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Compromisso com a Amazônia

Lúcio Flávio Pinto - Dezembro 2008
 

Dois novos livros meus chegam às ruas. O primeiro é Memória do cotidiano, de 225 páginas, que contém a primeira seleção dos oito anos de existência dessa seção do Jornal Pessoal. O segundo é A agressão (imprensa e violência na Amazônia), de 186 páginas, que documenta a reação provocada não só em Belém e no Pará, mas em várias partes do mundo, pela agressão física que sofri, em 21 de janeiro de 2005, praticamente quatro anos atrás, e as ameaças de morte feitas contra mim pelo editor corporativo de O Liberal, Ronaldo Maiorana. É mais uma obra coletiva do que propriamente de minha autoria, composta por declarações de pessoas que assumiram uma posição sobre o incidente. A agressão se tornou uma oportunidade involuntária de associação em torno de várias causas nobres, como a leitura do livro demonstrará. Muitos dos meus leitores são, na verdade, autores dessa obra.

A seguir, trechos dos textos que escrevi para os dois livros.

1. Memória em livro

Ler jornais antigos é uma fonte de prazer, de conhecimento e de surpresas. Poucos, porém, podem se permitir esse deleite. As coleções de jornais são de difícil acesso e seu conteúdo é irregular. Além do mais, há um preconceito intelectual contra o que sai na imprensa. O jornal do dia anterior só serve de papel de embrulho no dia seguinte - é o que costumam dizer aqueles que subestimam o valor do noticiário cotidiano (e, muitas vezes, as próprias empresas jornalísticas partilham essa prevenção, descuidando do seu produto).

No entanto, voltar às edições do passado se torna uma aventura da mente para aqueles que conseguem separar o joio do trigo, soprando a poeira de banalidades que encobre os fatos perenes da vida, aqueles que são mesmo essenciais. A memória é reavivada, a compreensão se aguça e a recordação revitaliza o desejo de viver. É só assim, sabendo do seu passado, que um povo faz o seu presente e projeta o seu futuro.

A seção Memória do Cotidiano se tornou um dos alvos preferidos dos leitores do Jornal Pessoal, que a herdou, em 2002, de uma publicação efêmera, a Agenda Amazônica. Quando a Agenda cumpriu seu ciclo de dois anos, a seção migrou para o JP, criado em 1987 e ainda circulando a cada 15 dias em Belém. Meu novo livro reúne a primeira coleção da Memória, desdobrada em suas duas subseções: a Fotografia, que recupera as imagens do passado, e a Propaganda, que busca a visão específica dos anúncios, às vezes mais rica do que o próprio noticiário.

Como o acervo da Memória já é extenso, depois de oito anos de existência, sua republicação na forma de livro será feita por etapas. O primeiro volume só se tornou possível porque o amigo Reginaldo Cunha transformou parte da edição em brinde de final de ano do seu Cartório Conduru. Espero que outros volumes se sigam a este, caso se mantenha o apoio de pessoas interessadas na cultura, como o que foi dado neste ano por Reginaldo, e o leitor justifique a continuidade da série pela sua recepção à obra.

Tenho certeza de que ele encontrará neste registro um caminho fecundo para compreender melhor a sua terra e a sua gente, valorizando a oportunidade que tem de fazer história num lugar tão especial como a nossa Amazônia.

2. A agressão

Não organizei este livro para recontar e repudiar a agressão, mas para tentar perpetuar um momento único. De Belém, de outros lugares do Brasil e de várias partes do mundo chegaram mensagens de pessoas chocadas com a violência e indiferentes ao poder do agressor, um dos donos do maior império de comunicações da Amazônia, o "grupo Liberal" (amarga ironia, involuntária). A corporação foi formada pelo pai de Ronaldo, descendente de italianos que se estabeleceu no comércio de Belém em 1953, por coincidência, o ano da maior cheia já registrada do rio Amazonas (associação de datas jamais feita pelos herdeiros, que dela tomaram ciência através do jornal que têm procurado destruir).

As pessoas sentiram o risco da perda que a agressão causaria, se chegasse às últimas conseqüências, com a concretização das ameaças de morte. Minha agressão teve um efeito catártico: formou uma rede de solidariedade, a ligar pessoas tão distintas, espalhadas por tantos lugares, em torno da Amazônia. Para essa confraria circunstancial, a violência contra o Jornal Pessoal representa uma agressão ao direito que tem de saber o que está acontecendo realmente na região, hoje o mais importante foco da atenção ambiental do mundo. Nesse plano universal, um todo-poderoso paroquial, como Ronaldo Maiorana, tem uma dimensão liliputiana.

Qual a contribuição que ele já deu ou ainda poderá dar para a compreensão do paradoxo que a ocupação dessa fronteira expressa, de revelar novas riquezas para atender o consumo mundial e, ao mesmo tempo, destruir os recursos nativos da maior floresta tropical do planeta, em torno da qual flui sua maior concentração de água doce? Que contribuição original ele pode dar à vasta bibliografia amazônica, incluindo a cíclica - mas expressiva - produção jornalística de todos os dias, em todas as línguas? Seus poderosos veículos de comunicação conseguem se tornar motivo de matérias de algumas das principais publicações do mundo? Seu jornal gerou alguma abordagem original da Amazônia? Contribuiu para a elucidação do drama-quase-tragédia que a região vive, como na letra de um famoso bolero nacional, por isso mesmo sem final feliz?

A Amazônia comporta todos os tipos de interesses, dos mais vis aos mais nobres, dos reais aos imaginados, dos pessoais aos corporativos e governativos. Por isso mesmo, é um tema de civilização. Sua ocupação serve de marco e referência para o grau de civilização dos seus detentores, os brasileiros, e para a hipótese de solidariedade entre os humanos, a despeito de suas enormes - e às vezes brutais - diferenças. A Amazônia, para tomar emprestada a expressão valorizada pela teologia, é um sinal dos tempos, tanto quanto um elemento vital desses mesmos tempos. Seu valor utilitário já tem uma amplitude internacional. Seu valor simbólico não é menos importante, inclusive quando um fato menor se incrusta na sua história épica, porque é um dos mais significativos elementos da escrita planetária do homem.

Acho que a agressão que sofri tem esse componente de símbolo. Não por mim, mas pelas pessoas que se incorporaram ao enredo em função do significado que a Amazônia tem para elas e de sua crença, por debaixo de suas divergências, no valor da inteligência, do diálogo e do entendimento como a via adequada para a realização do plano humano em qualquer lugar, sobretudo naqueles que carregam projeções do mais íntimo de nós, como a Amazônia, ao mesmo tempo inferno e paraíso para os que a encaram. Ela integra mentalidades, mesmo daqueles que estão distantes dela, jamais a viram pessoalmente, nem podem a ela associar fisicamente suas vidas, mas a têm em suas mentes e em seus corações - hoje, como ontem. Não é por acaso que foi batizada como ente mitológico, a terra das imaginadas guerreiras amazonas.

Mas, muita atenção: quando não possuir mais florestas nativas, quando suas águas forem do mesmo volume das bacias hidrográficas remanescentes, a vida natural for menos complexa e sua biblioteca biológica tiver sido dilapidada, que impulsos a Amazônia provocará ao redor do mundo? Quem se interessará por ela? Com que propósitos?

Decidi fazer este livro convencido de que as pessoas o lerão com esta vinculação intelectual e emocional: dispostas a sair dos seus afazeres rotineiros para incorporar, ao esforço de entendimento e domínio da Amazônia, sua iniciativa de solidariedade a um cidadão agredido justamente por honrar esses compromissos humanitários. A Amazônia não pode continuar a ser a terra da barbárie, manifeste-se essa selvageria sob a forma de agressão física a uma pessoa ou utilização de trabalho escravo, imposição de preços abusivos aos seus recursos econômicos ou exploração irracional das suas riquezas naturais, a lógica do faroeste e a razão do mais forte, o cinismo operacional dos que não vêem qualquer possibilidade de autoria fora do destino colonial manifesto.

A Amazônia merece receber um tratamento inteligente, bem informado, fundado na razão, movido por impulsos generosos, tendente a um comércio justo, refratário aos padrões coloniais do passado (e do presente). Este livro foi preparado com o desejo de contribuir para essa utopia: a harmonia do homem com o mundo da natureza, no qual é componente e não o senhor arbitrário e atrabiliário, que sai a dar tapas e chutes, a gritar irado e a ameaçar de morte. Se a Amazônia somos nós, e se nós somos boas pessoas, por que o produto que geramos nega o que temos de melhor? Ou não somos o que pensamos ser?

Logo depois da agressão covarde e violenta, as pessoas foram se aproximando de mim para me amparar, me dar força, trocar palavras, oferecer préstimos, emprestar seu calor. Nos dias seguintes, foi isso que recebi de centenas de outras pessoas - por telefone, por e-mail, pessoalmente. Claro que algumas não apareceram e outras sumiram depois, assustadas por seu impulso de generosidade contraposto ao poder sem limites do próprio agressor. Não importa: o que importa é o momento em que a catarse se formou, a reação imediata das pessoas solidárias comigo - e mais ainda com a Amazônia. O corte é histórico e os estruturalistas aconselham a congelá-lo para estudá-lo. Deixo essa tarefa aos aparelhados para realizá-la.

No meu caso, registrei este momento em letra impressa para saudar a vida e execrar a morte. Na Amazônia, é sempre necessário repetir esse ritual. Assim acreditaremos que continuaremos a viver, apesar de todas as ameaças, e que ainda há uma esperança de que a nossa região querida não se torne apenas mais uma extensão do colonialismo - de ontem e de sempre. E que a próxima ciranda dos humanos seja cantada em torno da harmonia, não da agressão. Que ninguém precise ser ofendido e humilhado para nos darmos conta de que é desse barro ruim, da ofensa, que se tenta fazer a casa do futuro na Amazônia, negando-lhe o direito ao progresso e à civilização.

Obrigado a todos os protagonistas desta história. Ouso dizer a todos eles que, esta história, eles de fato a fizeram. E é gloriosa.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).



Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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