Busca:     


PD italiano, crise econômica e inovação política

Raimundo Santos - Janeiro 2009
 

O relatório apresentado por Walter Veltroni no encontro da Direção Nacional do Partido Democrático (PD), em 19 de dezembro passado, em Roma, constitui peça discursiva das mais emblemáticas da esquerda democrática destes nossos dias. O presidente do PD abre o texto afirmando que, para enfrentar a atual crise - "gerir a emergência, imaginando o futuro" -, necessita-se de "muita e boa política". A crise chega à Itália sob o governo de Berlusconi, um líder populista "em permanente campanha eleitoral". Escreve ainda Veltroni que, com seu incessante ativismo de "oposição à oposição", Berlusconi só contribui para corroer profundamente a "credibilidade moral da política", pondo a democracia italiana em "perigosa voragem". Esse tipo de popularidade, esclarece o dirigente ex-comunista, cada vez mais acentua o desencanto e a desilusão.

É nesse quadro que o PD se põe à prova. Veltroni menciona a origem do novo partido e suas promessas de inovação radical na política, na forma-partido, no plano programático, bem como o compromisso de provocar descontinuidade na classe dirigente italiana. Lembrando que o principal antecessor do PD, o Partito Democratico della Sinistra (PDS), formado em momento intenso da globalização a partir do PCI, não fugira dos desafios da nova conjuntura, agora, em nome do PD, Veltroni vem nos falar da atual circunstância de crise e também de um tempo promissor. Segundo ele, a alternativa com que ora se defronta a esquerda democrática na Itália se resume ao ultimato: "renovamento ou bancarrota". Sob forte tensão, o PD terá que mostrar que é capaz de acelerar a inovação - sobretudo política e programática -, condição sine qua non para servir ao seu país como ator decisivo nos novos tempos.

Assim como o PDS não vira a circunstância globalista passivamente, no seu relatório Veltroni registra que agora o PD tampouco está diante de uma conjuntura qualquer. Será necessário afastar o berlusconismo e o seu modelo, que é um modelo, esclarece, antes cultural do que econômico e político, no sentido de um modo de adaptar a Itália à hegemonia do pensamento neoconservador dos últimos trinta anos, posto em declínio irremediável pela crise econômica em andamento.

Em que termos o dirigente da esquerda italiana nos apresenta a circunstância que ora vivemos? "As crises são fases de transição, duras e dolorosas, das quais nunca se sai como se entrou: na forma e no modo de produção e desenvolvimento; nas relações de forças, sociais e políticas; nos modelos culturais, na hierarquia de valores." Recorda que da grande crise de 1929, sobretudo depois da Segunda Guerra, saímos com um grande compromisso entre capitalismo e democracia. Conhecemos o crescimento impulsionado pelo consumo de uma classe média em expansão (na qual entrava o mundo do trabalho, inclusive operário) e uma forte redução da desigualdade graças a políticas salariais generosas e a fortes ações redistributivistas públicas. Vimos então uma rápida expansão do Estado Social.

A crise do petróleo e a estagflação dos anos 1970, continua Veltroni, obrigaram o Ocidente a mudar de rumo: fizeram-se grandes investimentos na inovação tecnológica; elevou-se a produtividade à custa dos postos de trabalho e do poder contratual dos sindicatos; a classe média se reduziu; as desigualdades voltaram a se alargar e a ascensão social se bloqueou, inclusive devido ao redimensionamento do Estado Social. Essa é a época em que se teoriza sobre a autossuficiência do mercado e se afirma o superpoder da finança sobre a economia real, "com graves consequências também para a democracia, forçada a renunciar a qualquer soberania sobre os fluxos de capital". Conhecemos, então, uma fase de crescimento econômico ao preço de grandes desequilíbrios e elevação da desigualdade.

Veltroni se refere a outros traços característicos dos anos subsequentes de globalização. Vimos novos protagonistas - "milhões de seres humanos" excluídos do desenvolvimento - saírem à superfície em busca de reconhecimento e lugar num mundo moderníssimo. Conhecemos, no século XXI, um desenvolvimento ao mesmo tempo impetuoso e insustentável. No plano global, tivemos um desenvolvimento marcado pelo debilitamento americano e a ascensão asiática; no plano ambiental, um desenvolvimento tensionado pelas consequências que a transferência do modelo ocidental aos países emergentes provoca no clima; no plano interno, o empobrecimento da classe média, em particular nos EUA, onde ela se endividaria buscando garantir casa, saúde e instrução. Essa é a época da pretensão americana de dirigir o mundo de modo unilateral, cujo paradoxo dramático se expressa na guerra contra o Iraque.

Veltroni resume o núcleo da sua narrativa dizendo que o "pântano iraquiano" e a crise financeira ora em curso despedaçaram a ilusão neoconservadora, dando passagem "a uma nova fase, a um novo paradigma de pensamento e a uma nova época política".

Nessa circunstância complexa, que ainda se configura, o povo americano, "com muita clarividência" - celebra Veltroni como um primeiro grande evento positivo -, elegeu Barack Obama. Ao invés de fechar-se defensivamente, a América pôs-se caminho à frente, sinalizando possibilidades para um novo multilateralismo nas relações internacionais, um novo New Deal, com base na reconstrução da classe média, e uma nova fase de igualdade social. Mesmo ainda estando em curso os desdobramentos da vitória de Obama - registra Veltroni -, já cabe ao novo presidente abrir "simbolicamente" uma fase nova, "uma terceira fase do desenvolvimento humano".

Assim, a partir do binômio representado pela crise financeira e pela eleição americana, Veltroni fala de um tempo promissor, dizendo que estamos diante de uma "extraordinária oportunidade e também de uma lição para aprender e meditar". Segundo ele, na sociedade americana, a crise trouxe à tona o conflito social (por anos posto em segundo nível pelo uso ideológico das questões de raça, dos valores tradicionais, da segurança interna e externa), ativando o apoio ao programa eleitoral inovador de Obama. É como se a crise houvesse dissolvido a "névoa" que por três décadas levara setores populares e a classe média dos EUA a votar contra os próprios interesses e a favor de uma minoria privilegiada.

Veltroni retém da eleição de Obama este último ponto como tema de valor mais universal: é possível mudar a correlação de forças nas sociedades de estruturação altamente complexa. Se um processo desse tipo abre caminho novo nos EUA, nada impede que também possa ocorrer em outras formações "ocidentalizadas", aludindo-se aqui ao termo não-geográfico de Gramsci. A lição americana mostra que a condição para mudar a correlação de forças na sociedade consiste "em recolocar em primeiro plano, na competição política, a questão econômica e social, e oferecer a esta questão saída realista por meio de uma proposta de forte inovação política e programática".

Com tal referência, Veltroni nos leva à questão da "vocação majoritária", operando um redimensionamento radical da questão da hegemonia, tema outrora clássico na esquerda. Para ele, agora essa questão não mais se funda na presunção arrogante da autossuficiência. O ponto de partida de uma esquerda democrática que busca ser governo está na convicção de que as relações de forças eleitorais "não são um destino inelutável", mas também podem ser alteradas em profundidade, "se mudar a oferta política por meio da inovação da proposta que apresentamos ao país".

Veltroni deixa mais claro este tipo de visão não-atávica, ao dizer que o empenho para mudar a disposição de forças com base na política democrática exige recusar as teses da vocação "de direita" da sociedade italiana e do "insuperável caráter minoritário" da esquerda. Significa romper com qualquer ideia naturalizada da correlação de forças e com a ideia de que os reformistas e democratas estão condenados a recorrer à "manobra política" e ao "jogo da aliança" como seus únicos meios para obter consensos majoritários: "O Partido Democrático nasceu com base no pressuposto contrário. Uma profunda inovação política e programática pode mudar, até mesmo significativamente, a orientação eleitoral dos italianos".

O dirigente se refere neste ponto à necessidade, por parte de sua formação partidária, de reconquistar parte dos consensos sob hegemonia da direita (construindo-se "uma grande aliança na sociedade italiana, uma aliança com o país"). Nesta passagem, ganha significado a proposição do renovamento da política e dos projetos programáticos, apresentada no relatório como diretriz geral do PD.

Exigindo "generosidade, paciência e tenacidade", certamente esse caminho passa por uma convergência política ("heterogênea"), construída não em termos de uma luta contra o adversário, segundo a velha fórmula novecentista de aliança entre "partidos de esquerda" e "partidos de centro". Esta fórmula não só é um projeto "incompatível" com o PD ("que é um partido de centro-esquerda"), como se tornou "anacrônica" por não conter "nenhuma potencialidade inovadora". A aliança a ser buscada é uma aliança para a inovação e a mudança, cuja credibilidade se afirma mediante testes de competência para governar. E isso só será possível, diz ainda o ex-comunista, se o PD souber demonstrar "capacidade expansiva", se não delegar a outros "a tarefa, que lhe é própria, de modificar as relações de forças políticas na sociedade italiana, por meio da mobilização de uma proposta renovadora e confiável".

No passado recente, outros líderes da "tradição do PCI", entre eles Massimo D’Alema, divisaram linhas de atuação - participando inclusive de governos reformistas de centro-esquerda - que estimulassem a generalização dos benefícios da globalização. Espelhando essa "tradição", por assim dizer continuada no nexo PDS-DS-PD, Veltroni também vê movimentos favoráveis forçando passagem nesta hora presente:

Com a crise da hegemonia do pensamento neoconservador, pode-se afirmar o primado da política sobre a força e, depois da crise do unilateralismo, pode-se afirmar o multilateralismo como única via eficaz para o diálogo entre os povos, a paz e um desenvolvimento equilibrado e sustentável.

Veltroni chama a atenção para duas grandes percepções que se afirmam nos tempos conflituosos de hoje. De um lado, os perigos que pesam sobre o meio ambiente vêm impondo uma visão qualitativa do desenvolvimento, que faz da pesquisa tecnológica e de novas fontes energéticas o setor básico de uma "nova revolução industrial". De outro, cresce um segundo grande entendimento: o de que, para além da contraposição entre religião e razão, afirma-se a idéia de uma sociedade pós-secular, na qual a dimensão pública da fé religiosa é reconhecida e chamada a dar contribuição aos laços sociais e à vitalidade da democracia, desde que reconhecida a autonomia da política e a laicidade das instituições.

No discurso aqui resumido em pontos bem gerais, o PD se propõe ser ator relevante na cena italiana de hoje ao se reivindicar possuidor de um projeto nascido com base em intuição mais cultural do que política. Projeto gestado quando se começou a perceber que o novo mundo em surgimento vulnerabilizava a velha cultura de esquerda do século XX, cancelando sua pretensão de autossuficiência. Tal circunstância exigia "um pensamento novo, novas categorias para ler a história e novo alfabeto para com ela dialogar". Requerimentos indispensáveis para afirmar - assim resume Veltroni a nova utopia - o empenho do campo político-partidário dos reformistas por uma "sociedade aberta, livre e igual", com o PD ostentando - em sua interação com outros protagonistas - completa e irrenunciável identidade com a meta da democracia, "o único sistema respeitoso da dignidade de todos os seres humanos".

----------

Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Escreveu, entre outros, Agraristas políticos brasileiros (2007).



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

  •