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Chico e o pandemônio da memória

M.A. Franklin de Matos - Maio 2009
 

Chico Buarque de Holanda. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 195p.

A publicação do último romance de Chico Buarque, Leite derramado, provocou na crítica literária nacional uma instigante polêmica sobre o valor artístico da narrativa e, também, sobre o alcance das influências machadianas que nela estariam presentes. A meu ver, tal discussão, embora aponte para questões reais do universo ficcional do autor, não poderá nos levar a compreender o sentido literário do romance em análise.

Depois do visível amadurecimento literário de Chico, constatado nas páginas de Budapeste, quando o tema da identidade individual de um ser humano na sociedade mercantilizada de hoje foi trabalhado com grande sensibilidade narrativa, a crítica e o público leitor aguardavam com ansiedade a publicação do novo livro. Tal expectativa, porém, foi mal conduzida já a partir das primeiras análises que se fizeram a respeito do romance, seja daqueles que, como Carlos Graieb (Veja, 05.04.2009), consideram que Chico pretende fazer um "panorama sociológico" dos últimos cem anos da história brasileira, seja daqueles que, como Roberto Schwarz (Folha de S. Paulo, 28.03.2009), dirigem o olhar para o objeto estético-literário produzido pelo autor a partir de condicionantes históricos e sociais, porém nem sempre destacando a originalidade da solução literária encontrada por Chico.

Há nessas análises, contudo, muitos aspectos positivos que nos ajudam a situar melhor a compreensão do romance. A obra de Chico é ficção literária, e tal caráter é alcançado reunindo ao mesmo tempo vários elementos distintos (sociais e literários), entre eles aspectos da história brasileira e temas caros a Machado de Assis, como o ciúme doentio, expressão do egoísmo de classe do narrador.

De que nos fala Chico? O livro narra na primeira pessoa a vida de um representante da elite brasileira, Eulálio Montenegro D’Assumpção (assim mesmo, com p, para diferenciar-se de um Assunção qualquer), que, de seu leito de morte num hospital infestado de baratas, conta-nos a história da decadência de sua família tradicional. Seus parentes mais distantes vieram ao País com a Corte de Portugal em 1808; seu avô foi comerciante de escravos à época de D. Pedro II; o pai, senador da República, barão do tráfico de escravos e autor de um plano macabro para devolver os negros à África, comerciou com armas de maneira ilegal, atividade que legou ao filho. O narrador vive a decadência dos setores burgueses atingidos pela crise de 1929. A narrativa se estende até o golpe militar de 1964, quando seu neto, "comunista da linha chinesa", é morto nos porões da ditadura. Para fechar o ciclo da ruína, seu tataraneto é preso como traficante de drogas.

Eulálio casa-se com Matilde, mulatinha rejeitada pela própria família que a adotara. A mãe de Eulálio se opõe ao casamento que, no entanto, se realiza. Matilde submete-se a todos os caprichos do marido até o dia em que desaparece, deixando a filha, Maria Eulália, ainda no período de amamentação. Antes de fugir, Eulálio a surpreende no banheiro derramando na pia o leite negado à filha; daí, o título do romance, que, segundo Schwarz, pode também ser interpretado como uma metáfora do leite derramado de nosso País, ainda imerso nas desigualdades e nas contradições sociais geradas e alimentadas por todo o período histórico abordado por Chico Buarque.

O panorama histórico é o pano de fundo da história pessoal do personagem. Nascido a 16 de junho de 1907, o protagonista é parte integrante da burguesia brasileira que já nasceu colada ao imperialismo estrangeiro (basta pensar em suas relações comerciais com o arrogante engenheiro francês Dubosc) e sempre cresceu impulsionada por valores vindos de fora. Por meio das memórias de Eulálio, a burguesia brasileira (ou parte dela, a que não se adaptou aos novos tempos do capitalismo) se desnuda diante de nossos olhos e mostra todo o seu cortejo de misérias: Eulálio é liberal, mas vive à margem da lei e beneficia-se de relações escusas com o Estado; a mãe cultiva modos europeus (só conversa com os filhos à mesa em francês), mas é defensora da escravidão.

Essa situação de convivência entre pretensos valores liberais e uma existência mergulhada no preconceito, no racismo e na aversão às classes populares [1] é justamente o cerne da personalidade de Eulálio. Sua tragédia acontece a partir de tais limites: o relacionamento fracassado com Matilde caracteriza-se por sua incapacidade de superar a idéia de posse: a esposa é vista desde o início (quando se casam, ela tem 16 anos) como propriedade de Eulálio, não apenas no sentido sexual, mas também no sentido existencial. Ele resolve se ela irá à fazenda ou à praia com os franceses; ele decide se ela irá à festa na Embaixada ou não. Ele a trata de cima para baixo, incomoda-se por Matilde não falar bem o francês, por assobiar e por gostar do maxixe, ritmo dos negros importado da África. Seu elitismo aflora continuamente ao longo do relato em trechos nos quais se revela o desprezo do personagem pelas pessoas que estão à sua volta. No hospital, ele chega a dizer: Hoje sou da escória igual a vocês, e, antes que me internassem, morava com minha filha de favor numa casa de um só cômodo, nos cafundós.

Toda essa história nos é narrada no estilo que Chico Buarque pratica desde seu primeiro livro, Estorvo, no qual, como disse Graieb, "o prosaico se mistura a efetivos achados poéticos". O que dá consistência ao memorialismo de Chico é a técnica da confusão premeditada e organizada pelo narrador. O romance é permeado pela ambiguidade, pela "vaga lembrança" e pela superposição de vários relatos sobre o mesmo fato. O narrador nos alerta: a memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de achar todas as coisas.

É principalmente com o desaparecimento de Matilde que a narrativa concretiza esse seu método primoroso: trata-se de um memorialismo singular no qual a evocação dos fatos associa-se a lampejos poéticos e a imagens de forte conteúdo lírico. Esse desaparecimento é contado de várias maneiras diferentes: fugiu com um amante, morreu num acidente automobilístico, foi internada num sanatório, suicidou-se... Qual é a versão verdadeira? Não sabemos e não é objetivo do romance esclarecer tal situação. O eixo narrativo articula-se ao redor desta ambiguidade, e tal articulação é que o organiza como ficção.

Em termos psicológicos, tal confusão justifica-se pela memória frágil de um ancião de 100 anos. Em termos literários, trata-se de uma escolha certeira de um escritor maduro e consequente. É oportuno registrar que até mesmo os interlocutores de Eulálio são cambiantes, alternam-se a cada instante: às vezes, ele fala para uma das enfermeiras; outras, para a filha, Maria Eulália; em alguns trechos, conversa com o leitor, com sua mãe ou mesmo com o pai já falecido, vítima de sua prepotência ao envolver-se com uma mulher casada.

Outro aspecto interessante da forma literária encontrada por Chico para sustentar seu romance foi destacado, ainda que, a meu ver, incorretamente, por Eduardo Gianetti (FSP,28.03.2009) em seu comentário sobre Leite derramado: o uso da primeira pessoa confessional. Para esse autor, Chico serve-se desse "recurso exigente", todavia não consegue realizá-lo com vigor, pois seus personagens são meras sombras com os quais não se consegue criar empatia. Ora, a narrativa na primeira pessoa ao estilo confessional caracteriza-se por um paradoxo: ao mesmo tempo que dá vida ao narrador, e, no caso de Chico, também ao período histórico abarcado, coloca em segundo plano as outras figuras da trama narrativa. Trata-se não de uma falha, mas do preço pago pelo autor para levar a cabo sua experiência estética particular. Para superar tal limitação, seria necessário erguer um edifício narrativo mais amplo, ao estilo de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, o que, evidentemente, não era a intenção de Chico Buarque.

Com Leite derramado, Chico repete, em outro contexto, a bem-sucedida experiência de Budapeste. Desta vez, servindo-se da ambiguidade como ponto central do discurso narrativo. E afirma-se no quadro literário brasileiro não como o panfletário "de esquerda" no qual muitos querem transformá-lo, mas no romancista criativo e realista que põe a nu diante de seus leitores, de forma artística e extremamente irônica, as mazelas da sociedade brasileira atual. Tanto quanto o Bentinho de Machado, o Eulálio de Chico ergue-se diante de todos não apenas como o marido ciumento e agressivo, e sim como o representante típico de uma elite que ainda domina nosso País, alheia aos ventos da democracia e temerosa das reivindicações dos de baixo.

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Marco Antônio Franklin de Matos é Mestre em Teoria e Crítica Literária pela PUC, Orientador Educacional do Colégio Guilherme Dumont Villares, em São Paulo.

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Notas

[1] Roberto Schwarz já analisou, em trabalhos anteriores, o caráter dualista e contraditório assumido no Brasil pela importação do liberalismo europeu por uma burguesia comprometida com o atraso e com a escravidão.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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