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A violência em Belém

Lúcio Flávio Pinto - Maio 2007
 

O assassinato dos irmãos Novelino exibe as marcas da violência na cidade. Desta vez, a polícia agiu rapidamente e com eficiência. Mas o enredo do drama não está concluído. Muitas perguntas ainda são feitas nos bastidores da versão oficial. Enquanto não forem respondidas, o interesse coletivo não estará atendido [*].

O assassinato dos irmãos Ubiraci e Uraquitan Novelino, no dia 25 de abril, foi um dos crimes mais bárbaros já cometidos em Belém. Apanhados numa armadilha, armada provavelmente por um amigo de 12 anos, foram imobilizados, com as mãos presas para trás por algemas, amordaçados e encapuzados. Depois foram espancados e estrangulados com mangueiras de borracha. Enfiados em tambores metálicos e acomodados num espaço no qual só couberam a pancadas, foram atirados na baía de Guajará e mantidos na água, a uma profundidade maior do que 15 metros, atados por correntes a uma âncora e a um peso de concreto, por 10 dias.

O plano de morte começou a ser concebido um mês antes. Mas menos de 12 horas depois da sua execução a polícia começou a prender as pessoas envolvidas no crime. Em 10 dias o assassinato só não estava completamente elucidado, ao menos em tese, porque um dos matadores permanecia evadido. Os principais arquitetos do duplo homicídio não resistiram a 48 horas de xadrez e começaram a falar. Os cúmplices foram apanhados rapidamente ou se entregaram.

Logo a polícia apresentou uma história completa, capaz de reconstituir todo o episódio. Ainda assim, permanecia no ar uma sensação de inconclusão. Uma parte dos fatos (e talvez a mais profunda) pode não ter sido incorporada à versão oficial. O assassinato dos irmãos Novelino, além de ser um dos mais violentos já registrados, pode se revelar também exemplar da situação em Belém - e no Pará - atualmente. Se essa parte chegar a ser revelada, naturalmente.

Esse estado de insatisfação se alimenta de perguntas ainda não satisfatoriamente respondidas e das versões e boatos que circulam pelos bastidores das investigações - e muito além deles. No dia 10 o Diário do Pará surpreendeu com uma informação bombástica: o empresário João Batista Ferreira Bastos, conhecido como Chico Ferreira, acusado de ser o mandante da morte dos irmãos, divulgaria uma carta negando a autoria e atribuindo-a a terceiros, que teriam aproveitado a ocasião para acertar as contas com os Novelino, jogando a culpa em Ferreira, ou permaneceriam ocultos por trás da cena.

Quando Chico foi três dias antes ao Ministério Público Federal para um depoimento que durou 10 horas, sob total sigilo, e, em seguida, à Justiça Federal, onde foi ouvido pelo juiz Rubens Rollo d’Oliveira (que autorizou a "Operação Rêmora", da Polícia Federal), as especulações se intensificaram. Ele teria negociado a delação premiada, para ser transferido para prisão federal ou sair do Pará, em troca de informações sobre enriquecimento ilícito, desvio de recursos públicos, sonegação de imposto, lavagem de dinheiro, sociedades fraudulentas e outros tipos de delitos de colarinho branco, dos quais participou - mas na companhia de gente sem ligação com o crime. Ao menos não na fachada.

Ninguém tem dúvida que Chico Ferreira sabe muito sobre essas atividades. Sua própria carreira serve de testemunho sobre esse tipo de ascensão, que, por ser súbita e fulminante, sempre está associada a práticas ilícitas, quase sempre incluindo avanço sobre os cofres públicos. As empresas que organizou somam 27. Embora parte considerável do seu faturamento tenha por origem contratos com o governo do Estado e prefeituras do interior, a organização dessas firmas geralmente é irregular. Basta saber que algumas têm sede na terra natal de Chico, Marapanim, apenas para inglês ver.

Mas elas geraram tanto dinheiro que ao longo de 12 anos o empresário manteve negócios contínuos com os irmãos Novelino, tanto nos segmentos de atuação explícita, como combustíveis, carros, caminhões e lanchas, quanto em outros menos visíveis, como empréstimos sob condições características da agiotagem. Nessas operações, Chico sempre foi cliente ou chegou a ser parceiro de Ubiraci e Uraquitan? Essa é uma pergunta ainda não suficientemente respondida, mas não é ociosa.

Chico tinha relações múltiplas e complexas exatamente porque trafegava, com a mesma desenvoltura, pela via legal e na marginália. Não está sozinho nessa ambivalência, muito pelo contrário: é cada vez mais freqüente encontrar empresários com essa dupla face - e não só empresários: os políticos, que antes funcionavam como intermediários de negócios e porta-vozes de grupos de poder, agora são também empresários e poderosos, por causa do mandato popular que conquistaram (ou compraram), e independentemente dele.

Chico Ferreira deu bastante dinheiro a políticos e partidos. A relação com alguns, especialmente dois integrantes da bancada federal paraense, sugere mais do que simpatia e lobby. Esse teria sido um dos temas da conversa no MPF, que ele pediu, com desdobramentos na Polícia Federal e na Receita Federal, que estão acompanhando cada vez mais de perto os acontecimentos. Para poder ganhar muito dinheiro, ele precisou ter uma ponte até o erário. Aí é que aparece a ligação mais visível com os dois últimos governos tucanos, sobretudo com os oito anos de Almir Gabriel: a sociedade com o filho do ex-governador, Marcelo Gabriel.

Até 1995, ambos os sócios podiam ser tratados como empresários por mera gentileza. A partir daí, seus cacifes passaram a ser sonantes e se multiplicaram os contratos de prestação de serviço e de terceirização. Esse negócio se tornou uma galinha dos ovos de ouro - e não apenas para Chico & Marcelo: outros empresários (e associados, visíveis ou invisíveis) entraram no ramo. Sugestivamente, suas empresas tinham nomes muito parecidos, como é o caso da Service Brasil, em cuja sede os irmãos Novelino foram mortos, e a Brasil Service, que nada tem a ver com Chico Ferreira, mas leva o mesmo nome, em posição invertida. Pode se tratar apenas de crise de criatividade, mas a semelhança complica a abordagem da imprensa e faz gatos serem tomados por lebres - e vice-versa.

Mesmo que a intenção não tenha sido essa, dando aos empresários sérios o direito de se indignar com a confusão e protestar publicamente contra ela, até ameaçando a imprensa de represálias, o resultado é exatamente esse, de criar entrelaçamentos, que dificultam retomar o fio da meada. A escuridão - e mesmo a sombra - é o ambiente ideal para gatos pardos parecerem negros.

É assim que alguns dos investigadores do crime se perguntam pelos propósitos de Marcelo Gabriel quando procurou os Novelino, um mês antes, para se informar sobre os problemas crescentes de Chico Ferreira, e, exatamente no dia do assassinato, convidar um conhecido delegado da polícia civil para almoçarem, numa conversa de "cerca Lourenço", segundo uma fonte da Secretaria de Defesa Social. Coincidiu com a data mais remota de reconstituição das providências tomadas por Sebastião Cardias para a execução, quando, levado pelo radialista Luiz Araújo, sócio de Chico na Service Brasil, começou a conversar sobre a "encomenda" (três vezes na sede da empresa).

Pode ser mera coincidência, não autorizando concluir que Marcelo Gabriel estivesse sabendo de alguma intenção criminosa por parte do sócio. Mas inegavelmente o filho mais velho do ex-governador Almir Gabriel sabia do contencioso crescentemente tenso entre Chico e os Novelino. Depois de 11 anos e meio como excelente cliente, que comprava muito e pagava em dia, Chico começou a tomar mais dinheiro emprestado e a não pagar os débitos. Havia duas razões para a inadimplência: em novembro do ano passado ele foi preso pela Polícia Federal, juntamente com Marcelo e mais oito pessoas, acusado de causar prejuízo de pelo menos nove milhões de reais à previdência social e de sonegação fiscal, na "Operação Rêmora".

Além do abalo à sua imagem, seus negócios foram prejudicados pela declaração de indisponibilidade dos seus bens. Mas não só isso: Almir Gabriel não conseguiu se eleger, apesar de ter iniciado a corrida eleitoral como favorito. Não tão favorito como o então governador Simão Jatene se apresentava à reeleição. Apesar das sondagens informais indicarem o contrário, os familiares e amigos mais próximos de Almir o estimularam (e, em boa medida, induziram) a tentar voltar pela terceira vez ao governo, quebrando a ordem natural, favorável a um novo mandato para Jatene. A derrota seccionou uma das vias através da qual Chico Ferreira e seu sócio mais destacado, o filho do ex-governador, imaginavam poder realimentar seus cofres. Revertida a expectativa, não é de surpreender que ao balcão de cobrança tenham se apresentado vários cobradores, nem sempre pacientes.

O contencioso com os irmãos Novelino chegou a quatro milhões de reais. É muito dinheiro, em qualquer circunstância. Ainda mais porque o saldo devedor surgiu ou se incrementou a partir da derrota do PSDB na eleição para o governo do Estado e da prisão dos principais nomes do "esquema empresarial" de Chico Ferreira, fatos traumáticos que se sucederam em novembro.

Não é possível ainda dizer quanto, desses R$ 4 milhões, é dinheiro vivo e quanto é a parte dos juros (que seriam de 8% ao mês, segundo a imprensa, ou de 2,5 a 3%, de acordo com o deputado estadual Alessandro Novelino, o porta-voz da família; alguns observadores calculam que o valor real está acima desse limite). Em qualquer hipótese, é muito dinheiro, o que levou a Receita Federal a ligar os seus sensores, passando a acompanhar atentamente as informações para identificar a origem do dinheiro (especulou-se muito sobre escuta autorizada judicialmente, que estaria em curso).

É bem provável que para a constituição da cena do crime tenham contribuído outras vertentes, além do problema pessoal de Chico Ferreira, circunstância que dá verossimilhança ao enredo sobre outras participações (ainda que indiretas ou remotas) na trama, embora não exatamente com o sentido que ele quer dar. Há paradoxos e contradições por demais numerosos para que se aceite como definitiva a versão oficial. Ela pode ser verdadeira, mas não é suficiente.

Por que Chico Ferreira escolheria a sede de sua própria empresa como cenário para matar Ubiraci e Uraquitan? Os principais interessados na história jamais aceitariam a explicação que ele deu, de que os irmãos não foram procurá-lo na noite do dia 25 (exatamente quando Uiraquitan fazia 37 anos de idade), e muito menos que foram mortos durante um assalto praticado por terceiros, de surpresa, dentro da Service Brasil.

Logo ao saber que os filhos não dormiram naquela noite em suas casas, Ubiratan Novelino acionou seu filho, Alessandro, e fez o contato com Chico. Ao ouvi-lo dizer que não houvera a reunião programada e que já devia apenas os 60 mil emprestados dias antes (a última parcela na véspera), o pai concluiu imediatamente que Chico matara seus filhos. Teve autocontrole suficiente para levá-lo à Dioe, delegacia especializada da polícia, e ali fazer tomar por termo as declarações do empresário. A dedução do crime foi, pois, imediata.

E os elos da trama foram rapidamente reconstituídos porque Luiz Araújo levou o carro usado pelos irmãos Novelino para ser desmanchado em seu próprio sítio, em plena noite alta, acordando os vizinhos com o barulho da serra e provocando a imediata reclamação à polícia, na forma de mais um incidente causado pelo mau vizinho, que sempre Araújo foi no seu sítio, em Benfica. O que parecia uma questão doméstica logo se revelou o primeiro elemento importante de prova do duplo homicídio. Se o desmanche fosse feito em outro lugar, mais remoto, certamente, na melhor das hipóteses, a polícia levaria mais tempo para chegar aos cadáveres, ou talvez nunca mais os localizasse.

Por esses e vários outros detalhes, a execução dos Novelino, embora tramada com vagar e, de certa forma, meticulosamente, mostrou-se ao final desastrada, quase amadora. Desastrado e amadores eram, em matéria de homicídio pelo menos, Chico e Araújo, mas não Sebastião Cardias, cuja desenvoltura em colocar os irmãos no fundo da água indica tratar-se de profissional experiente. Faltou dinheiro, entretanto, para um arremate mais eficaz.

Parte do dinheiro pago por Chico a Cardias viera de um segundo empréstimo seguido de 30 mil reais que fizera na véspera com Ubiraci. O empresário estava virtualmente quebrado. Não podia contratar muita gente, sobretudo criminosos mais caros. Teve que recorrer aos préstimos do ex-policial e confiar na sagacidade de Araújo.

Mas por que Chico simplesmente não mandou matar os dois irmãos numa emboscada nas ruas ou em qualquer outro lugar, que não tivesse qualquer relação com ele? Em primeiro lugar porque o que mais lhe interessava era se apossar dos cheques que assinara na composição da dívida (e que provavelmente os Novelino ainda não haviam tentado descontar). Matar os credores sem reaver esses cheques seria improdutivo. Além disso, certamente Chico Ferreira era considerado pela família Novelino como a principal ameaça que rondava Ubiraci e Uraquitan. Embora Alessandro tenha declarado que a família desconhecia os negócios dos irmãos com Chico, era com ele e o pai que estavam os originais dos cheques.

Quando anunciaram que iam para o encontro, convocado por Chico para que finalmente honrasse as dívidas ou refizesse a forma de pagamento, adiantando uma parte, Ubiraci e Uraquitan pegaram os cheques com o pai e o irmão mais famoso, que ainda sugeriu-lhes levar apenas cópias. Confiantes na palavra do cliente, que depois de tanto tempo de relação se tornara um amigo (ou um sócio informal), os irmãos não apenas levaram os originais como aceitaram uma recomendação de Chico: ir num único carro, mas não na caminhonete que usavam, a pretexto de que assim não atrairiam a atenção da vila situada na travessa Arcipreste Manoel Teodoro, pela qual está o acesso por veículo à Service Brasil. Tanto descuido sugere que os irmãos realmente nem imaginavam que o encontro fosse servir para outra coisa além do pagamento da dívida, conforme a agenda estabelecida por Chico Ferreira.

O que tornou o empresário convincente até esse momento final e - o mais importante - o que o fez dar o enorme salto, indo dos crimes de colarinho branco, que envolvem dinheiro, corrupção e tráfico de influência, para um duplo homicídio, agravado pela crueldade na consumação e o sangue frio na premeditação? Esta é a principal pergunta, do ponto de vista coletivo, que o bárbaro crime suscita. Para respondê-la, a sociedade belenense terá que penetrar nas próprias entranhas e cortar na própria carne. Pois a execução dos irmãos Novelino, tal como aconteceu, só se tornou possível porque há assassinos de aluguel em ronda regular pela cidade; há pessoas desocupadas que por algumas dezenas de reais estão dispostas a realizar o que lhes for pedido sem fazer perguntas; há atividades subterrâneas ou francamente legais em pleno curso (como bingo, jogo do bicho, jogo eletrônico, roleta, carteado); a atuação policial se desdobra para a criminalidade; pessoas ganham muito dinheiro se apossando de recursos do erário, graças a esquemas paralelos & etc. & etc.

Alguns desses etcs. precisam assumir a própria forma na história dos Novelino. Ou então as raízes mais profundas desse crime jamais aflorarão. E, como são raízes maléficas, continuarão a produzir seus efeitos ruins indefinidamente.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006).

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[*] Este texto já estava redigido quando, na noite do dia 14, o empresário Chico Ferreira entregou à imprensa uma carta manuscrita, de 12 páginas, anunciada dias antes, com exclusividade, pelo Diário do Pará. Na nova reconstituição dos fatos, Chico foi tão vítima de um assalto praticado dentro de sua empresa pelo ex-policial Sebastião Cardias quanto os irmãos Novelino. Com uma fundamental diferença: por milagre (não explicado na carta, naturalmente), Chico escapou incólume, enquanto os Novelino foram barbaramente executados. A nova versão é completamente inverossímil, constituindo evidente estratagema de defesa para a fase judicial do processo, mas não é a história o que mais importa: o objetivo de Chico Ferreira é mostrar que sabe muito, que pode implicar muita gente e que não seguirá sozinho, qualquer que seja o seu rumo a partir de agora. Mesmo em condições psicológicas deploráveis, como alega estar, lembrou-se de uma informação relevante, só agora revelada ao público: a Polícia Federal, que o prendeu em novembro do ano passado, durante a "Operação Rêmora", apreendeu, na residência de Luís Fernando Gonçalves, auditor do Tribunal de Contas dos Municípios, o "esquema Chico Ferreira", nele incluindo os pastores da Igreja Quadrangular Josué Bengtson (que renunciou à renovação do mandato de deputado federal em meio a denúncias de corrupção) e Martinho Carmona (deputado estadual e ex-presidente da Assembléia Legislativa do Estado), outros políticos e alguns empresários. Mas não os irmãos Novelino, os dois mortos e o deputado estadual Alessandro, Chico fez questão de esclarecer. Aproveitou para pedir uma conversa com a família para mostrar-lhe que não participou da trama macabra, urdida por Cardias (para quem? Diz que não sabe) e está ajudando a esclarecer o crime. Em meio a muita fantasia barata e imaginação pobre, foi dado o recado. Como é essa a finalidade não declarada da carta, decidi manter o texto conforme o escrevera. Nele, não há espaço lógico e factual para acomodar a reconstituição oportunista de Chico Ferreira. Mas a matéria explica por que a versão oficial do crime está longe de ser a última palavra sobre essa intrincada história.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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