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O capitalismo depois da Guerra Fria

Augusto W. M. Teixeira Jr. - Abril 2009
 

Costa Lima, Marcos (Org.). Dinâmica do capitalismo pós-Guerra Fria: cultura tecnológica, espaço e desenvolvimento. São Paulo: Unesp. 374p.

Com a proximidade do final da primeira década do século XXI, cientistas sociais das mais variadas vertentes são instigados a refletir sobre os rumos dos grandes temas da humanidade. Inserido nesse ímpeto reflexivo, Dinâmica do capitalismo pós-Guerra Fria abarca um amplo conjunto de questões da mais alta relevância, passando pela economia e finanças à emergência de mudanças geopolíticas e econômicas ligadas à ascensão contemporânea da China. A obra em questão adota o mesmo nome do seminário que lhe deu origem, seminário realizado na Universidade Federal de Pernambuco, entre os dias 29 a 31 de agosto de 2005. Contando com participantes de vários países, como Brasil, Índia e França, e representantes de vários campos do conhecimento, como a Economia, a Ciência Política, as Relações Internacionais e a Sociologia, o produto final do seminário consiste em uma reflexão caracterizada por uma forte veia crítica, onde o rigor científico está presente ao lado da dimensão normativa e propositiva.

Os artigos que compõem o livro discutem com maestria os temas propostos, articulando aspectos e assuntos que à primeira vista poderiam parecer distantes, sob a égide do macrofenômeno da dinâmica do capitalismo. Partindo deste grande tema para a escolha da amarração geral do trabalho, o livro reflete uma clara influência do historiador francês Fernand Braudel, apontando para um conjunto de reflexões e pesquisas sobre o futuro do capitalismo e os seus rebatimentos sobre aspectos fundamentais do momento histórico atual, a saber: o desafio ambiental e ecológico, o Estado e as novas formas de organização política, como a União Europeia, os impactos da tecnologia na organização do capitalismo, na produção e no corpo humano, a emergência das regiões como centros de organização política e econômica e, last but not least, a atualidade das políticas de desenvolvimento regionais e nacionais, com a necessidade de trazer o Estado de volta. Além de se acomodarem sob o grande tema mencionado acima, os trabalhos também convergem na tentativa analítica de compreender os efeitos das transformações na dinâmica do capitalismo sobre a periferia do sistema.

O livro está organizado em seções temáticas, e sua estrutura e conteúdo estão ordenados como se segue. Após um breve prefácio realizado pelo organizador da publicação, Marcos Costa Lima, são apresentadas as questões centrais tratadas, revelando-se desde o início a predileção pela perspectiva crítica. Na primeira seção temática, cujo nome é "Dinâmica do capitalismo", figuram dois artigos de prestigiados economistas franceses, há muito consagrados no campo da economia política e das finanças internacionais. Com o artigo que inicia o livro, François Chesnais proporciona ao leitor uma discussão clara dos processos políticos e econômicos que culminam com a dominância do capital financeiro sobre outras formas de capital: agentes do capital rentista, como fundos de investimento e de pensão, passam a sobressair em relação a formas mais tradicionais do capital.

Em perfeita sintonia com o texto de Chesnais, Claude Serfati, privilegiando uma abordagem sob a perspectiva da globalização financeira, analisa o papel da finança mundial e sua influência no processo de mundialização. O autor enfatiza que a globalização financeira não foi um evento automático, endógeno ao próprio funcionamento dos mercados nacionais e internacional, destacando inclusive o papel de agências internacionais nas transformações recentes. Serfati consegue proporcionar ao estudioso do capitalismo contemporâneo e das finanças internacionais um claro panorama histórico, discutindo de forma didática as etapas marcantes na transformação da finança internacional, incluindo em sua perspectiva a avaliação do papel desempenhado pelos Estados Unidos na construção desse novo momento na história do capitalismo. Na sua análise histórica se destaca uma excelente explicação da passagem do predomínio do pensamento keynesiano para o ideário neoliberal na organização da economia internacional. Outro aspecto forte do texto é a discussão sobre formas de crises e suas associações com a fragilidade sistêmica do capitalismo, problema sensível e contemporâneo dada a crise financeira internacional iniciada em 2008.

A segunda parte do livro aborda a questão dos espaços e dinâmicas centrais. Aqui, o economista brasileiro Carlos Aguiar de Medeiros escreve sobre a emergência da China como um fator de reordenamento da economia asiática e global, mas também sobre como as transformações domésticas se relacionam com o processo de transformação geral na ordem política e econômica internacional. A estratégia do autor, analisando a China como duplo polo da economia mundial, permite ao leitor vislumbrar um enfoque dialético, que, ao aliar os instrumentais da história e da economia política, fornece uma melhor compreensão das transformações oriundas do reposicionamento da China na hierarquia de poder e riqueza, em especial o seu papel central na dinâmica econômica asiática. Além de estudo de fundamental interesse para formuladores de políticas públicas de desenvolvimento e de inserção internacional, o texto indica as mudanças nos eixos de cooperação e nas alianças de poder que podem apontar para uma ordem multipolar.

Fechando esta seção do livro, Flávio Bezerra de Farias discute os novos rumos da União Europeia, analisada aqui sob o ponto de vista da constituição de uma nova formação estatal e dos seus reflexos sobre as populações da periferia do centro capitalista. Destaca-se a utilização interdisciplinar no conteúdo analítico, indo desde a história à filosofia política marxista e pós-marxista. Além disso, o autor fornece um amplo quadro histórico das disputas sobre os caminhos seguidos pela União Europeia e os limites impostos à participação política dos cidadãos comuns no aparelho político europeu.

Campo de estudos inter e multidisciplinar por excelência, os aspectos referentes a tecnologia são discutidos na terceira parte do livro. Gozando de amplo prestígio nas reflexões de intelectuais e acadêmicos latino-americanos, primorosamente representado pela produção da Cepal dos anos de 1950-1960 e por autores como Raul Prebisch, Celso Furtado e Aníbal Quijano, o tema da tecnologia e as suas reverberações sobre o desenvolvimento econômico na América Latina sempre tiveram lugar cativo no pensamento econômico da região.

Instigado por esse legado histórico, o economista André Tosi Furtado parte da revisão dos primeiros escritos da escola estruturalista latino-americana, fundamentalmente Prebisch e Furtado, culminando com a demonstração de como a variável energética reformula as novas estratégias de desenvolvimento, em especial industrial e tecnológico. O economista, além de enfatizar os aspectos nefastos da especialização em commodities primárias e manufaturadas e na exportação de manufaturados intensivos em recursos naturais, explica como essa escolha implica utilização excessiva de energia, contribuindo para uma maior pressão sobre os recursos naturais e energéticos. Alerta então para a necessidade de uma outra estratégia de desenvolvimento para os países da periferia, que incorpore mais enfaticamente o conhecimento como recurso fundamental. Não obstante essa constatação, alicerçada em obras de autores consagrados como Lundvall e Freeman (Costa Lima, 2008), a opção por uma nova economia orientada pela produção baseada no conhecimento não está imune de aprofundar e produzir desigualdades sociais e entre países.

Em seu artigo o cientista político, Marcos Costa Lima demonstra o papel fundamental do conhecimento na economia contemporânea, as suas possibilidades para o desenvolvimento econômico e os seus laços com o poder político no tocante a políticas e intervenção estatal, em especial nas políticas regionais. Contudo, o ponto forte deste artigo, em especial neste momento de plena crise mundial, está em mostrar o processo histórico de dominância do capital financeiro e a sua força na condução da mundialização. Porém, Costa Lima vai além ao analisar como o capital financeiro realizou um processo gradual de colonização do mundo da produção. Esse processo é amplamente discutido quando o autor foca na transformação do edifício jurídico dos Estados Unidos da América, que passou progressivamente a permitir a participação e controle de agentes do capital financeiro em atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), pesquisa básica e patenteamento. Destaca-se nessa discussão como os Diretos de Propriedade Intelectual foram instrumentalizados pelos referidos atores, no intuito de controlar recursos que podem ser vitais ao desenvolvimento social e melhoramento das condições de existência das massas, impondo a lógica da acumulação capitalista e do lucro rentista.

Apoiados neste contexto, os sociológicos Jonatas Ferreira e Aécio Amaral apresentam os dilemas proporcionados pelo avanço tecnológico e os seus choques com o ordenamento ético e moral das sociedades. Essa discussão é empreendida a partir da questão da lei de biossegurança no Brasil, focando especificamente a questão dos corpos pré-humanos, humanos e não humanos.

Na quarta parte do livro são discutidos tópicos ligados ao espaço e meio ambiente, figurando a questão das cidades e a sua ordenação no artigo de Henri Acselrad. Nessa seção Andréa Zhouri apresenta um instigante trabalho sobre o desenvolvimento e os conflitos socioambientais. A autora apresenta de forma magistral as conexões entre as transformações globais da economia e da política internacional, ligadas às políticas de ajuste estrutural e ao neoliberalismo, com a questão ambiental. A autora chega inclusive a discutir, sem entrar na seara do pós-desenvolvimentismo, o conceito e a estratégia de desenvolvimento e os seus perigos para o meio ambiente, justiça social e compartilhamento do espaço e meio.

Ainda nessa seção Klemens Laschefski discute a questão do comércio de carbono e a industrialização de paisagens, a partir do referencial teórico de Bourdieu e Lefebvre. Um dos desdobramentos que se destaca das discussões realizadas no artigo é o efeito perverso ocasionado quando as políticas internacionais, ao adotarem a postura de certas concepções de produção do espaço, favorecem setores da economia caracterizados por uma monocultura "sustentável", mas concentradora de terras e de renda.

Por fim, a última parte do livro, intitulada "América Latina e desenvolvimento", apresenta uma rica discussão no campo da economia e da política sobre o desenvolvimento, focando na questão das desigualdades regionais e das dimensões supraeconômicas do desenvolvimento. Nessa seara o economista indiano Suranjit Kumar Saha apresenta um panorama amplo das desigualdades regionais na América Latina, com ênfase especial no caso brasileiro. Apoiando-se nos escritos do prestigiado economista Amartya Sen, Saha apresenta questões de grande pertinência ao desenvolvimento regional, como a necessidade de rever as regras e o funcionamento do mercado, bem como a sua primazia na organização da economia. É interessante a forma em que o autor visualiza a necessidade de ajustar em um relacionamento mais harmônico o funcionamento do mercado com a intervenção estatal, em consonância com os objetivos de redução da pobreza e provimento da justiça social. Talvez um resultado não pretendido do autor esteja em mostrar como o aporte analítico influenciado por Keynes ainda tem vigor analítico e principalmente propositivo, quando se trata da redução de pobreza e de desigualdades regionais.

Em consonância com o artigo de Saha, o estudioso da história e do pensamento econômico latino-americano Carlos Mallorquin brinda o leitor com um texto que articula o quadro histórico do desenvolvimento econômico e de suas relações com o Estado, promovendo um retorno à filosofia política libertária, principalmente voltando a H. J. Laski. Têm grande destaque alguns usos conceituais por parte do autor, em especial quando substitui o clássico conceito de periferia pelo de perímetro. Essa substituição de ordem qualitativa não é por acaso. O autor apoia-se em uma compreensão do sistema capitalista e de sua economia como ordenada pelo que chama de "tríade" (Estados Unidos, EU e Japão), formando então blocos de poder no perímetro de cuja representação imaginária a América Latina figura. Cabe também afirmar que a própria noção de perímetro denota o caráter marginal dessa superperiferia no pensamento de Mallorquin.

Dinâmica do capitalismo pós-Guerra Fria é representante da literatura crítica não apenas brasileira, mas internacional. Com isso, demonstra o vigor de perspectivas e abordagens teóricas e metodológicas fora do mainstream. Inclusive, a própria escolha de priorizar os rebatimentos das transformações atuais da dinâmica do capitalismo, nos mais variados campos da vida social, sobre as sociedades e países periféricos evidencia o compromisso com um fazer científico crítico, que reconhece a impossibilidade de realizar uma ciência axiologicamente neutra. O livro, além de ser objeto de leitura indispensável aos estudiosos das transformações contemporâneas do modo de produção capitalista, da ordem política e econômica, fornece uma porta de entrada para estudos que agora emergem com grande centralidade, como a ecologia, o meio ambiente e os desafios das lógicas que disputam a produção de espaços.

Mesmo tendo sido escrito antes da eclosão da última crise financeira internacional em 2008, os 12 artigos do livro possibilitam entender as causas profundas da atual situação e os seus impactos sobre as sociedades, em especial as da periferias do sistema capitalista. Portanto, Dinâmica do capitalismo pós-Guerra Fria é referência obrigatória para estudiosos de Relações Internacionais, Ciência Política, Economia, História e Sociologia que busquem contato com uma produção acadêmica crítica sobre as transformações do capitalismo contemporâneo e suas implicações para as mais variadas dimensões da realidade humana e ambiental.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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