Busca:     


O Visconde do Uruguai na nossa cultura política

Luiz Werneck Vianna - Junho 2009
 

Coser, Ivo. Visconde do Uruguai. Centralização e federalismo no Brasil 1823-1866. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: Iuperj, 2008. 432p.

Os países, como as pessoas, sustentava Tocqueville, guardam sempre as marcas da sua origem, e as circunstâncias que acompanharam o seu nascimento e serviram ao seu desenvolvimento seguiriam influentes sobre a sua existência futura. Assim com a França, que nem com a grande Revolução de 1789 conseguiu se desprender da tradição de centralização que lhe vinha do Antigo Regime, diagnóstico comum a autores tão radicalmente diferentes como Marx e Tocqueville, com a América, que pretende fazer da sua história uma continuada reinvenção da sua hora inaugural, e com tantos outros países, como a Inglaterra e a Rússia, em que o peso das suas condições de formação está presente em suas arquiteturas institucionais.

É o mesmo Tocqueville quem aprofunda e torna mais complexa sua conceituação, primeiro dizendo que "há países em que um poder, de certo modo exterior ao corpo social, age sobre ele e o força a marchar em certa direção", e que há outros em que essa força "é dividida, estando ao mesmo tempo situada na sociedade e fora dela" (Democracia na América, Livro I, 1ª parte, cap. IV). Nesse último caso, exposta a sociedade, desde o momento do seu nascimento, a matrizes valorativas que se opõem, o conflito seria constitutivo à sua própria formação, circunstância que desafiaria a articulação de um sistema de ordem estável. Se uma matriz não tem como deslocar a outra, as duas com raízes fundas na sociedade, a coexistência entre elas, não podendo ser fruto da natureza das coisas, vai depender da ação dos homens de Estado.

No caso brasileiro, a duplicidade dessas matrizes formadoras deriva da singularidade que presidiu a criação do seu Estado - filha do acidente histórico da transmigração da realeza portuguesa para sua colônia brasileira -, e que favoreceu a solução "por cima" do processo da Independência, proclamada pelo príncipe herdeiro da monarquia metropolitana. O novo Estado, portanto, surge de uma revolução sem revolução, conformado por elites políticas portadoras dos ideais da civilização e com a missão autoatribuída de forjar, ao longo do tempo, uma nação. Essa solução aborta uma revolução nacional-libertadora, que germinava desde as últimas décadas do século XVIII, mas não retira de cena nem seus personagens nem os princípios liberais que os animavam.

O confronto aberto entre elas, inclusive militar, dominará a cena política das três primeiras décadas do novo Estado, opondo dois princípios em torno do que deveria ser a concepção da Federação: o da centralização e o da descentralização, que estarão destinados, em nossa história política, a um movimento de gangorra, ora prevalecendo o primeiro, ora o segundo, até encontrarem na Carta de 1988, ao menos no campo do nosso texto constitucional, uma solução harmonizadora.

Desta oposição e das suas cruciais repercussões na cultura política brasileira é que trata este lúcido e importante Visconde do Uruguai, estudo com que Ivo Coser combina com equilíbrio as artes do historiador às do cientista político. Em suas páginas o leitor vai encontrar uma das mais bem circunstanciadas demonstração das razões que opuseram os nossos americanos, como o notável publicista Tavares Bastos, aos nossos ibéricos, como o não menos notável Visconde do Uruguai, razões que se prolongaram no tempo, vivas ainda hoje. De um lado, a centralização, o primado do público e do Direito Administrativo, o ideal da unidade e da grandeza nacional, o papel do Estado como organizador de uma sociedade naturalmente desarticulada e agente pedagógico no cultivo das virtudes da cidadania, de outro, a descentralização, a livre iniciativa e o livre mercado, a abertura das fronteiras econômicas, o ideal do self-government para os fins da formação de uma cultura cívica e o culto do indivíduo.

Seguindo as pegadas da bibliografia, mas enriquecendo-a com sua exaustiva e criativa pesquisa, o Visconde do Uruguai do nosso autor é tanto um personagem do mundo das idéias quanto um homem de Estado. Nesse sentido, seu iberismo se faz construir por sua rendição aos fatos - e nisso será nosso primeiro praticante da sociologia política -, e não por uma mera opção doutrinária. Em abstrato, ele é tão tocquevilliano quanto seu opositor Tavares Bastos, mas a experiência dos tumultos da Regência lhe teria demonstrado os inconvenientes de uma tradução das instituições americanas para o Estado que se formava. É Ivo Coser quem o cita: "A liberdade municipal escapa, para assim dizer, aos esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis: nasce por algum modo por si mesma. São a ação contínua das leis e dos costumes, as circunstâncias e sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la."

Fora do mundo anglo-saxão, na Europa como aqui, o self-government seria uma instituição fora do lugar, e, em um cenário como o brasileiro, significaria abrir caminho para as paixões e os interesses locais indiferentes aos ideais da civilização, facultando a emergência do caudilhismo que assolava os países vizinhos, tema objeto do brilhante capítulo dedicado ao confronto entre "Civilização e Sertão". Esse o perigo a evitar, especialmente porque no nosso contexto, pontua a interpretação de Uruguai do nosso autor, a liberdade não nasceria da práxis dos indivíduos, e, assim, o interesse geral desconheceria chão firme a fim de poder se instituir.

A partir dessa percepção, Coser esclarece o verdadeiro sentido da controvérsia entre centralizadores e federalistas ou entre iberistas e americanistas - de ontem e de hoje -, demonstrando que, para os primeiros, "o conjunto de direitos que pertencem ao cidadão tomado isoladamente não se constitui no fim último da ação pública. Esses direitos e interesses somente ganham seu sentido pleno a partir do momento em que são capturados pelo interesse geral/vontade nacional". Não é difícil reconhecer que em boa parte o enredo dessa história, com seu enigma originário de provir de duas matrizes opostas, continua a transcorrer diante de nós. Para a sua compreensão a bibliografia dá mais um passo com este relevante trabalho.

----------

Luiz Werneck Vianna é sociólogo e professor do Iuperj.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

  •