administração corrente da despesa, dos bancos a uma série inumerável de entes e institutos), são utilizados freqüentemente no pior modo possível, já que neles reinam a arbitrariedade, a casualidade, o desperdício, o clientelismo, a ausência de controles, além da influência exercida nas suas decisões pelos interesses dos grupos econômicos dominantes. Uma das necessidades mais elementares, mas também das mais árduas, dado o estado em que se encontram as coisas depois de trinta anos de mau governo democrata-cristão, é justamente a de começar a pôr ordem nesta selva tão intricada.

Portanto, uma programação bem formulada e realizada comporta, certamente, o efetivo exercício do poder de decisão por parte de uma autoridade pública democrática e eficiente, mas, ao mesmo tempo, deve constituir um quadro de compatibilidades objetivas de tipo novo para o mundo empreendedor, deve deixar amplo espaço e estimular a iniciativa autônoma das empresas privadas na indústria, na agricultura e em outros setores econômicos.

Quanto ao mercado e às suas relações com a produção, trata-se de impedir, através da programação, que haja no mercado poucos monopólios - industriais, comerciais e financeiros - a comandar e a ditar leis não apenas no que diz respeito aos preços, mas também à estrutura do consumo e da produção, à utilização e à distribuição dos recursos.

A construção de uma nova ordem social superior, mais justa, mais produtiva e mais eficiente do que a atual pode e deve se desenvolver sem arranhar nenhuma das liberdades sancionadas pela nossa Constituição e respeitando os princípios e as regras democráticas por ela estabelecidos. Ao contrário, deve ser evidente que um processo de superação progressiva da lógica do capitalismo constitui a consolidação e favorece a contínua expansão da vida democrática, ao reduzir continuamente o poder de tipo oligárquico dos grupos econômicos e políticos até agora dominantes, ao desenvolver ao máximo a participação consciente, o senso de responsabilidade e a iniciativa de todos os estratos populares e de cada um dos cidadãos, ao ampliar o consenso e as bases sociais do Estado. [...] 

7. Desenvolvimento e cooperação. A proposta de formação de um governo mundial [7]

Entre 18 e 23 de março de 1975, em Roma, ocorre o XIV Congresso do Partido Comunista Italiano. No seu decorrer, Enrico Berlinguer talvez tenha levado ao ponto máximo sua preocupação unitária. Isto porque, além de dar continuidade à defesa da linha do compromisso histórico, nascida em setembro de 1973, o secretário-geral do PCI ultrapassa os limites nacionais da inspiração unitária, chegando até o plano mais ampliado das relações internacionais.

Num momento ainda distante da entrada em cena das discussões em torno da idéia de globalização, Berlinguer reflete sobre a necessidade de ampla cooperação entre todos os países do mundo, sentimento de cooperação este que interligasse os países do Primeiro, Segundo, Terceiro e Quarto Mundos numa rede de solidariedade capaz de vincular nações ricas e pobres, países capitalistas socialistas - tudo isto, tendo como elemento de intermediação a Europa Ocidental.

Entretanto, a maneira ousada por meio da qual Berlinguer pensou a necessidade da cooperação internacional avançou até os termos mais evidentes daquilo que pode ser denominado de utopia, pois da tribuna do Palácio do Esporte de Roma ele chega a cogitar a hipótese de formação de um "governo mundial", que fosse a "expressão do consenso e da livre contribuição de todos os países".

Ilusões à parte, o fato é que Berlinguer soube incorporar às questões abordadas pelos comunistas italianos a urgência de levar a cabo, de modo planetário, um novo modelo de desenvolvimento econômico, não predatório, mas sim preocupado com a manutenção da natureza e o equilíbrio do meio ambiente: um desenvolvimento sustentável.

[...] A primeira necessidade nos parece ser a de considerar todos os temas da cooperação na sua globalidade, seja no sentido de avaliar todos os aspectos numa perspectiva imediata e também a longo prazo, seja no sentido de envolver e de associar todos os países e todas as áreas do mundo.

Obviamente, então, globalidade significa não se limitar aos problemas do petróleo, mesmo que relevantes, mas também abrir a negociação sobre outras fontes energéticas, todas as matérias-primas, os produtos industriais e agrícolas, os serviços, a tecnologia e a pesquisa. E consideramos tudo isto não apenas em termos de desenvolvimento das trocas e da justa definição das correspondentes relações financeiras e monetárias, mas também e, sobretudo, em termos de autêntica cooperação rumo a formas cada vez mais ampliadas e orgânicas de integração e de divisão internacional do trabalho reciprocamente vantajosa.

Há quem proclame que está próximo o esgotamento dos recursos do nosso planeta e a única solução é estabilizar no estágio atual o desenvolvimento produtivo e o consumo. Mas pensemos nos resultados a que poderia levar uma cooperação mundial voltada para descobrir e utilizar as inesgotáveis fontes de energia, que podem vir não apenas do urânio mas do hidrogênio e, talvez, mais ainda do sol, dos oceanos e das profundidades em parte desconhecidas e, de todo modo, ainda amplamente inexploradas do subsolo! Pensemos, também, nas imensas extensões de terra que poderiam ser conquistadas ou reconquistadas para a fertilidade e o cultivo!

É claro que um sistema de cooperação de tal alcance, ao dar um impulso vigoroso, e até agora não pensado, à elevação e ao desenvolvimento das áreas atrasadas, criaria bases e saídas novas, também até agora não pensadas, para um novo desenvolvimento econômico e científico dos países já industrializados. Mas isto requer que a reconversão produtiva de tais países - que, de qualquer modo, a crise em curso torna urgente - já seja, desde agora, conscientemente levada a cabo, observando estes novos planos.

Eis a única perspectiva a partir da qual se podem ligar os interesses e as aspirações dos povos das áreas atrasadas com os dos povos dos países do Ocidente: operários e trabalhadores de outras categorias, milhões de desempregados e subempregados, jovens em busca de trabalho, técnicos, pesquisadores e intelectuais hoje submetidos a uma rotina aviltante, privada de valores autênticos e de perspectivas, classes produtoras que não têm pontos de referência seguros e estáveis para sua iniciativa empresarial. Eis a única perspectiva a partir da qual podem encontrar soluções questões como a da emancipação feminina, que está explodindo como uma grande questão mundial. De fato, agora está claro que, assim como existem inteiros povos que não querem e não podem ser mantidos à margem da história, as grandes massas femininas também aspiram à conquista de dignidade e igualdade plenas.

Para preparar, até mesmo gradualmente, um sistema de cooperação mundial, há necessidade da ativa contribuição de cada país do mundo, grande ou pequeno que seja. E isso pode apresentar vantagens concretas para todos. É evidente a contribuição que, para tal desenvolvimento da cooperação mundial, pode vir dos países socialistas, particularmente de uma economia robusta, poderosa e planificada como a da União Soviética; do mesmo modo, bastante grande poderia ser o papel da República Popular da China, plena e ativamente inserida na construção de uma ordem internacional de coexistência pacífica e no circuito da vida econômica mundial. É igualmente evidente que, para construir um sistema de cooperação com objetivos tão ambiciosos, é objetivamente indispensável que os EUA nele tenham parte correspondente ao peso decisivo que sua política pode ter para o destino da paz, à sua força e potencialidade econômica e às qualidades peculiares do seu povo.

De tudo isto resulta que a Europa Ocidental - que tem necessidade, mais do que nunca, de afirmar sua iniciativa autônoma e, pois, de se renovar profundamente - não somente não deve se contrapor à União Soviética ou aos Estados Unidos, mas também deve intervir, como interlocutor positivo e ativo, em todo o contexto das relações internacionais. Isto quer dizer também que ela deve se propor a tarefa de favorecer o diálogo soviético-americano e até mesmo fazer todo o possível para que ele, no quadro do processo geral de distensão, dê todos os seus frutos para o avanço de cada povo e de toda a civilização humana.

Se quisermos lançar um olhar mais adiante, podemos pensar que o desenvolvimento da coexistência pacífica, bem como de um sistema de cooperação e integração tão vasto a ponto de superar progressivamente a lógica do imperialismo e do capitalismo e de compreender os mais variados aspectos do desenvolvimento econômico e civil de toda a humanidade, poderia também tornar realista a hipótese de um "governo mundial", que seja expressão do consenso e da livre contribuição de todos os países. Esta hipótese poderia sair assim do reino da pura utopia, no qual se colocaram os projetos e os sonhos de vários pensadores no curso dos últimos séculos.

Naturalmente, damo-nos conta de que apresentar hoje esta hipótese contém notáveis elementos de futurismo. Mas recordemos que, para Lenin, os sonhos também podem ter um valor revolucionário. E, hoje, o que conta é captar e favorecer as grandes tendências progressistas que estimulam a humanidade a alcançar novas metas, e, entre estas, cada vez mais empolgante é a de construir um sistema de cooperação progressivamente mais amplo.

A esta perspectiva nós, comunistas italianos, queremos dedicar nossa iniciativa, conscientes dos limites das nossas possibilidades, mas decididos a explorá-las até o fim. Por todos estes anos, lutamos guiados pela verdade gramsciana segundo a qual nenhuma política econômica é válida na Itália, nenhuma renovação é possível se não leva à solução da questão meridional. Hoje, nosso discurso se amplia: nenhuma política é válida, nenhum avanço e renovação são possíveis no Ocidente se não contiverem em si a solução dos problemas do Terceiro e Quarto Mundo.

8. O PCI e as eleições. A originalidade do comunismo italiano [8]

O biênio de 1975/1976 assinalou um avanço eleitoral de dimensões inéditas para o Partido Comunista Italiano. Então, pela primeira vez desde o término da Segunda Guerra Mundial, os comunistas ameaçaram de maneira concreta o domínio conquistado pela Democracia Cristã após a proclamação da República em 1946.

Primeiramente, nas eleições administrativas para as regiões e cidades italianas, em 15 de junho de 1975, o PCI chega à casa de 33,4% dos votos, isto é, 1/3 do eleitorado nacional, ficando muito próximo dos 35,2% obtidos pelos democratas-cristãos. Comparados os votos dados aos partidos de esquerda (PCI, PSI e PDUP) com os obtidos pelos partidos de centro (DC, PSDI, PRI e PLI), só se pode chegar à conclusão de que o eleitorado italiano havia feito a opção por uma ligeira inclinação à esquerda: 46,6% para os primeiros, contra 46,3% para os segundos. O PCI torna-se o primeiro partido em um contingente expressivo de cidades. Roma, Milão, Turim, Florença, Veneza, Nápoles, Perugia, Bolonha, Gênova, Ancona, Cagliari, além de muitas outras cidades menores, estão pintadas de vermelho.

Um ano depois, mais exatamente em 20 de junho de 1976, nas eleições políticas para a renovação do Parlamento, os comunistas avançam ainda mais, indo até 34,4% dos votos, uma autêntica vitória, não obstante a recuperação da Democracia Cristã, com 38,8%.

Para a opinião pública internacional, não restava dúvida de que algo de estranho ocorria na Itália. Que país era aquele em que um partido comunista se aproximava progressivamente do poder por vias eleitorais? Que PC era este que disputava o poder por intermédio de canais democráticos? Afinal de contas, qual era a originalidade do PCI liderado por Enrico Berlinguer?

Qual é para o senhor o significado das eleições?

Antes de tudo, os resultados das eleições foram significativos pela grande e vigorosa vontade de mudança expressa no deslocamento à esquerda e, de modo particular, em direção ao PCI. Quero dizer mudança da política do atual governo nacional e, em grande parte, dos governos locais. Acreditamos que os eleitores puderam confrontar as administrações nas áreas em que os comunistas são uma força de governo com aquelas que foram administradas pelos democratas-cristãos, com a exclusão dos comunistas.

Geralmente, na Itália e no exterior, reconhece-se que os comunistas administram melhor do que os outros. Suas administrações são melhores em termos de limpeza e de honestidade. Nenhum episódio de escândalo ou de corrupção foi imputado a elas. Além disso, as administrações de esquerda foram melhores em termos de eficiência e de capacidade de realizações concretas. Sobretudo, são melhores porque sabem manter o contato com os cidadãos, estimulando-os a participar do processo democrático, a começar pelos organismos de base.

A primeira conseqüência do voto de 15 de junho é, pois, a possibilidade de ampliar este modo de governar. Nas regiões, províncias e cidades onde o PCI e as esquerdas têm maioria, propusemos a colaboração com as outras forças democráticas. E também onde as esquerdas não têm maioria, pretendemos fazer o mesmo. Por forças democráticas compreendo as forças antifascistas que participaram na elaboração da Constituição italiana. No interior destas forças, é possível encontrar convergências para a solução dos problemas concretos, ainda que estas convergências não dêem necessariamente lugar a maiorias governamentais. [...]

Qual é a originalidade dos comunistas italianos?

Existe uma orientação que vê o movimento comunista internacional como uma única entidade homogênea. Ao contrário, ele apresenta um panorama variado e, no interior deste panorama, há o Partido Comunista Italiano, com suas tradições históricas e seus traços originais.

O primeiro traço característico do nosso partido é que sempre incorporou as melhores tradições democráticas e patrióticas do país, remontando até ao Risorgimento. Demos também uma contribuição notável à luta de libertação nacional, ao lado dos EUA e da coalizão de forças antifascistas. O nosso partido lutou para garantir todas as liberdades fundamentais - a liberdade de associação, de palavra, etc. - no quadro de um sistema social e econômico mais avançado, segundo a Constituição de 1948, que consideramos uma das mais avançadas na Europa Ocidental do ponto de vista democrático. E o partido comunista desempenhou um papel decisivo na elaboração unitária desta Constituição. Não acreditamos nunca, nem mesmo em 1945, que um só partido - ou uma só classe - pudesse resolver os problemas do nosso país.

O Partido Comunista Italiano é um partido de massa, não de quadros, como o são alguns outros partidos comunistas. Nós temos quase 1,7 milhão de filiados. Mais da metade são operários da indústria ou trabalhadores agrícolas, mas temos também filiados que são funcionários, artesãos, intelectuais, médicos, professores, mulheres trabalhadoras e donas de casa: em suma, o povo trabalhador no sentido mais amplo. Do ponto de vista numérico, somos o mais forte partido comunista do mundo ocidental, e o caráter de massas do nosso partido também é uma garantia contra o sectarismo. [...]

O que aconteceria se o Partido Comunista Italiano passasse a fazer parte do governo nacional?

Antes de tudo, no terreno da política interna, haveria o início de importantes reformas sociais, como as da habitação, da escola, da saúde, do urbanismo. Depois, pressionaríamos por um grande avanço da produção agrícola e industrial, levando adiante um processo de modernização tecnológica. Há urgente necessidade de uma reconversão e de uma modernização do aparelho produtivo italiano, seja para satisfazer a demanda interna, seja para fazer frente à concorrência internacional.

Em segundo lugar, e isto é de vital importância, promoveríamos um saneamento moral da vida política, social e judiciária da Itália. Este foi um dos principais temas da nossa campanha eleitoral: pôr fim à corrupção e às disfunções, seja na administração pública, seja nos partidos. Estas coisas são muito sentidas pelo povo. Por exemplo, a máquina fiscal na Itália é uma das mais caóticas, injustas e ineficientes do mundo ocidental. Queremos pôr fim à mistura entre os centros públicos e privados do poder econômico, e entre estes grupos e os partidos.

Trabalharíamos também para pôr fim ao amplo sistema de clientelismo, que é fonte de tanto desperdício. Existe um nexo entre criminalidade comum e desordem política, e, enquanto não eliminarmos a corrupção - especialmente nas cúpulas -, não poderemos esperar grandes mudanças na criminalidade comum. [...]

9. O eurocomunismo. A via européia para o socialismo [9]

Em 26 de junho de 1975, num artigo escrito no Giornale Nuovo de Milão, o jornalista iugoslavo Frane Barbieri fez uso pela primeira vez da expressão "eurocomunismo". Com o novo termo, revelava-se a preocupação em definir de forma mais precisa a crescente confluência existente entre alguns partidos comunistas da Europa Ocidental, em torno de uma série de princípios capazes de construir uma concepção de sociedade socialista apropriada aos países europeus, marcados pela existência de um capitalismo desenvolvido.

Na verdade, pensava-se com isso na identificação de certos partidos comunistas europeus ocidentais, que cogitavam a possibilidade concreta de afirmação de uma concepção de socialismo alternativa frente ao socialismo realmente implementado na União Soviética e nos países satélites do Leste europeu, um socialismo caracterizado pela presença de um Estado fortemente centralizado e duplamente controlador - dirigista no campo socioeconômico e despótico no campo político-ideológico.

Então, as elaborações particulares realizadas por três partidos comunistas do Ocidente europeu - o espanhol, o francês e o italiano - acabaram por convergir momentaneamente na afirmação de uma proposta de dimensões bem maiores, isto é, uma via que contemplasse uma parte significativa do continente europeu, uma "via européia" para o socialismo.

Entusiasta da possibilidade de construção de um pólo democrático dentro da tradição comunista, Enrico Berlinguer engajou-se no esforço em prol da irradiação para outros partidos comunistas das concepções democráticas, que, desde os anos de Togliatti, já vinham se afirmando no interior do PCI.

Homenageando em Roma Dolores Ibarruri, o senhor disse que é necessário superar as interpretações escolásticas, dogmáticas, da doutrina marxista. As controvérsias doutrinárias e políticas dos PCs italiano, francês, espanhol com Moscou induziram alguns comentaristas a falar de um "terceiro cisma", depois dos de Tito e de Mao. Não é contraditório que seu partido aceite participar, ainda que sob precisas condições, da conferência comunista pan-européia? Uma recusa não seria a prova mais convincente da autonomia que o PCI afirma haver conquistado?

Junto com outros partidos do Ocidente europeu, trabalhamos há muito tempo para adequar as interpretações da doutrina marxista e nossa ação política às realidades históricas e políticas de cada um dos países e de todo o Ocidente, libertando-nos de todo dogmatismo, oferecendo uma contribuição original ao pensamento marxista, abrindo um novo debate com os partidos socialistas. Mas a autonomia de ação política e de pesquisa teórica, nossa independência organizativa e o fim da concepção de qualquer partido ou Estado-guia, bem como as relações construtivas com os socialistas - nada disso significa que queremos nos tornar socialdemocratas ou que deixamos de ser internacionalistas (ainda que o PCI não pertença a nenhuma Internacional).

Somos contrários a que existam diretrizes e vínculos organizativos comuns: somos, porém, favoráveis a encontrar pontos comuns de pesquisa e colaboração. A este objetivo corresponde também a iniciativa que nós próprios tomamos, junto com o partido polonês, de convocar uma conferência pan-européia dos partidos comunistas, que tenha como tema o desenvolvimento da distensão e da cooperação entre todos os países europeus.

Naturalmente, nossos maiores esforços voltam-se para abrir vias originais para a transformação democrática na direção do socialismo, no nosso e em outros países do Ocidente europeu. Por esta razão, buscamos o encontro e a colaboração não apenas com os partidos comunistas, mas também com os partidos socialistas e com outras forças operárias, populares e democráticas desta parte da Europa.

Não se pode negar que, sobretudo em política externa, o PCI apareça alinhado com Moscou e seus amigos, e, ao contrário, bastante distante de Pequim.

O PCI não está alinhado com nenhum Estado ou partido. Nossa autonomia de juízo se expressou em várias ocasiões, inclusive em relação à vida soviética e a certos aspectos da política da URSS. [...]

Sobre os eurocomunistas, The Economist escreveu: "Estão a meio caminho da independência, a meio caminho da democracia". Em suma: pode-se realizar um programa comunista respeitando-se a democracia?

Nego que estejamos "a meio caminho" da independência: nossa independência - como já disse - é total. E total é também nossa adesão à democracia e às suas regras. Explicamos e repetimos que a assunção da direção política, por parte das classes trabalhadoras, pode e deve se realizar na Itália com total respeito às instituições democráticas, aos princípios de liberdade e às indicações transformadoras inseridas na nossa Constituição. Sabemos que a construção da sociedade socialista - que hoje está objetivamente madura e é necessária para a salvação da Europa - põe delicados problemas: econômicos, com o risco de quedas bruscas no desenvolvimento produtivo, e políticos, com a necessidade de evitar tentações autoritárias.

Com estas preocupações, elaboramos nosso programa de renovação e de unidade. Consideramos necessárias várias formas de gestão econômica, reconhecendo amplo espaço à empresa privada dentro de uma programação pública nacional, elaborada e realizada democraticamente. Quanto às tentações autoritárias, o modo mais seguro de evitá-las é dar ao poder político a mais ampla base de consenso e de participação dos cidadãos, realizar uma aliança entre todos os partidos populares e antifascistas, e manter viva e desenvolver a adesão dos cidadãos às liberdades.

10. O PCI e a Otan. O Pacto Atlântico como escudo da via italiana para o socialismo [10]

A menos de uma semana da obtenção do que viria a ser o melhor resultado do PCI em toda a sua história, em eleições para o Parlamento, Enrico Berlinguer concede uma entrevista a Giampaolo Pansa, do Corriere della Sera.

Nela, o secretário-geral do PCI é, mais uma vez, indagado sobre duas questões inevitavelmente postas em meados dos anos setenta: de um lado, a estratégia do "compromisso histórico" e a necessidade de uma unidade que superasse as alianças feitas somente à esquerda; de outro lado, a forma como os comunistas italianos relacionavam-se com os comunistas soviéticos e a maneira como viam a União Soviética.

Esta entrevista, que poderia ter sido apenas mais uma das tantas concedidas por Berlinguer no período, torna-se explosiva à medida que se encaminha para a parte final. Provocado por Pansa, o entrevistado afirma, de forma absolutamente inédita para um líder comunista, que a construção do socialismo em liberdade, na Itália, poderia contar com a proteção do escudo representado pelo Pacto Atlântico.

Em outras palavras, mantida a presença na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a Itália conseguiria transformar-se num país socialista e democrático, sem o risco de ser invadida pelos tanques soviéticos, como quando, em 1968, as forças do Pacto de Varsóvia reprimiram barbaramente a experiência da "Primavera de Praga". Num movimento comunista habituado, desde o início da Guerra Fria, a criticar asperamente a adesão dos países da Europa Ocidental à Otan, a declaração de Berlinguer soa como uma verdadeira heresia – mais uma heresia saída da sua boca.

Muitos temem que, se o PCI chegar ao governo, cedo ou tarde esta participação nas grandes escolhas também aqui será "insuficiente". Teme-se que se acabe transferindo para o país o sistema de governo próprio do PCI, o centralismo democrático: poucos decidem, os demais obedecem.

Não acredito. Uma coisa é o partido, no qual o centralismo democrático é o sistema que garante mais eficiência e mais democracia: não acredito que seja mais democrático o sistema baseado em frações ou em clientelas... Outra coisa é o país. Na sociedade italiana, o sistema deve permanecer o da Constituição: liberdade e direitos individuais, democracia representativa, cujo centro é o Parlamento, pluralismo dos partidos, proporcionalidade, alternância dos partidos no governo.

O senhor, de fato, fala como um "Dubcek italiano"...

Respeito muito Dubcek, mas não acredito ser semelhante a ele. Ele tem seu temperamento, eu tenho o meu.

Dubcek é diferente do senhor, mas foi também derrubado pelos tanques soviéticos. Acha injusto seu fim político?

Sim, sem sombra de dúvida injusto.

O senhor fez todo o possível para ajudá-lo?

Sim, e também depois. Não deixamos nunca de criticar e de intervir. Infelizmente, pôs-se em movimento uma lógica não passível de interrupção.

Não teme que Moscou leve Berlinguer e seu eurocomunismo ao mesmo fim de Dubcek e seu "socialismo de face humana"?

Não. Nós estamos em uma outra área do mundo. E, supondo-se que haja a vontade, não existe a mínima possibilidade de que nossa via para o socialismo possa ser obstaculizada ou condicionada pela URSS. Pode-se discutir se há vontade de hegemonia por parte da URSS sobre os países que são seus aliados. Mas não existe um só ato que revele a intenção da URSS de ir além das fronteiras estabelecidas por Yalta.

O senhor, então, se sente mais tranqüilo exatamente porque está na área ocidental?

Eu penso que, não pertencendo a Itália ao Pacto de Varsóvia, deste ponto de vista há absoluta certeza de que podemos continuar na via italiana para o socialismo sem nenhum condicionamento. Mas isto não quer dizer que, no bloco ocidental, não existam problemas: tanto é verdade que nos vemos obrigados a reivindicar, dentro do Pacto Atlântico, um pacto que não colocamos em discussão, o direito de a Itália decidir de modo autônomo seu próprio destino.

Em suma, o Pacto Atlântico pode ser também um escudo útil para construir o socialismo na liberdade...

"Também" por isso não quero que a Itália saia do Pacto Atlântico, e não só porque nossa saída abalaria o equilíbrio internacional. Sinto-me mais seguro estando deste lado, mas vejo que, também deste lado, existem sérias tentativas de limitar nossa autonomia.

Seja como for, o senhor não acredita que o socialismo em liberdade possa se realizar mais no sistema ocidental do que no oriental?

Sim, certamente, o sistema ocidental oferece menos vínculos. Mas atenção: lá no Leste, talvez apreciem que construamos o socialismo como lhes agrada. Mas aqui, no Ocidente, alguns não gostariam sequer que começássemos a fazê-lo, mesmo em liberdade. Reconheço que, da nossa parte, há um certo risco de tomar um caminho que não agrade a estes daqui e aos de lá. E também por isto espero que, em 20 de junho, os italianos nos encorajem. Nosso caminho, que é diferente daqueles até agora seguidos, é o que melhor responde aos interesses profundos do país. E nós estamos convictos de que existem as condições para percorrê-lo com confiança.

11. A austeridade como alavanca do desenvolvimento. A política de combate ao desperdício e ao consumismo [11]

Em 15 de janeiro de 1977, no Teatro Eliseo, de Roma, Enrico Berlinguer reuniu-se com um público formado por intelectuais e representantes do mundo da cultura de toda a Itália. Na ocasião, o secretário-geral do PCI lança publicamente uma idéia já apresentada às instâncias dirigentes do partido, no final de 1976, numa reunião do comitê central: a política de austeridade.

Vivia-se, então, sob o governo liderado por Giulio Andreotti, o chamado "governo das abstenções", isto é, um governo democrata-cristão puro-sangue, que não teve o voto contrários dos parlamentares comunistas, mas sim sua abstenção. Assim, a expectativa dos intelectuais reunidos no teatro romano era ouvir da boca do próprio Berlinguer uma argumentação que pudesse convencê-los de que o PCI não estava sendo manipulado pela DC.

Diferentemente disso, o que se ouve de Berlinguer é a defesa de um novo modelo de desenvolvimento econômico e de novos valores morais. Antecipando uma idéia que ganharia contornos mais nítidos nos anos oitenta, o secretário-geral do PCI critica a forma de desenvolvimento patrocinada pelo sistema capitalista no pós-Segunda Guerra Mundial, ou seja, um desenvolvimento fundado no desperdício e no consumismo extremados.

A fim de barrar a expansão indiscriminada do consumo individual, seria necessário construir um movimento pautado no combate a todas as suas decorrências: parasitismos, privilégios, destruição dos recursos naturais, desequilíbrio financeiro, etc. Isto, em nome de uma sociedade mais equânime e, ao mesmo tempo, assentada numa racionalidade nova, alternativa em relação à razão individualista possessiva, capaz de levar o próprio planeta à ruína.

Eis por que uma política de austeridade, de rigor, de guerra ao desperdício tornou-se uma necessidade irrecusável por parte de todos, e é, ao mesmo tempo, a alavanca em que se apoiar para fazer avançar a batalha pela transformação da sociedade nas suas estruturas e nas suas idéias de base.

Uma política de austeridade não é uma política de tendencial nivelamento rumo à indigência nem deve ser buscada com o objetivo de garantir a simples sobrevivência de um sistema econômico e social que entrou em crise. Uma política de austeridade, pelo contrário, deve ter como objetivo - e é por isso que pode e deve ser apropriada pelo movimento operário - instaurar justiça, eficiência, ordem e, acrescento, uma moralidade nova.

Concebida deste modo, uma política de austeridade, ainda que comporte (e requeira, pela sua própria natureza) certas renúncias e certos sacrifícios, adquire ao mesmo tempo um significado renovador e torna-se, com efeito, um ato libertador para as grandes massas, sujeitas a velhas submissões e a intoleráveis marginalizações; cria uma nova solidariedade e, como é capaz de receber consenso crescente, torna-se um amplo movimento democrático a serviço de uma ação de transformação social. [...]

Eis por que dizemos que a austeridade é, por certo, uma necessidade, mas pode ser também uma oportunidade para renovar, para transformar a Itália: como disse aqui um camarada operário, uma oportunidade que ainda precisa começar a se construir, mas que não se pode perder.

A austeridade, por definição, comporta a restrição de certas disponibilidades, a que estamos habituados, e a renúncia a certas vantagens adquiridas: mas estamos convencidos de que não é inevitável que a substituição de certos hábitos atuais por outros, mais rigorosos e não marcados pelo desperdício, conduza a uma piora da qualidade e do caráter humano da vida. Uma sociedade mais austera pode ser uma sociedade mais justa, menos desigual, realmente mais livre, mais democrática, mais humana. [...]

A política de austeridade, tal como a entendemos, deve ser assumida pelo próprio movimento operário à medida que pode cortar pela raiz a possibilidade de seguir baseando o desenvolvimento econômico italiano somente numa desatinada inflação do consumo privado, inflação que é fonte de parasitismos e de privilégios. Em vez disso, a austeridade pode conduzir a um quadro econômico e social inspirado e guiado por princípios de máxima produtividade geral, racionalidade, rigor, justiça, gozo de bens autênticos, tais como a cultura, a instrução, a saúde, a relação livre e sadia com a natureza. [...]

12. A democracia, valor universal [12]

Uma década antes de Mikhail Gorbatchev apresentar as propostas de liberalização do regime soviético nos campos econômico (a perestroika) e ideológico (a glasnost), Enrico Berlinguer lançou o desafio da necessidade urgente da alteração dos rumos seguidos até então pelas sociedades socialistas, os chamados países do "socialismo real". Um desafio centrado na idéia de que o socialismo deveria ser construído no mais profundo respeito pelas liberdades democráticas - individual e coletivamente.

Herdeiro das melhores tradições do comunismo italiano, Berlinguer apresenta no presente discurso um ponto de inflexão na sua trajetória de defesa de um projeto de socialismo entendido como o ápice das conquistas democráticas nas esferas socioeconômica e político-ideológica, um projeto capaz de recuperar a liberdade perdida no decorrer das experiências revolucionárias socialistas do século XX.

Momento marcante da luta do então secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) contra os regimes socialistas de natureza despótica, o discurso feito no ano de 1977, em Moscou, durante as comemorações dos sessenta anos da Revolução Russa, traz em si algo de "épico", em virtude das circunstâncias em que foi pronunciado, isto é, no "templo sagrado" do comunismo internacional e diante de centenas de dirigentes comunistas da URSS e de todas as partes do mundo.

Nesse contexto pouco favorável é que Berlinguer fala da necessidade de pensar a "democracia como um valor universal", rompendo de vez com a tradicional maneira de pensar a democracia no movimento comunista, ou seja, por meio da submissão da questão democrática à questão classista e da sua conseqüência natural: a oposição entre democracia burguesa e democracia operária.

Caros camaradas, dirijo a todos vocês a saudação fraterna do PCI. Com legítimo orgulho - como disse o camarada Brejnev -, os comunistas e os povos da União Soviética festejam os sessenta anos da vitória da Revolução Socialista de Outubro, anos de um caminho tormentoso e difícil, mas rico de conquistas no desenvolvimento econômico planificado, na justiça social e na elevação cultural; um caminho no qual sobressaem a sua contribuição determinante, com o sacrifício de milhões e milhões de vidas humanas, à vitória sobre a barbárie nazifascista, e o seu constante trabalho para defender a paz mundial.

Com a Revolução Socialista de 1917, cumpre-se uma virada radical na história; e assim a sentem ainda hoje os trabalhadores de todos os continentes. A vitória do partido de Lenin foi de alcance verdadeiramente universal porque rompeu a prisão do domínio, até então mundial, do capitalismo e do imperialismo, e porque, pela primeira vez, pôs na base da construção de uma sociedade nova o princípio da igualdade entre todos os homens.

Através da brecha aberta aqui há 60 anos, tomaram vida os partidos comunistas e, sucessivamente, em conseqüência da mutação nas relações de força em escala mundial realizada com a derrota do nazismo, em outros países se pôde empreender a passagem do capitalismo a relações sociais e de produção socialistas, enquanto em continentes inteiros afirmaram-se movimentos que fizeram ruir os velhos impérios coloniais, e, nos países capitalistas, cresceram as idéias do socialismo e a influência do movimento operário.

O conjunto de forças revolucionárias e do progresso - partidos, movimentos, povos, Estados - tem em comum a aspiração a uma sociedade superior à capitalista, a aspiração à paz, a uma ordem internacional fundada sobre a justiça: aqui está a razão indestrutível daquela solidariedade internacionalista que deve ser continuamente procurada.

Mas é claro também que o sucesso da luta de todas estas forças variadas e complexas exige que cada uma siga vias correspondentes à peculiaridade e às condições concretas de cada país, mesmo quando se trata de preparar e levar a cabo a edificação de sociedades socialistas: a uniformidade é tão danosa quanto o isolamento.

No que diz respeito às relações entre os partidos comunistas e operários, sendo pacífico que não podem existir, entre eles, partidos que guiam e partidos que são guiados, o desenvolvimento da sua solidariedade requer o livre confronto de opiniões diferentes, a estreita observância da autonomia de cada partido e a não-ingerência nos assuntos internos.

O Partido Comunista Italiano também surgiu sob o impulso da Revolução dos Sovietes. Ele cresceu depois, sobretudo porque conseguiu fazer da classe operária, antes e durante a Resistência, a protagonista da luta pela reconquista da liberdade contra a tirania fascista e, no curso dos últimos 30 anos, pela salvaguarda e o desenvolvimento mais amplo da democracia.

A experiência realizada nos levou à conclusão - assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista - de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista.

Eis por que a nossa luta unitária - que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental - está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal.

Camaradas, grandes são os deveres a que vocês foram chamados pelas próprias e elevadas metas alcançadas no desenvolvimento do seu país, e elevada é a função que lhes destina a delicada fase internacional na luta pela paz, pela distensão, pela cooperação entre os povos.

Todos temos ainda muito caminho a percorrer. Mas nós, comunistas italianos, estamos certos de que, desenvolvendo os resultados da Revolução de Outubro segundo os deveres e os modos que a cada um são próprios, os partidos comunistas e operários, os movimentos de libertação, as forças progressistas de cada país conseguirão determinar - na conseqüente universalização da democracia, da liberdade e da emancipação do trabalho - a superação em escala mundial da velha ordem capitalista e, então, assegurar um futuro mais calmo e feliz para todos os povos.

Agradecemos-lhes, caros camaradas, o convite para estas solenes celebrações da Revolução de Outubro, e acolham os calorosos votos, que os comunistas italianos transmitem aos comunistas, aos trabalhadores e aos povos da União Soviética, de sucesso na causa da paz e do socialismo.

13. O caráter laico do comunismo italiano. O diálogo com o mundo católico [13]

Em outubro de 1977, a imprensa comunista publica um dos mais interessantes diálogos realizados entre representantes do mundo católico e do comunista na Itália. O jornal L’Unità e a revista Rinascita trazem nas suas páginas a correspondência entre Enrico Berlinguer e o bispo de Ivrea, Luigi Bettazzi.

Às voltas com a necessidade de se fazer aceitar pelo campo católico, com vistas à legitimação da intenção dos comunistas de fazer parte do governo, quebrando assim as resistências dos setores mais conservadores da Democracia Cristã, o secretário-geral do PCI tira da gaveta e responde a uma carta escrita pelo monsenhor Bettazzi logo após o avanço eleitoral dos comunistas ocorrido em junho de 1976.

O que movia o bispo era a preocupação em relação à não preservação da liberdade religiosa numa possível futura sociedade socialista edificada na Itália. Na sua tardia resposta, Berlinguer procura dar mostras à Igreja de que, como partido que se prepara para tomar parte do governo, o PCI não objetiva, sob nenhuma hipótese, restringir a liberdade religiosa. Isto porque sua natureza é plenamente laica, não obstante o fato de portar o patrimônio teórico e político marxista.

Nesse contexto, o PCI não teria a pretensão de impor sua visão de mundo aos seus militantes, eleitores e ao resto da sociedade, mas lutar para que todos aceitassem seu programa de transformação social, rumo à construção de uma sociedade socialista e democrática, garantidora de todas as formas de liberdade individual, inclusive a de religião.

Na sua resposta à carta do bispo Bettazzi - reportando-se a uma tese do X Congresso do PCI, de 1962, sobre o papel dos crentes na construção do socialismo -, o senhor atribui à presença de católicos como tais, e na condição de candidatos independentes nas listas eleitorais comunistas, o significado de uma válida contribuição "à obra comum de renovação", a partir da "sua experiência humana e civil, religiosamente formada". Tendo em vista os reflexos específicos das posições do PCI no mundo católico, quais novos desdobramentos elas podem ter, no plano ideológico, em vista de uma compreensão e de uma cooperação entre cidadãos, católicos ou não, e de um acordo entre eles para um trabalho comum?

O senhor fala de novos desdobramentos no plano ideológico. Permita-me recordar-lhe que, na minha resposta ao monsenhor Bettazzi, escrevi: "Seria talvez exato dizer que o Partido Comunista Italiano como tal, isto é, como partido, organização política, professa explicitamente a ideologia marxista, como filosofia materialista ateísta? Responderia que não - dizia naquela carta - já que nosso esforço é no sentido de fazer viver na realidade de hoje nosso patrimônio, não o assumindo como uma concepção estática, como um axioma ideológico a ser aceito obrigatoriamente pelos membros do partido, como uma ‘visão de mundo’ totalizante.

Pelo contrário, consideramos nosso patrimônio como um conjunto de ensinamentos que nos serve para dar uma contribuição - que nos é lícito considerar de fundamental importância - para as análises científicas do desenvolvimento das sociedades humanas e da história da humanidade, das forças e das classes que em cada uma das sociedades operam e lutam, das idéias que se confrontam".

Assim é que, para ser militante e dirigente do nosso partido (e ainda mais um eleitor), "não é necessário fazer nenhuma abjuração, abandonar a própria religião ou filosofia e abraçar a visão de mundo ou professar a filosofia marxiana ou leniniana, sendo necessário e suficiente aderir ao programa político do partido comunista e trabalhar para sua realização".

Como pode observar, está excluída e banida desta linha qualquer dissimulação, mas também qualquer propósito - e também, portanto, toda expectativa - de "diluir" nosso patrimônio, teórico e político, para nos tornarmos mais "bem aceitos" por parte deste ou daquele. Já tive ocasião de dizer que o PCI não se deixou e não se deixará nunca desnaturar em uma formação extremista e sectária nem em um partido oportunista e sem princípios.

Trata-se então, antes de tudo, de ter plena compreensão de todas as novidades do PCI e também, portanto, da sua posição sobre as ideologias, ou seja, da sua plena laicidade. Se consideramos improdutivo ou pelo menos estéril insistir em velhas disputas ideológicas, o fazemos não por uma suposta preocupação de nos mascarar, não por conveniência tática e instrumental, não por hipocrisia, mas porque no terreno das ideologias não se constrói assim a cooperação, o entendimento, a colaboração. Entre as ideologias não pode haver confusão, pode-se e deve-se ter, no caso em que subsistam, respeito recíproco e livre confronto.

Hoje, há uma crise de fundo da nossa sociedade; hoje, dramáticas perspectivas se abrem diante de centenas de milhões de homens e, especialmente, das jovens gerações. Estamos vivendo uma verdadeira época de transição, em escala mundial, com o risco de nos precipitarmos numa barbárie moderna, mais nefasta do que qualquer outra. Tal resultado catastrófico pode ser evitado - esta é nossa convicção profunda -, se houver um empenho comum, de mesma magnitude, por parte de todos os partidos, dos Estados e dos movimentos ideais, filosóficos e religiosos que lutam pela liberdade, justiça, democracia e paz.

Mas, se quisermos verdadeiramente que os fundamentos de tal esforço - ou seja, do entendimento e da colaboração a que nos sentimos chamados, crentes e não crentes - não sejam construídos sobre a areia, é necessário que todos respeitemos uma condição: renunciar a impor a própria ideologia e buscar juntos o caminho para fazer prevalecer, na vida de toda a humanidade, os valores da paz, da democracia, da justiça, da liberdade, da solidariedade. Só assim o objetivo da construção de uma sociedade verdadeiramente à medida do homem pode deixar de ser mais uma utopia.

Eis a escolha que fizemos. Cabe agora aos outros, inclusive os crentes, suas instituições e organizações, fazer uma escolha semelhante. E devo dizer que, na Igreja, no pensamento e na atividade social de muitos cristãos e católicos, há uma década divisam-se sinais reconfortantes - ainda que em meio a previsíveis excessos integristas - de um reconhecimento, de uma descoberta ou, no mínimo, de uma busca da laicidade no engajamento político e civil ("mundano"). [...]

14. A afronta terrorista à democracia italiana. A reação comunista ao episódio Aldo Moro [14]

O início de 1978 assinala um período marcado pela existência de um duplo e contraditório sentimento para os comunistas. De um lado, a esperança de que, depois de 30 anos, o PCI passaria a integrar uma maioria governamental, com a possibilidade vizinha de contar com representantes em um ministério, o que concretizaria o retorno do partido à participação direta no governo do país. De outro lado, o medo diante do crescimento vertiginoso das ações terroristas levadas a cabo tanto pela extrema-esquerda como pela extrema-direita.

Quando das negociações para a formação do segundo governo liderado pelo democrata-cristão Giulio Andreotti, um profícuo diálogo fora estabelecido entre Berlinguer e o presidente da DC, Aldo Moro. Com este último, Berlinguer parecia ter encontrado o interlocutor perfeito para a concretização da aproximação imaginada entre comunistas e católicos, nos marcos da política de "solidariedade nacional" inaugurada por ocasião da formação do primeiro governo Andreotti, em julho de 1976.

Nesse contexto, não foi aleatória a escolha feita pelos terroristas do grupo de extrema-esquerda Brigadas Vermelhas de seqüestrar Aldo Moro, em 16 de março de 1978, numa ação espetacular que resultou na morte dos cinco homens da escolta. Da mesma forma, não foi obra do acaso a escolha do local onde, após 55 dias de forte tensão política, nos quais o PCI defendeu a linha de firmeza diante das exigências das BR (Brigate Rosse), os terroristas deixariam o cadáver de Moro crivado de balas. A Renault vermelha que trazia no porta-malas o corpo do ex-primeiro-ministro italiano foi deixada exatamente a meio caminho das sedes do PCI, na via delle Botteghe Oscure, e da DC, na Piazza Del Gesù. Com o assassinato covarde de Moro, as chances do PCI retornar ao governo italiano tornavam-se extremamente remotas.

Deputado Berlinguer, o senhor previa uma onda de terrorismo com este alcance e com esta lucidez enlouquecida?

Na verdade, era difícil prever que se chegaria a um ato tão grave como o seqüestro do deputado Moro. Mas era previsível - e diria que em certa medida era certo - que, diante de um avanço das forças populares e democráticas, e de um avanço, particularmente neste período, da sua unidade, haveria, como há, uma tentativa extrema de frear um processo político positivo. É uma tentativa extrema e por isso estou convicto de que, se se reagir com firmeza contra o terrorismo, ele poderá ser debelado.

Surge no país uma demanda por segurança, e o Estado responde que se deve ser intransigente na luta contra o terrorismo. Agora, o que significa intransigência?

Intransigência significa firme aplicação das leis do Estado, no âmbito, naturalmente, das normas constitucionais: significa dispor todos os órgãos do Estado, em particular os corpos de polícia e a magistratura, para que façam seu dever, e significa também que todos os cidadãos devem fazer seu dever. Mas naturalmente, não nos podemos limitar a isto: não menos importante é que o país seja governado de verdade, seja governado seriamente em cada campo, e que por todas as partes se cumpra uma ação de saneamento, de renovação, isto é, que se dê às pessoas o sinal tangível de que alguma coisa está mudando. Deste modo cresceriam o apoio ao Estado democrático e a participação dos cidadãos na sua defesa e na sua renovação.

Para o senhor, a quem beneficia o terrorismo?

O terrorismo beneficia os inimigos da democracia. E já que, na Itália, a democracia é essencialmente o resultado de uma conquista e das lutas das massas trabalhadoras e da sua unidade, o terrorismo é, antes de tudo, inimigo das massas trabalhadoras, dos comunistas, dos socialistas e de todos os que lutam pelo progresso democrático do nosso país. [...]

O que significa conciliar o dever do Estado de não ceder ao terrorismo e às chantagens dos brigadistas vermelhos com o dever do mesmo Estado de buscar salvar qualquer um dos seus cidadãos?

O dever do Estado é salvar a vida de todos os seus cidadãos. [...] Considero que a firmeza do Estado e sua nítida repulsa a toda chantagem e a toda concessão são o caminho que também permite salvar a vida de qualquer um dos seus cidadãos, além de salvaguardar os interesses gerais da comunidade nacional, que devem estar acima de tudo.

O que há por trás da atitude de alguns intelectuais e de alguns grupos de opinião que dizem: nem com o Estado nem com as Brigadas Vermelhas?

Considero que alguns intelectuais - diria poucos intelectuais, porque não gostaria que as opiniões de alguns fossem confundidas com o pensamento da grande maioria dos intelectuais -, no momento mesmo em que formulam esta proposição, demonstram ser estranhos aos verdadeiros sentimentos das massas populares italianas, as quais, em vez disso, percebem o perigo que o terrorismo e a subversão representam para as conquistas democráticas, que custaram tantas batalhas e sacrifícios.

Naturalmente, as massas populares pedem ao mesmo tempo que este Estado se renove profundamente, que esta sociedade se torne mais justa. A primeira condição, porém, é que as conquistas democráticas sejam salvas do ataque de todos aqueles que gostariam de enterrá-las.

Nos sindicatos, diz-se que o terrorismo não nasce na fábrica, mas é um fenômeno pequeno-burguês. O que significa, para o senhor, esta posição?

Isto é verdade desde sempre: desde o início do movimento operário, o terrorismo foi fundamentalmente uma expressão de exasperação dos grupos pequeno-burgueses. O movimento operário, em toda a sua tradição, sempre rechaçou as formas de ação terrorista e sempre preferiu, colocando-as em primeiro plano, as formas de ação democrática e de massa. [...]

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Marco Mondaini é historiador e professor-adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. Este texto foi publicado em La Insignia.

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Notas

[1] Dos pronunciamentos feitos, respectivamente, na abertura e na conclusão do XIII Congresso do PCI, em Milão, 13-17 mar. 1972. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L’alternativa politica e di governo che prospettiamo al paese". In: Id. La "questione comunista" II (1969-1975). Org. por Antonio Tatò. Roma: Riuniti, 1975, p. 404-32.

[2] Dos pronunciamentos feitos, respectivamente, na abertura e na conclusão do XIII Congresso do PCI, em Milão, 13-17 mar. 1972. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L’alternativa politica e di governo che prospettiamo al paese". In: Op. cit., p. 404-32.

[3] Da série de três artigos publicados em Rinascita, 28 set., 5 e 9 out. 1973, com o título "Riflessioni sull’Italia dopo i fatti del Cile". In: Op. cit., p. 609-39.

[4] Do discurso proferido na conclusão da Assembléia Nacional dos Estudantes Comunistas, em Bolonha, 27 out. 1973, e da intervenção no encontro com os operários da Anic, em Ravena, 8 nov. 1973. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Per trasformare la scuola e l’istruzione per rinnovare l’Italia" e "Lavorare per l’unità di tutte le forze popolari". In: Op. cit., p. 640-9 e 650-8.

[5] Dos discursos proferidos no Palácio do Esporte de Roma, na celebração do Dia Internacional da Mulher, 8 mar. 1974, e em Pádua, durante a campanha do referendo sobre o divórcio, 7 abr. 1974. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Le donne, il PCI e il referendum sul divorzio" e "Sventare con il no le insidie alla democrazia costituzionale". In: Op. cit., p. 683-92 e 715-25.

[6] Do relatório e conclusões apresentados na reunião do comitê central do PCI, em preparação ao XIV Congresso, 10-12 dez. 1974. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Per uscire dalla crisi per costruire un’Italia nuova". In: Op. cit., p. 823-966.

[7] Do relatório apresentado na abertura do XIV Congresso do Partido Comunista Italiano, 18 mar. 1975. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Intesa e lotta di tutte le forze democratiche e popolari per la salvezza e la rinascita dell’Italia". In: XIV Congresso del Partito comunista italiano - Atti e risoluzioni. Roma: Riuniti, 1975, p. 15-76.

[8] Da entrevista concedida à revista Time Magazine, 30 jun. 1975. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "La grande avanzata comunista". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer. Roma: Riuniti, 1984, p. 45-50.

[9] Da entrevista concedida a Carlo Casalegno, publicada em Europa, suplemento do jornal La Stampa, 3 fev. 1976. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Eurocomunismo e compromesso storico". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 56-60.

[10] Da entrevista concedida a Giampaolo Pansa, Corriere della Sera, 15 jun. 1976. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Il PCI e la NATO". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 61-70.   

[11] Dos discursos no Teatro Eliseo, de Roma, e no Teatro Lírico, de Milão, respectivamente, em janeiro de 1977 e março de 1979. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "L’austerità come leva di sviluppo". In: Antonio Tatò (Org.). Berlinguer: Attualità e futuro. Roma: L’Unità, 1989, p. 25-7.

[12] Do discurso feito na celebração do sexagésimo aniversário da Revolução de Outubro, em Moscou, 3 nov. 1977. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "Democrazia, valore universale". In: Antonio Tatò (Org.). Berlinguer: Attualità e futuro, cit., p. 28-30. 

[13] Da entrevista concedida a Benny Lai, em La seconda conciliazione. Florença: Vallecchi, 1978. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "La laicità dei comunisti italiani". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 125-7.

[14] Da entrevista concedida a Willy De Luca, no canal Rai Due, 6 abr. 1978. Extraído de: Berlinguer, Enrico. "A chi giova il terrorismo". In: Antonio Tatò (Org.). Conversazioni con Berlinguer, cit., p. 128-31.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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