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Radiografia do Peru no quadro latino-americano

Antonio Carlos Peixoto - Dezembro 2009
 

Numa série de substanciosas entrevistas conduzidas pelo jornalista Mauro Malin, o professor da Uerj Antonio Carlos Peixoto tem se debruçado desde 2006 sobre os processos políticos e sociais em curso na América do Sul. Abaixo, o mais recente resultado desta reflexão, publicada originalmente no Observatório da Imprensa e à qual nos associamos logo no começo. Além desta Radiografia do Peru, o leitor também deve consultar As muitas Américas do Sul, O Paraguai além da caricatura, Decomposição política antecede Chávez, Colômbia é violenta desde a independência, Guerrilha e drogas na Colômbia, Chile, um país feito pela guerra e Bolívia: os limites do poder da maioria. Um conjunto de textos cuja leitura completa praticamente se impõe numa hora que parece ver triunfarem, inclusive à esquerda do espectro político, as simplificações e os reducionismos, ainda que pavimentados com as melhores intenções (Gramsci e o Brasil).

Esta aula-entrevista foi concedida por Antonio Carlos Peixoto em junho de 2008. Não foi possível editá-la e publicá-la antes. Mais uma vez constata-se que uma certa dose de conhecimentos históricos sólidos muda a percepção a respeito da trajetória de um país. A conversa chegou até o panorama após as eleições de 2006, mas isso não lhe tira um fiapo da relevância para ajudar a entender o que acontece agora no país vizinho (Mauro Malin. Transcrição de Maria Almeida).

Independente contra a própria vontade

O que caracteriza o processo de independência do Peru?

Antonio Carlos Peixoto - A primeira singularidade do Peru é que ele realizou sua independência contra sua própria vontade. Existe uma coisa curiosa no que se refere à independência, nesse caso não da América do Sul, mas da América Latina no seu conjunto. Há um certo número de lugares que se tornaram depois países nos quais a independência se dá ou de fora para dentro, no caso peruano, ou por desconfiança das elites - caso mexicano. Quer dizer, os dois países não queriam a independência. Um era o vice-reino do Peru, o outro era o vice-reino de Nova Espanha.

O grande escritor mexicano Octavio Paz chama a atenção para isso: quando houve a revolução liberal espanhola em Cádiz, como houve a do Porto, a elite mexicana ficou com medo de uma metrópole liberal. Essa informação, por sinal, eu tinha antes de ler Octavio Paz, porque fui professor de História da América durante um bom tempo.

As forças dominantes no Peru tiveram medo do que poderia vir de Madri?

A.C.P. - É melhor ter uma ex-colônia se separando da metrópole, mas mantendo uma base conservadora de poder, do que se arriscar a ter uma metrópole liberal. "Podem começar a inventar aqui em cima de nós". E se separaram. O México teve lá a trajetória que teve.

O caso peruano é o seguinte. [Simón] Bolívar tinha completado o processo de independência no Norte da América do Sul, quer dizer, Venezuela e Colômbia, que ele quis unificar, chamando de Grande Colômbia, e o Equador. O Equador estava libertado.

O senhor poderia traçar alguns paralelos?

A.C.P. - Na Argentina de [José de] San Martín - um caso que era o oposto dos casos do México e do Peru - existe um consenso das elites pela independência. Não há guerra. Não há um tiro contra ou a favor da independência da Argentina. Todo mundo queria. O caso chileno é mais complicado. É importante para entender o Peru, porque se faz a independência, chega a tropa espanhola vinda justamente do Peru, esmaga a independência. [Bernardo] O´Higgins, que é o patriarca deles, o José Bonifácio deles, cruza os Andes, foge com alguns fiéis, e na Argentina, então, se organiza um exército chefiado por San Martín para resolver o negócio porque a Argentina, obviamente, não queria um vizinho - claro, separado pela Cordilheira dos Andes -, mas um vizinho próximo que estivesse ainda sob o jugo espanhol.

Há a famosa epopeia de San Martín. Ele atravessa os Andes num passo não muito alto, entra em território chileno, ele era um bom militar, derrota os espanhóis, e a independência do Chile é feita. É uma coisa que os chilenos não gostam muito de lembrar, mas eles devem a independência deles à Argentina. Isso é fato, não é interpretação.

Os exércitos que libertaram o Peru vieram da Argentina via Chile, e da Venezuela e da Colômbia via Equador

Bolívar está no Equador, San Martín no Chile. O que fica no meio dos dois? O Peru. Ocorre um fato histórico, o famoso encontro realizado em Guaiaquil, no Equador, em que os dois - Bolívar e San Martín, que são os dois grandes homens da independência da América do Sul, do ponto de vista militar - discutem. Esse encontro fixa algumas coisas. San Martín se apaga diante de Bolívar. Ele não compete. Ele é um militar, não é um homem da política, ele gosta mesmo é do ruído da corneta acordando a soldadesca todas as manhãs. Ele tem um problema complicado, porque ele é monarquista, e fez parte de uma articulação que ocorreu na Argentina logo depois da independência para que a Argentina fosse uma monarquia.

A Argentina só não foi monarquia porque faltou príncipe.

A.C.P. - Exatamente. Eles não encontraram governante. O Brasil encontrou por causa de Napoleão. Devemos isso a Napoleão, para o bem e para o mal. A Argentina não encontrou príncipe, rapidamente a opção republicana predominou. Mas San Martín, pessoalmente, é um monarquista. Ele não pode se entender com Bolívar. Bolívar é um homem ardoroso, aquela fogueira de ideias, de projetos, de tudo. San Martín é um sujeito que só entende do campo de batalha. Então, ele se apaga. Pega o navio e volta para o Chile. Do Chile volta para Argentina e depois vai morar na França. Vai morrer na França, mais especificamente em Boulogne-Sur-Mer. Eu visitei a Casa Museu dele.

Bolívar fica absoluto. Mas a combinação está feita. O exército argentino vem do Sul, quer dizer, vem do Chile; os exércitos coligados venezuelanos e colombianos vêm do Norte, do Equador. San Martín, aliás, já tinha desembarcado em Callao [o porto de Lima]. O Exército argentino estava estacionado em Callao. Bolívar chega, tomam Lima e têm lugar as duas últimas batalhas pela independência da América do Sul, Junín e Ayacucho, que os argentinos chamam de "Ajacucho".

Um sistema de dominação sobre massas indígenas

A independência poderia colocar em risco a opressão dos indígenas?

A.C.P. - Essa é a primeira singularidade: o Peru realizou a independência contra a vontade dele. Isso já mostra alguma coisa, as bases da sociedade peruana são extremamente conservadoras, porque é um sistema de dominação sobre massas indígenas. É o caso boliviano também. Como se terá liberdade? Dando liberdade às massas indígenas. O que significa isso? Há um dos textos primorosos do pensamento conservador aqui na América Latina, um poeta [González Prada, ver adiante] que ridiculariza a ideia de uma constituição liberal, e vai glosando em várias estrofes a situação do índio. O índio olha e diz: "Agora tenho liberdade", mas ele não sabe ler. Liberdade... Não lê, é analfabeto.

E não é o caso da elite peruana. Você deve ter visto no Sérgio Buarque [em Raízes do Brasil] que a diferença principal, de certos pontos de vista - não é a principal de todos os pontos de vista -, do Brasil em relação às colônias espanholas é que elas tinham universidade. Havia difusão de ensino. Mesmo que a Igreja controlasse muito, mas sempre passava alguma coisa nas malhas da rede.

Esse é um primeiro dado em relação ao Peru. Há uma estruturação social conservadora. A questão indígena é uma questão extremamente complicada e no século 19 isso vai se alternando entre conservadores que querem manter o statu quo colonial e liberais que não conseguem realizar seu projeto liberal.

Liberalismo não é possível sem adesão de uma parte da sociedade

Por que não conseguem?

A.C.P. - Porque não há como. Não existe base social em cima da qual operar. Para haver liberalismo é preciso que a sociedade, pelo menos uma parte dela, possa aderir ao projeto liberal. Se essa base social não existe, não se tem como. O liberalismo vai ser de fachada, como foi no caso peruano e em vários outros.

A questão central é que existe um problema da terra. Ele se complica porque na linha de clivagem entre conservadores e liberais há um elemento chave que é a Igreja Católica, que não pode ser dissociada da questão indígena.

A escravidão brasileira é uma instituição privada, o dono da plantação compra o escravo, alimenta o escravo, garante a capacidade de trabalho do escravo, ainda que seja debaixo do chicote. Ele não apela para a instituição pública, só apela em caso de grave distúrbio da ordem. Mas no caso espanhol, nos países de alta concentração demográfica indígena, é mais complicado, porque a força de trabalho indígena não é uma instituição privada, é uma instituição pública. É uma questão da Coroa Espanhola.

Terra nas mãos da Igreja Católica

Como se combinam os interesses coloniais e da Igreja no Peru?

A.C.P. - Logo no começo do século 16, logo que termina, digamos, o processo de conquista, a Coroa Espanhola regulamenta isso. Ou seja, o índio é um súdito da Coroa, ainda que em condições especiais. É claro que ele não tem o mesmo estatuto do espanhol que emigrou para a Colônia ou do filho de espanhóis que já nasceu na Colônia, mas ele é protegido pela Coroa. De que modo? Pelo Exército? Não. Pela Igreja... É por isso que existe o processo de evangelização, de catequese, essa praga.

A Igreja detém - os percentuais podem não ser exatamente estes, mas é a proporção - 42% da terra agricultável no México, na Colômbia esse percentual baixa para 38% e no Peru ele é um pouco menor, baixa para 33%. Existe terra à disposição, mas tem o abade, o bispo, o cardeal, sei lá, sentado em cima da terra.

Obviamente, é preciso liberar esse fator de produção. Os famosos três fatores: terra, mão de obra e capital. É preciso liberar isso, botar esse percentual de terra, que é um terço da terra do país, à disposição do mercado. Mas é preciso também assegurar a mão de obra. Ou seja, os índios que trabalhavam naquela terra têm de ir para o mercado de trabalho.

Latifúndio usou muita violência contra os ejidos

E, além disso, certa parte da propriedade agrícola, mas essa eu não sei de modo nenhum de quanto era, pertence aos índios, por meio das comunidades tradicionais, os chamados ejidos. Esse processo de pressão em cima dos ejidos é um processo permanente na história do Peru. Ele vai durar desde a independência, cento e tantos anos. São os latifundiários avançando na terra ejidataria.

E aí não tem mutreta jurídica, é pau puro. Invadem, mesmo. Organizam meia dúzia de jagunços, como foi feito aqui no Brasil, só que aqui no Brasil não havia terra demarcada, não tinha ejido. Invadiam, matavam índio. Lá, aliás, se fez muito mais do que aqui. Avançavam em cima dos ejidos, principalmente os ejidos que eram limítrofes ao perímetro da propriedade agrária do hacendado espanhol. A pressão em cima do ejido era total.

Existe, portanto, um elemento importante de violência na história peruana.

Internamente, aquilo era extremamente violento... O choque entre conservadores e liberais passava em algum medida por aí, porque os conservadores queriam manter o estatuto da Igreja e queriam manter a Igreja como responsável pelas populações indígenas. Achavam que era a melhor maneira de garantir a paz social. Tinham medo de uma indiada solta pelo país. Achavam que isso era fator de distúrbio.

Os liberais - e nisso eles captam algum apoio dos conservadores, principalmente dos proprietários agrários conservadores - querem liberar a terra da Igreja e liberar a mão de obra indígena, assaltando os ejidos. Isso é a base da sociedade peruana durante a maior parte do século 19.

Chile tirou terras do Peru e da Bolívia

Quais são os fatos mais significativos?

A.C.P. - Eu disse, quando falei do Chile, que no final dos anos 30 do século 19 existe uma tentativa de união Bolívia-Peru. Andrés Santa Cruz tenta uma união Bolívia-Peru. Santa Cruz é do altiplano. Ele nasceu no que hoje é o altiplano boliviano. Mas naquela época, em termos de altiplano, não havia grandes diferenças entre Bolívia e Peru. Chega a tomar o Peru, o então ditador do Peru, que é [Agustín] Gamarra, vai buscar refúgio no Chile, Diego Portales vê que uma união boliviano-peruana não é a melhor coisa para o Chile, vem, ataca e derrota a ideia da confederação boliviano-peruana. Gamarra volta para o Peru e mantém a ideia da confederação, invade a Bolívia, mas dessa vez ele é derrotado pelos bolivianos, e a ideia da junção dos dois países acaba. Isso é significativo.

O segundo fato importante é a mesma guerra do Pacífico que tirou o mar da Bolívia. Eu já me referi a isso quando falei do Chile. O pampa mineiro, como é chamado no Chile, la pampa minera, la pampa salitrera, é terra de ninguém. É da Bolívia, mas os bolivianos não cuidam disso. Empreendedores - empreendimento de risco -, homens de negócio chilenos, uns cinco ou seis, vão para lá, ocupam o território. Em algum momento a Bolívia pede pagamento de impostos. Eles se recusam a pagar, por razões óbvias. Deviam ter cobrado no início, agora é tarde, Inês é morta. Vamos para o pau. Vem a guerra. O Peru entra na guerra ao lado da Bolívia não só por uma questão de solidariedade... Existe. Existe solidariedade do povo peruano com o boliviano. Existia. Pode ser que agora, com Evo Morales, as coisas estejam um pouco diferentes. Mas existia.

Qual o desfecho do conflito?

A.C.P. - São derrotados. O Chile toma Antofogasta, que é província boliviana. Toma duas províncias peruanas, Tacna e Arica, e ocupa Lima.

Um caso único na América Latina de ódio entre dois povos

Outro fator que impregna o Peru é o ódio ao Chile. O ódio ao Chile é muito forte. Eu acho, pelo que eu conheço, que é o único caso na América do Sul - eu diria Latina - em que se tem, efetivamente, ódio da população de um país em relação a outra.

Vale lembrar umas declarações desse maluco, [Ollanta] Humala, pouco antes das eleições peruanas. Saiu na imprensa. Dizia o seguinte: "Eu só entro no Chile montado num tanque". Isso é uma maluquice, eles não vão recuperar isso nunca. A não ser que haja um terremoto no Chile e metade da população morra. Eu ainda brinquei com o cônsul do Chile: "Ele está querendo apressar a morte dele". O chileno disse: "É melhor que você diga do que eu, mas é isso que iria acontecer".

O senhor teve a esse respeito uma experiência pessoal.

A.C.P. - Eu fui professor em Paris de uma garota peruana, Clara Garland. O pai dela era um jornalista, ligado até a algo que está na antologia política do Peru, o assassinato dele por meio de uma esquadra de "búfalos" do Apra [Aliança Popular Revolucionária Americana]. Búfalos do Apra são uma tropa de choque para dissolver comício adversário na porrada, ou para garantir os comícios do Apra. Incidentalmente, Alan García [atual presidente do Peru] foi búfalo do Apra.

Clara é da família Miró Quesada, do mais importante jornal peruano, que é o El Commercio. Todo país sul-americano tem um grande órgão de imprensa ligado às classes conservadoras. No Brasil era o Estadão. Quando eu andei pelo Peru, nos anos 1980, ainda era o El Commercio. Ela foi minha aluna, voltou para o Peru, e um ano depois eu comecei a andar pelo Peru. Passei um ano e pouco andando bastante por lá, cheguei a dar aula no Instituto Rio Branco de lá, na Academia Diplomática.

Então, localizei-a, ela me convidou para almoçar num sábado e me disse o seguinte, pelo telefone: "Ay, maestro, no se olvide - ela já tinha me dito isso em Paris -, na casa de meu avô a palavra Chile não é mencionada".

Eu fui almoçar lá, ela me recebeu na porta, repetiu: "Nesta casa não se pronuncia a palavra Chile. Aqui não entra nada chileno, nem vinho". Eu disse: "Isso é ótimo, Clara, porque, como não vamos beber vinho peruano, o vinho vai ser francês". Ela aí riu e disse: "É, francês".

Chilenos usaram a mansão dos Miró Quesada como alojamento

Era uma mansão enorme no bairro de San Isidro. Lima tem dois bairros elegantes, San Isidro e Miraflores. Miraflores tinha até um pouco mais de comércio, mas San Isidro, não, era uma coisa puramente residencial. Parecia os Jardins em São Paulo. Pega o Jardim mais elegante, não sei qual é, e aquilo é San Isidro. Era uma mansão gigantesca, um palácio. E a palavra Chile não se pronuncia por patriotismo, mas também porque na Guerra do Pacífico a casa deles, dos Miró Quesada, que era a mesma, foi "requisitada" pelo comando do exército chileno de ocupação de Lima, e alguns oficiais do Estado-Maior se alojaram ali. Ou seja, os Miró Quesadas foram desalojados. O ódio era realmente mortal.

Interessante, eu tive um colega na Faculdade de Arquitetura, até tinha um nome inesquecível, e único, chamava-se, salvo engano, Rodolfredo Tolentino Navincopa. Era um índio paraguaio, por sinal um índio grande. Grandalhão. Era da minha turma. E quando chegamos ao 5º ano, eu falei: "E você, Rodolfredo, vai ficar no Brasil?" Ele falou: "Meu avô me desonra, meu pai me desonra se eu ficar no Brasil. Não vou ficar". Efeitos da Guerra do Paraguai, cem anos depois.

A.C.P. - Mas ali, Peru e Chile, existe mais ódio do que do Paraguai em relação ao Brasil.

O presidente pega o dinheiro do Peru para gastar em cabarés parisienses

Voltemos à Guerra do Pacífico.

A.C.P. - Essa guerra tem alguns fatos que mostram bem o que é o Peru. O primeiro deles é o seguinte. O então presidente do Peru, que era Mariano Prado [1865-68], recolhe todo o encaixe em ouro que existe no equivalente ao banco central peruano, pega um navio e vai para a Europa dizendo que vai comprar armamentos. Desce na França, passa quase todo o tempo da guerra em Paris, no meio de cabaré, das putas... Coisa escabrosa. O país foi sangrado, realmente.

Foi condenado à morte por traição à pátria. Deixou passar alguns anos, para esfriar um pouco o negócio, e voltou ao Peru. Obviamente, como havia uma ordem de prisão e de condenação à morte, havia ali uma escolta do Exército esperando por ele no porto. Ele desceu do navio e fez que nem o papa [João Paulo II] costumava fazer, caiu de quatro, beijou o solo amado do país e disse com voz embargada pela emoção que ele beijava o solo pátrio; diante dessa demonstração de patriotismo exacerbado ele foi perdoado. Essa elite latino-americana é calhorda! Disputou a eleição seguinte, Mariano Prado. Quase ganhou. Não ganhou porque a eleição foi roubada, não quiseram dar a vitória a ele, porque acharam que era demais. Isso é América do Sul!

Peru e Bolívia sofrem até hoje com separação entre o topo da pirâmide e o resto do país

Como o senhor resumiria a questão social do Peru à época?

A.C.P. - Uma parte ínfima da população está no topo da pirâmide social, e esse topo não tem nada a ver com o resto do país. Nada. Na verdade, você não tem é país. Não existe país. O problema de inclusão, em casos como o Peru e a Bolívia, é dramático. Continua sendo. Porque o México começou a resolver isso mais cedo, com a Revolução Mexicana de 1910. Agora, Peru e Bolívia, não; isso adentra o século XX e envolve a esmagadora maioria da população.

Existem relatos documentados da Guerra do Pacífico que dizem o seguinte: os soldados peruanos foram para a guerra acreditando que se tratava de uma guerra pelo poder travada entre dois generais: general Peru e general Chile...

Não existe uma comunidade nacional, não existe país. O resultado é que o Peru tem de perder a guerra, como a Bolívia tem de perder a guerra. Porque o Chile é um país estruturado. Ele já tem uma ideia nacional, uma ideia de nacionalidade, de pátria, coisa que o Peru não tem.

Esse fato marca a história do Peru. Você tem o Mariano Prado se mandando, gastando dinheiro do país na putaria lá na França. Você tem uma total ausência de consciência nacional e o desastre econômico. O Peru se endividou. Diante da Inglaterra, principalmente.

O grande produto de exportação do Peru, nessa época, é o guano, um adubo que é esterco. Em algumas ilhas do litoral peruano, ilhas desertas, secas... Porque em Lima não chove...

Quem visitou Lima diz que as casas nem precisariam ter telhado...

A.C.P. - Eu me hospedei num hotel, que não era ruim. O hotel tinha uma espécie de varanda, de jardim de inverno, que não tinha telhado. Fui lá, estive lá no inverno duas vezes, peguei umas temperaturas até gostosas, 12º, 13º, e não tem chuva. O céu pode ficar meio acinzentado e pode ter garoa dez vezes mais fraca que a de São Paulo. Então, tem umas ilhas secas ali perto, o estrume de aves marinhas é depositado, e em algum momento aquilo pode ser exportado como adubo.

Londres ficava com o dinheiro da alfândega peruana

Para pagar dívidas contraídas durante a guerra o Peru é obrigado a entregar, a entregar - eu disse entregar, não é se comprometer a pagar nada, não - a alfândega para companhias inglesas. O dinheiro vai direto para Londres, são eles que controlam a alfândega peruana.

O terceiro fato importante no caso peruano, do século 19 - além das guerras e do conflito entre conservadores e liberais -, que vai continuar marcando a vida social e cultural do país, é uma intelectualidade que se destaca dentre as colônias sul-americanas.

A elite intelectual mais poderosa da América do Sul

O senhor sustenta que é de um padrão superior às dos outros países do continente.

A.C.P. - Não há na América do Sul uma intelectualidade como a peruana. Ela é explosiva. É um ponto sobre o qual eu e Werneck [Luiz Jorge Werneck Vianna] concordamos. Principalmente na literatura. Pelo amor de Deus, não vamos comparar a literatura brasileira com a literatura peruana, porque não vai dar para a saída... Você pode jogar talvez Graciliano Ramos, Guimarães Rosa... Não joga Machado de Assis, porque aí é deprimente. O placar é deprimente...

É porque o senhor não gosta do Machado de Assis, já conversamos sobre isso...

A.C.P. - Não vai disputar com os grandes escritores peruanos.

Quais são os escritores?

A.C.P. - No século 19 havia esse poeta que ridiculariza o liberalismo aplicado às coisas indígenas, [Manuel] González Prada. É o primeiro que diz claramente: "Com este tipo de sociedade não há guerra que nós possamos ganhar... Não existe. Este aqui é um país ferrado... Isto aqui não é país... Só tem jeito por uma via, que é pela educação. Ou nós integramos a população indígena pela via da educação, ou vamos continuar na situação em que estamos..."

Ele não diz: "Vamos perder todas as próximas guerras", mas é como se tivesse dito. Esse, na minha opinião, é um dos maiores intelectuais sul-americanos do século 19. Ele entra no positivismo, mas não é um positivista ortodoxo, de religião positivista, com apostolado, como Auguste Comte. Ele é o que se chama de positivismo ilustrado. Pega algumas coisas do positivismo, forma o pensamento incorporando essas coisas...

Ricardo Palma escreve um lindo livro chamado Tradiciones peruanas, é um bom poeta também, um grande poeta. Tem mais gente no século 19, mas isto aqui não é um tratado de literatura.

"Não há ninguém como Mariátegui na América Latina"

Nós vamos chegar ao fim do século 19, quando o Peru começa a se desvencilhar do fardo que foi a Guerra do Pacífico do ponto de vista econômico.

No século 20, um dos maiores intelectuais da América Latina... Não. Eu diria que é um bom intelectual para o mundo, que é [José Carlos] Mariátegui. Não tem homem como Mariátegui na América Latina. Não nos equivoquemos. Não me venham falar de Euclides da Cunha, que é brincadeira. Euclides da Cunha foi um homem que passou pela escola. Mariátegui nunca passou por nada. E você tem o opositor dele, [Victor Raúl] Haya de la Torre. Mas ainda tem água para rolar...

Voltamos, então, ao relato histórico?

A.C.P. - O que eu acho importante nas três primeiras décadas do século 20 peruano não são tanto os incidentes políticos, mais ou menos normais. Eles obedecem a uma certa lógica que é própria da América do Sul, eu não diria nem mais da América Latina. Acho que a América Central é outra história. E o México, que em 1910 teve a famosa revolução que jogou o país numa outra direção, pelo menos de estabilidade institucional, não teve golpe de Estado.

O caso peruano é um caso em que se sucedem presidentes, ditadores, não há nada de excepcional.

Mineração diversificada

Algo a assinalar do ponto de vista econômico?

A.C.P. - Eu diria que há um deslocamento da base da economia, que deixa de lado o guano e passa a operar mais a mineração, com uma característica um pouco diferenciada: se o Chile depende pesadamente de um produto mineral, o cobre, o Peru tem uma capacidade exportadora de minerais um pouco mais diversificada. A base da atividade mineradora é mais larga. Tem cobre, tem prata. A mesma prata que era explorada pelos espanhóis desde o final do século 16, no século 17. Continua sendo um grande exportador de prata. Ele tem cobre, ouro, ferro, zinco, chumbo.

Há, então, este deslocamento para uma economia baseada essencialmente na mineração. O Altiplano entra um pouco no comércio internacional com a lã de vicunha. Vicunha é uma prima da lhama, só que mais sofisticada. A lã da vicunha tem preço alto no mercado internacional.

"Europeus não reconhecem, mas Mariátegui foi um pensador marxista de categoria mundial"

Mas o grande elemento que diferencia o Peru dos demais países da América do Sul encontra-se no terreno do pensamento. Qual pensamento? Filosófico? Não. Não é bem o caso. O pensamento peruano foi extremamente rico e é um pensamento voltado diretamente para a questão social e política. Primeiro, porque se tem no Peru, sem dúvida alguma, o maior nome do marxismo latino-americano, e eu diria até um dos bons nomes do marxismo do ponto de vista mundial.

É claro que a Europa, com aquela sofisticação na qual existe uma boa parte de ser metida a besta, não reconhece isso. Os grandes teóricos do marxismo, alemães, franceses... Apesar de que a base mesmo, os grandes foram sem dúvida os alemães. Tinha um ou outro francês, um ou outro inglês, mas a base mesmo foi alemã. Eles não vão reconhecer isso, mas o nome de José Carlos Mariátegui é um nome que dispensa apresentações.

E, por outro lado, há, na complementaridade de Mariátegui, o nome de um indivíduo - finalmente ele vem à tona, acho que eu já citei o nome dele diversas vezes, Víctor Raúl Haya de la Torre, que, como já mencionei, é o pai de todos os populismos latino-americanos, e, apesar de ser um homem teoricamente menos formado do que Mariátegui, é de uma inteligência, de uma agudeza intelectual, sem dúvida alguma, excepcional.

São dois livros que todos os interessados nesta parte do mundo têm que ler. Um deles é Sete ensaios sobre a realidade peruana, de Mariátegui. E o livro de Haya de la Torre, que se chama O anti-imperialismo e o Apra.

O chollo e o militante estudantil

Fale um pouco sobre esses personagens.

A.C.P. - As trajetórias são diferentes. Mariátegui é um homem de origem pobre, é um chollo, tem mestiçagem de índio. Ele ganhava a vida, quando jovem, duramente como linotipista. Ele vai organizando a vida intelectual dele, lendo, é um autodidata, um homem excepcionalmente inteligente, que vai se formando a duras penas, e começa a organizar círculos de discussões e de aprendizado do marxismo. Aqueles famosos círculos que nós tanto odiávamos. Eu, você, alguns outros éramos consensuais em relação a isso.

Ele edita [1926] uma revista chamada Amauta. Esse nome tem um significado simbólico do ponto de vista dos índios [sábio quéchua; entre as populações indígenas, pessoa idosa, com autoridade moral].

Enquanto Haya de la Torre é um homem que vem de uma classe média bem situada, não de Lima, de uma cidade que fica mais ao norte do Peru, Trujillo. Ele vai estudar em Lima e começa uma militância política extremamente intensa no movimento estudantil. Está em Lima fazendo a Faculdade de Direito, mas é um ativista estudantil em tempo integral. Ele é da Universidade de San Marcos, a grande universidade pública do Peru. Foi fundada pela Igreja Católica [primeira universidade das Américas, 1551], agora é estatal.

Haya de la Torre dirige lá uma greve. Essa greve não é muito diferente daquelas coisas que a UNE do meu tempo propunha. Só que ele estava propondo isso uns quarenta anos antes. Coisa interessante, um dos pontos reivindicatórios dessa greve é que a universidade fosse aberta à noite, que à noite houvesse cursos para operários. Era a famosa ideia da aliança operário-estudantil, que já estava na cabeça do Haya de la Torre ainda garoto - 21, 22 anos. Era a inclusão da classe operária no plano educacional.

Luta pioneira para universidade receber operários

A ideia da democratização passava por isso.

A.C.P. - A ideia da democracia de um modo geral. Uma democracia de massas, ampla, que incluísse o proletariado. A ideia básica de Haya é a reforma universitária. A ideia de uma reforma universitária, na América Latina, surge em dois países. Primeiro na Argentina, não podia deixar de ser, que era o país mais culto. É o famoso "Manifiesto de Córdoba", de 1918. Não fala em universidade aberta aos operários, de noite. Isso é Haya de la Torre, esse era um dos pontos da reforma universitária.

Haya de la Torre foi comunista. O Armênio Guedes tem razão quando dizia - hoje em dia, é claro, isso já mudou -, mas até algum momento ele estava certo quando ele dizia que o maior partido do Brasil era o partido dos que já foram do Partido [Partido Comunista Brasileiro, Partidão]. Só que isso não é uma coisa muito diferente para vários outros países aqui desta parte do mundo. Haya de la Torre foi comunista, ele cruzou com Mariátegui, mas tinha uma militância que era mais direta, de ativista político. Não quer dizer que não lesse, Haya de la Torre não era ignorante. Você pode ser extremamente inteligente e ser meio ignorante. Não era o caso do Haya, ele lia as coisas, mas era diferente de Mariátegui, intelectual em tempo integral.

Mariátegui, na Europa, tem contato com as ideias de Gramsci, Labriola, Croce, Sorel

Mariátegui começa a incomodar um pouco o governo, porque a Amauta torna-se uma revista de boa circulação, obviamente nos meios intelectuais, nos meios da elite. Vários deles liam para saber o que o outro estava pensando. Isso coincide com um momento dos anos 20, da criação do Partido Comunista - em toda parte do mundo os partidos comunistas foram criados nos anos 20, depois da Revolução Russa -, o então ditador, que se chamava [Augusto] Leguía, um sujeito também esperto, resolve tentar cooptar Mariátegui. Ele dá uma bolsa de estudos para Mariátegui ir para a Europa. Era tudo o que Mariátegui queria, para aperfeiçoar a formação marxista dele. Não é um período muito longo. Não foi fazer um doutorado de quatro anos. Ele passa algum tempo principalmente na França, mas passa algum tempo também na Itália, onde vai ter contato com o pensador marxista ali dominante, ainda não é [Antonio] Gramsci, é [Antonio] Labriola. Ele é muito influenciado também por um pensador liberal italiano, [Benedetto] Croce. E pelo pensamento do sindicalismo revolucionário de Georges Sorel, que foi ligado ao Partido Socialista e depois saiu. Era um pensamento extremamente vigoroso, apesar de pouco sistemático.

O nosso herói passa algum tempo lá pelas Europas, volta para o Peru e continua suas atividades intelectuais. Leguía até gostava dele, tinha certa simpatia por ele... Vai deixando. Não existe uma política de repressão mais pesada contra Mariátegui, ele vai desenvolvendo as atividades ligadas ao PC, tem a revista Amauta, e ele escreve esse livro, que, como livro, pelo menos que eu saiba, é a única obra de Mariátegui. Mas existem inúmeros artigos que ele ia publicando na Amauta. E é quando começa a se dar a polêmica, a famosa polêmica, que é a mães das polêmicas dos marxismos contra os populismos, a polêmica contra Haya de la Torre.

Haya de la Torre se afasta do Partido. Ele vai tentar criar um partido dele mesmo, que vai receber o nome de Apra, porque, tal como Trotski, Haya pensava numa revolução que fosse continental. Não era Aliança Popular Revolucionária Peruana; era americana, mesmo, porque aquilo era para o conjunto da América.

Haya de la Torre cria uma categoria nova, a Indo-América

Isso inclui o México?

A.C.P. - Não sei se Haya chegava a pensar especificamente no caso mexicano. O México já vivia um processo de institucionalização da Revolução, quer dizer, o PRI [Partido Revolucionário Institucional] já estava sendo criado. Mas ele pensa claramente na América do Sul.

O negócio dele é muito voltado para a América do Sul, e ele introduz no projeto revolucionário dele uma categoria que não é muito bem especificada, mas que faz muito sentido, principalmente se nós olhamos as coisas de hoje: é a Indo-América, a América dos países onde as massas indígenas são mais numerosas, constituem a maioria sensível da população, 60%, 70%, 80%. Naquela época o grau de mestiçagem era menor, as populações indígenas viviam mais segregadas.

A articulação da ideia da Indo-América e de uma revolução que fosse continental, que é uma ideia mais trotskista, não é muito clara nem muito bem feita em Haya. Mas Haya era um escritor político, não tinha o cuidado, o refinamento do intelectual de articular muito bem todos os conceitos que criava. Ia jogando as coisas. O que não o desmerece em nada. Eu não sou partidário da superioridade do texto do intelectual sobre o texto do político. De modo nenhum. Existem textos políticos que são coisas maravilhosas. Pessoalmente, acho que o texto de Haya é uma dessas coisas. Há dois livros no Peru que são faróis, vão iluminar a América Latina e, mais especificamente, a América do Sul.

Esses livros tiveram alguma influência nos partidos comunistas?

A.C.P. - É claro que para os Partidos Comunistas que estavam então se formando, e eram povoados por gente muito primária do ponto de vista intelectual, o contato com o livro do Mariátegui é mais difícil, mais precário. Eu não sei, por exemplo, quando Astrojildo Pereira, o único intelectual entre aqueles nove soturnos que criaram o PCB em Niterói, leu Mariátegui. Certamente leu, mas eu gostaria de saber quando. A influência intelectual que o PCB sofreu foi muito mais dos argentinos, por causa daquele tempo que [Luís Carlos] Prestes viveu em Buenos Aires. Foi de Américo Ghioldi, creio que também de Álvaro Yunque. Mas isso já é uma questão dos anos 30 do século 20, não é um problema dos anos 20.

O primeiro a enunciar os princípios do populismo

O livro de Haya de la Torre, não. Teve curso. Quais são as principais ideias ali expostas? Para quem tem ideia do que é populismo, é muito fácil de entender. Só que ele foi o primeiro a dizer. Onde você tem classe, substitua por povo. O primeiro ponto. O povo, por motivos tautológicos, que não precisam ser explicados, constitui a Nação. Então, a revolução tem um caráter nacional. Não é uma revolução de classe. Todas as ideias da burguesia nacional, sobre a qual nós nos fartamos de discutir, Haya de la Torre já tinha levantado no final dos anos 20. É porque realmente aqui no Brasil as coisas deviam ser mais difíceis, eu tenho a impressão que nem o texto de Haya de la Torre apareceu por aqui, acho que demorou bastante.

Uma revolução anti-imperialista...

A revolução é nacional, porque existe um fator externo que atropela, perturba e atravanca a vida dos países, que é o imperialismo. Por isso o próprio livro tem o nome de O anti-imperialismo e o Apra.

Dentro do país existe a representação do imperialismo que Haya de la Torre vai chamar de antinação. Aquela velha ideia dos comunistas dos anos 50, aqui no Brasil, isso é uma coisa que vinte e tantos anos antes, trinta anos, está em Haya de la Torre. Antinação, imperialismo, isso precisa ser extirpado, eliminado, apesar de que Haya não é, de modo nenhum, um indivíduo sanguinário, sedento de sangue. Quer dizer, não é nisso que ele pensa.

... sem poder apoiar-se em classe operária e campesinato

Mas o que ele diz muito claramente é o seguinte: Não vamos sonhar - é uma porrada no Mariátegui, ele não diz mas deve ter pensado - como Mariátegui está sonhando. Como é que se vai fazer uma revolução aqui com classe operária e campesinato? Não tem como fazer. Isso sozinho não faz revolução em lugar nenhum da América do Sul nem da América Latina. Não vai dar certo. É preciso uma aliança muito ampla de segmentos da sociedade, de classes. Isso é dirigido contra a antinação e contra o imperialismo. Aí, tudo bem, nacionaliza uma porção de coisas, faz a reforma agrária, etc.

Mariátegui também tem alguns dados estatísticos sobre o tamanho da classe operária, e ele é obrigado a confessar, constatar, mas isso até antes de o Haya escrever O anti-imperialismo e o Apra, que a classe operária é pouco numerosa. Mas ele não pensa em aliança com o que seria o setor nacional produtivo. Ele pensa numa aliança com as camadas médias urbanas, pequena burguesia.

Em 1931, derrota eleitoral contestada

Quando foi a primeira eleição disputada por Haya de la Torre?

A.C.P. - Haya de la Torre cria o Apra. Ele então vai disputar uma eleição presidencial [1931]. Ele foi derrotado por [Luis Miguel] Sánchez Cerro. Sánchez Cerro ganha as eleições, é uma coisa muito tumultuada porque os apristas dizem até hoje que essa eleição foi roubada. Os outros, os partidários de Sánchez Cerro, já morreram todos. Mas a elite peruana diz que não foi bem assim. Essas coisas é impossível saber.

Há um analista peruano extremamente inteligente, escreve bem, Guillermo Thorndike, ele é de origem se não me engano irlandesa, ou inglesa. Escreveu um livro muito interessante sobre a história política peruana. Ele é aprista. Era, hoje não sei. Ele diz que as eleições foram nitidamente roubadas.

Apra, o grande partido político popular

Mariátegui morre muito cedo, em 1930. O fator principal vai ser agora que o Apra existe já como partido político. O Apra aparece na cena peruana, nos anos 30, como o grande partido político popular. Mas acontece um incidente que mutatis mutandis, do ponto de vista factual, formal, se parece um pouco com o que ocorreu aqui no Brasil na chamada Intentona [tentativa insurrecional comunista de 1935]. Haya de la Torre, após a ilegalização do Apra, em 1932, chama uma insurreição. Na cidade de Trujillo aconteceu uma coisa que marcou o destino do Apra, como o que aconteceu na Intentona marcou o destino do PC aqui no Brasil, do ponto de vista das relações com as Forças Armadas.

Militares assassinados, pecha eterna

Em Trujillo aconteceu que a Guarnição Militar em algum momento se rendeu. Foi presa. E a revolução, o levante estava sendo debelado, e as chamadas tropas fiéis ao governo estavam marchando sobre Trujillo, quando um maluco, pelo que se sabe, um doido qualquer entrou no cárcere onde estavam os militares, eram setenta e poucos, e deu ordem de fuzilamento.

Nunca mais o Apra conseguiu se desfazer da pecha de assassino, covarde. Fuzilar criaturas presas e indefesas. As Forças Armadas não aceitavam o Apra em hipótese alguma. É claro que não aceitavam por outras razões, mas o discurso era esse. Era um partido de assassinos, de covardes que assassinavam gente indefesa, etc. [Sánchez Cerro será assassinado em 1933 por um militante isolado, em Lima.]

Vida dura para o Apra...

A.C.P. - Os anos 30 são um período difícil. O aprismo é reprimido, vai para a clandestinidade, mas é um partido forte, bem estruturado. A militância aprista também é uma militância extremamente corajosa, isso, diga-se de passagem, subjetivamente, porque frequentemente nós, os antigos comunistas, achamos que coragem na clandestinidade era um monopólio nosso. Não é bem assim; o aprismo ensina que não é isso. A militância aprista era uma militância pesada. Acreditava na redenção do Peru, acreditava numa porção de coisas, e mesmo com a maior parte da direção aprista, Haya de la Torre à frente, no exílio, os militantes continuavam ali batalhando.

Um ano bom para a democracia no continente, 1945

O assassinato de Sánchez Cerro desencadeia uma crise de poder. No governo de Manuel Prado Ugarteche [1939-45] haverá alguma estabilização. Em 1945, o quadro se clareia. Foi um bom ano para a democracia na América Latina. Fim da Guerra, os Estados Unidos apoiando a derrubada dos ditadores. Convocadas eleições, ganha [José] Bustamante y Rivero [1945-48]. Quem garante a sobrevivência política de Bustamante y Rivero no Parlamento é o Apra. O Apra ganha o nome de Partido Aprista Peruano. Bustamante y Rivero, coisa curiosa, era casado com uma tia de [Mario] Vargas Llosa e morava em La Paz. Era peruano, mas estava metido lá em La Paz. Voltou e foi eleito presidente.

Começa então outro período tumultuado. Em 48, o Apra, que garantia politicamente a viabilidade do governo, ou, para usar um termo atual, dava governabilidade a Bustamante y Rivero, decide romper o pacto constitucional e apelar para o golpe, para a sublevação, o levante.

Levante na Marinha, cinco anos de exílio numa embaixada

É um levante que começa e acaba na Marinha peruana, cuja principal base se encontra em Callao. É um levante principalmente de marinheiros. Marinheiros, cabos, sargentos dos navios de guerra, eles tomam a esquadra, descem em Callao e marcham sobre Lima. A situação fica sob controle, mas Bustamante y Rivero perde a capacidade de governo. Esse golpe é uma coisa muito estranha. Eu já ouvi inclusive versões de que o golpe não foi coordenado por Haya, mas por outros integrantes da direção aprista, que Haya ficou furioso porque não foi informado e o negócio acabou dando em água de barrela, como se diz na gíria. O que valeu um novo período longo de repressão para o aprismo e forçou Haya de la Torre a um exílio maluco durante o qual ele ficou cinco anos na embaixada da Colômbia.

A ditadura de Odria

Vai-se ter longa ditadura de [Manuel] Odría, que vai durar de 48 a 58, dez anos. Ele carrega o país até 58 nessas condições: não é uma ditadura cruenta, sanguinária, mas é um governo altamente repressivo. O aprismo, o comunismo são perseguidos, reprimidos, existe prisão, e mais uma vez a militância aprista vai lutar na clandestinidade. De um ponto de vista literário quem dá uma boa ideia desse período é Vargas Llosa no livro que eu considero a obra-prima dele, Conversa na catedral.

Em 58 há novas eleições e volta ao poder aquele mesmo cidadão do final dos anos 30, Manuel Prado Ugarteche. É parente, de outra geração, daquele Mariano Prado que foi o sujeito que fugiu do Peru, botou em caixa o ouro no navio e se meteu lá nos cabarés de Paris. É uma família que, realmente, prestou grandes serviços ao país.

Comunistas apoiam Belaúnde Terry em 1962

Em 62 há uma eleição importante. Haya se apresenta candidato, ganha a eleição, mas tem um veto das Forças Armadas. Em 63 há outra eleição, [Fernando] Belaúnde Terry ganha com apoio dos comunistas. Os comunistas odiavam o aprismo, por motivos óbvios. Como nós odiávamos Getúlio.

Antes de completar o mandato, Belaúnde Terry é deposto por um golpe de Estado de Velasco Alvarado. Como eu costumo dizer não só para os meus alunos da UERJ, mas também em conferências para outras pessoas, é aquele tipo de golpe com o qual toda a esquerda latino-americana sonha. Sonhava. É o golpe militar de esquerda. Nacionalista.

A síndrome da derrota no Peru

O que houve de relevante antes da ascensão de Alvarado?

A.C.P. - É preciso dizer algumas coisas sobre esse período conturbado do século 20 que termina em 68.

Primeiro, assim como a Bolívia, o Peru também é um país que sofre de uma síndrome da derrota, que é uma das coisas mais fortes da vida boliviana. Essa síndrome da derrota também ocorre no Peru. É um país marcado pelo insucesso nas questões que o levaram à guerra. Tenha ele provocado essa guerra, ou tenha a guerra sido provocada por outros.

Nós já vimos, no final dos anos 30 do século 19 é a guerra movida pelo Chile contra a União Peruana-Boliviana. É a guerra do final dos anos 70, a Guerra do Pacífico, na qual o Peru, país mais forte do que a Bolívia, é derrotado. Em 1932 há um problema grave de fronteiras esbarrando aqui no estado do Amazonas, numa cidade chamada Letícia. Havia ali uma disputa de fronteiras entre o Peru e a Colômbia. Uma situação muito tensa, muito difícil, conflituosa, e, como de costume, a Colômbia foi mais rápida... Quer dizer, não a Colômbia ser mais rápida, é de costume Peru e Bolívia serem mais lentos. [Em 1941 o Peru conquistaria 200 mil quilômetros quadrados de selva amazônica num conflito com o Equador.]

O pensamento militar peruano segue o padrão dos vizinhos?

A.C.P. - O problema central para as Forças Armadas peruanas passou a ser o seguinte. O que torna fraco um país como o Peru, que não é inteiramente miserável, tem uma certa capacidade exportadora, tem uma intelectualidade de peso? É claro que essa questão já estava levantada pelo González Prada no século 19. Era a estrutura social, a exclusão social, o tema que mais frequentemente aparece e reaparece na nossa vida sul-americana.

E está de novo aí, na ordem do dia com Evo Morales e com Lula inclusive, ainda que obviamente por outros caminhos e mecanismos.

As Forças Armadas peruanas criaram, em 1948, na mesma época em que aqui no Brasil se criou a Escola Superior de Guerra, o Caen - Centro de Altos Estudos Nacionais. Depois desses conflitos com a Colômbia e com o Equador. O Caen tomou uma direção diferente de todas as escolas de altos estudos militares criadas na América do Sul e na América Central. Ele se dedicou a estudar as fraquezas do país e como superá-las, em vez de colocar a ênfase no inimigo interno, na subversão, e definir um papel de aliança com os Estados Unidos na luta do mundo livre contra o comunismo.

Uma doutrina voltada para a questão nacional, não para o "inimigo interno"

As Forças Armadas peruanas tiveram uma socialização e criaram um tipo de doutrina inteiramente diferente, mais voltada para a questão nacional e não para o combate ao inimigo interno e para a aliança com os Estados Unidos no plano internacional contra o comunismo.

Isso explica a tal ditadura nacionalista que sobe ao poder em 68, com Velasco Alvarado.

Há alguns livros interessantes sobre essa questão do Caen e do pensamento, da doutrina do exército peruano, por um sujeito que era ele mesmo major do Exército, chamado Víctor Villanueva. Escreveu algumas coisas interessantes sobre o Exército peruano. Eu li há muito tempo.

Nos anos 60, há a guerrilha que estoura no Peru. São dois focos guerrilheiros, na melhor tradição castrista, que Cuba procurou imprimir por aqui, criar o foco guerrilheiro. Um é feito em 1963 por Hugo Blanco. O outro, por Luis de la Puente Uceda, em 1964.

Guerrilhas fracassaram, mas alimentaram opção por golpe militar

Que importância política tiveram essas guerrilhas?

A.C.P. - O golpe militar de 68 tem muito mais a ver com a percepção de perigo vinda das guerrilhas, apesar de que as guerrilhas foram debeladas, não criaram graves problemas. Não houve uma guerra civil pesada, nada disso. O exército peruano conseguiu rapidamente debelar esses focos guerrilheiros.

Teve muito mais a ver com isso do que alguma coisa que tenha se passado com o governo de Belaúnde Terry, que não provocou uma insatisfação generalizada. A lógica do golpe militar é muito simples: esses dois focos guerrilheiros nós conseguimos debelar, mas e se vier algum que não consigamos debelar? Não é melhor que nós façamos as coisas que eles dizem que vão fazer? Vamos tomar o poder e vamos acertar uma série de coisas. O golpe militar tem muito mais a ver com isso, ele é uma resposta às frentes guerrilheiras que foram criadas.

Um contexto de ditaduras

Nós estamos num contexto no qual o Brasil já é uma ditadura, 68 é o ano trágico, que nós conhecemos, do Ato Institucional; a Argentina é uma ditadura, ainda não é a ditadura sanguinária do Videla [Jorge Rafael Videla, 1976-1981]; a Bolívia está sob a ditadura de [René] Barrientos. O Chile ainda iria caminhar para ela, porque [Salvador] Allende é eleito em 70, e também o Uruguai toma um rumo que vai desembocar em ditadura.

Outra razão para o golpe é que, como já se viu, em 63 Haya de la Torre se candidatou e recebeu um veto. As Forças Armadas disseram "não assume", convocaram outra eleição. Nessa eleição, Haya quer se candidatar novamente, mas aí o veto não é à vitória possível do Haya, provável, eu diria, é à candidatura dele. Não se candidata.

E em 68 as Forças Armadas iam sofrer um novo desgaste ao ter que vetar outra vez Haya de la Torre. Ora, junta-se isso com a percepção de risco que estava sedimentada dentro do exército peruano, a alternativa é o golpe.

Uma ditadura antiaprista

A ditadura de Alvarado perseguiu o Apra?

A.C.P. - O golpe é dado. E nós vamos ter um período de dez anos no qual o Peru vive sob governos militares. É claro que nós vamos ver adiante o que ocorre nesses governos, mas digamos desde logo que em 78 o então presidente ditador, mas um ditador brando, convoca uma eleição para eleger uma constituinte. Essa constituinte vota uma Constituição em 80. Constituição promulgada, abre-se o processo eleitoral e há eleições para a presidência.

O golpe visa, de um lado, executar um conjunto de políticas chamadas nacionalistas, mas de outro lado deslocar a força do Apra dos setores populares. A ditadura peruana é uma ditadura antiaprista, e é preciso esmagar o Apra. Mas não se trata de um esmagamento pelos métodos clássicos utilizados para esmagar uma série de partidos, não só comunistas, mas outros tipos de partidos também na América Latina, mais particularmente América do Sul, ao qual nós estamos nos referindo, ou seja, a prisão, a tortura, o assassinato político, etc. Não foi esse o método, apesar de que houve arbítrio, houve violência, mas mínima, ínfima, se nós comparamos com outros casos semelhantes nesta parte do mundo.

O Apra é tão persistente no Peru quanto o peronismo na Argentina

A questão é política. É preciso apresentar esse regime militar como sendo um regime popular, do povo peruano, e enfrentar o aprismo nas suas bases. Não deu certo. O Apra é um fenômeno persistente na história peruana, extremamente persistente, como o peronismo na Argentina. Tentar deslocar, acabar com o peronismo na Argentina, que loucura, isso! Tentar acabar com o aprismo no Peru... Em 2001, Alan García, que concorreu pelo Apra, não ganhou a eleição. Em 1985, o mesmo Alan García, pelo Apra, ganhou eleição. E ganhou novamente em 2006. Não conseguiram.

As políticas efetuadas se revestem realmente de um fortíssimo conteúdo nacionalista. Se nós aqui nos anos 90, desde o final dos anos 80, falamos muito nas privatizações, a política do Peru se caracteriza, ao contrário, pelas estatizações. Não estatização de setor privado nacional, que era extremamente tênue, mas existia. Não era inexistente. Existia alguma coisa que poderia ter sido estatizada. Mas não é isso. O que se estatiza é tudo que é investimento externo. A epopeia das estatizações começa com a encampação de dois campos petrolíferos, La Brea e Talara. Foram estatizados o sistema de telecomunicações, os bancos, os seguros, filé mignon do investimento estrangeiro. Praticamente não sobra investimento estrangeiro no Peru. Criou-se um capitalismo de Estado, de base nacional, que convive com o setor privado nacional, mas isso equivale a colocar o mico-leão dourado em frente a um gorila. Uma coisa ínfima diante de um setor estatal reforçado.

Temporada de estatizações

Mais do que isso, o que era uma atividade privada, fragmentada, é estatizada. É a questão da pesca. Um dos grandes produtos de exportação do Peru é a pesca, principalmente a farinha de peixe, a farinha de anchoveta, que é o grande produto marinho deles. Criou-se uma espécie de cooperativa de pescadores, mas de diferentes áreas do litoral peruano, é um litoral longo, e uma espécie de direção central disso. Rompeu-se a relação entre o produtor, no caso, o barco pesqueiro, algum entreposto privado ou um supermercado, ou uma tenda de venda de peixe e o consumidor. Isso agora é regulado diretamente pelo Estado. Todas as atividades significativas na economia peruana passaram para as mãos do Estado.

Investimentos, se não me engano, americanos que existiam na agricultura também são nacionalizados. Se não me falha a memória isso acontece principalmente na agricultura canavieira. O Peru tem uma faixa de agricultura canavieira perto do litoral que não é grande, obviamente, se comparada com a brasileira, mas é significativa. O que levou a ameaças de retaliação vindas de Washington, com base numa emenda apresentada [no início dos anos 60] pelo senador [Bourke B.] Hickenlooper.

A caminho do inferno com uma ditadura bem-intencionada

É preciso levar em conta também que é um período distante apenas oito ou nove anos dos fatos cubanos.

A.C.P. - A revolução cubana? Sim. As relações entre o regime de [Juan] Velasco Alvarado e os Estados Unidos são influenciadas por isso. Se é verdade que o caminho do inferno é pavimentado de boas intenções, essa é uma ditadura bem-intencionada. Ela é uma ditadura voltada, o quanto pode ser, para as necessidades do povo de um país pobre. Havia uma parcela gigantesca da população vivendo em condições da mais extrema miséria. Ela é uma ditadura preocupada com a resolução disso. Mas eu acho que o Peru é certamente o melhor exemplo de que todo processo ditatorial sul-americano que pretende governar sem partido, sem base de apoio, não funciona, não dá certo.

Quando falarmos da Argentina eu vou ter que tocar nesse tema com maior profundidade.

Por que o senhor diz isso?

A.C.P. - O sistema partidário peruano tinha um eixo de vertebração central que era dado pelo Apra, historicamente o grande partido do Peru desde os anos 30. O golpe se dá em 68, há trinta e tantos anos que o Apra é o centro estruturador do sistema partidário. O resto é um conjunto extremamente heteróclito de pequenos partidos, legendas de ocasião, e existe um Partido Comunista, que é um partido fraco.

Mesmo que a ditadura peruana não tivesse colocado os partidos na ilegalidade, mas, repito, sem um processo de perseguições sistemáticas, mesmo que não tivesse feito isso, não poderia contar com o Apra para governar, porque o Apra era o único partido do Peru que tinha capacidade de exercício de governo através dos seus quadros de direção. O resto ele ia ter que comprar apoio no varejo desse conjunto heterogêneo de partidos. Ela poderia retirar um certo número de quadros para ocupar as posições chaves de governo, já que não podia contar com o Apra para isso, porque o Apra era o inimigo a ser destruído.

O governo de uma burocracia militar despreparada

Mas Alvarado não fez isso. Ele não podia contar com os comunistas, porque é uma coisa impensável que no ano de 1969, 70, uma ditadura militar nacionalista se apoie nos quadros que um partido comunista fraco, débil, poderia eventualmente fornecer. Aí não dava. Outra Cuba? Nesse caso as coisas seriam muito complicadas.

Quem governa? Quem governa é uma burocracia militar sem competência para tal. Eu não quero desfazer das Forças Armadas, que em todos os países da América do Sul foram celeiro dos quadros governamentais. Você pode recrutar um certo número de quadros, mas você não pode montar governo única e exclusivamente apoiado em quadros que saem das Forças Armadas. Daria para fazer algumas coisas, para preencher alguns vazios, alguns claros, mas não daria para montar um governo baseado única e exclusivamente em pessoal militar.

Essa é a tragédia de Alvarado. Além disso, homens pouco habituados às maleabilidades da política, do jogo político. Homens que na sua grande maioria, na sua quase totalidade, eram pobres. Você sabe que, se se fizer uma análise da renda, do consumo do pessoal das Forças Armadas em quase todos os países, não é só na América do Sul, no mundo, você pode encontrar alguns indivíduos que vêm de algumas famílias ricas, mas não é a média. Homens pobres que de repente são guindados a posições chaves do aparelho de Estado. Ou do primeiro, ou do segundo, ou do terceiro escalões. O que acontece nesses casos? Misturou-se essa incompetência com a corrupção.

Houve corrupção, essa corrupção não vinha a público - já vamos saber por que -, mas houve casos em que o problema não era de corrupção, era de incompetência, mesmo: o sujeito, simplesmente, no exercício dessa ou daquela função, não sabia o que fazer. Em bom português, meteu os pés pelas mãos. O resultado foi muito ruim, péssimo.

Um caso ímpar de setorialização da imprensa

Por que é que as coisas não vinham a publico? Não vinham a público porque... Eu nunca tinha ouvido falar, nunca soube de uma experiência desse tipo que tivesse ocorrido com a imprensa em lugar nenhum do mundo. Eu não sei, eu acho que talvez na União Soviética se tivesse encontrado algo de semelhante. Os proprietários dos jornais perderam o controle sobre os jornais, entregues às diferentes corporações da sociedade peruana.

Por exemplo, o funcionalismo público. Entrega-se um jornal a ele e diz-se: "Toma que o filho é teu. Agora, edita o jornal". Eu falo mais particularmente do funcionalismo público porque Guillermo Thorndike, um aprista, mas que era simpatizante do governo militar, ficou encarregado de dirigir o jornal que seria dos funcionários públicos.

As federações camponesas ganharam um jornal, quer dizer, loteou-se a imprensa para ninguém botar defeito. O resultado, você que é jornalista pode até me dizer com mais exatidão qual seria o resultado dessa alucinação, desse ensandecimento.

Os jornais viraram, na realidade, espécie de boletim de notícias do que ocorria com o setor...

Depende da fonte de renda deles. Se o jornal tivesse receita própria, poderia até ser instrumento de conflito de determinados segmentos da sociedade com o governo. Se não tinha, se o governo ficava com o dinheiro e dizia: "Olha, está aqui a tua mesada"... Aí, acabou.

A.C.P. - A imprensa peruana perdeu a capacidade de ter um enfoque nacional dos problemas. Virou um boletim de notícia dos eventos e das coisas que aconteciam com cada setor da sociedade.

Quando ocorreu esta medida, estabeleceu-se que essa imprensa setorializada teria a capacidade, quer dizer, que estaria dentro das regras do jogo ela criticar o governo. Não se estabeleceu, pelo menos no inicio, um mecanismo de censura ditatorial, mas isso foi a teoria, na prática não ocorreu.

Sempre que um ou outro jornal ousava protestar ou reclamar do governo, corria todo mundo, diretor era chamado... Enfim, um jogo de pressões se desencadeava. O resultado é que essa imprensa não teve mais capacidade de se transformar num instrumento crítico, de denúncia de casos de corrupção, de incompetência, daquilo que ocorreu.

Militares preparam a retirada

Havia oposição?

A.C.P. - Havia oposição, mas era muito velada. Eu andei bastante no Peru durante os anos de 84, 85, e tive a oportunidade de conversar com o ministro do Exterior do Alvarado, um general, um sujeito bem-formado, inteligente. Cheguei a estabelecer uma boa relação pessoal com ele, esqueci o nome dele agora. Um sujeito inteligente, inclusive imaginou como um recurso simbólico na política exterior peruana a ideia de apresentar o Peru como o pai e a mãe das culturas autóctones latino-americanas, por causa dos Incas. Foi uma coisa que Saddam Hussein também tentou no Iraque, o negócio das antigas civilizações mesopotâmicas. Isso aparecia às vezes no discurso de Saddam. Apareceu no discurso desse sujeito.

Mas o certo é que em 75 os próprios comandos militares peruanos veem que estão se metendo numa sinuca de bico. Alvarado já é um homem que perdeu a força, principalmente depois do episódio em que a perna dele foi cortada [devido a uma doença], e nessas condições [Francisco] Morales Bermudez dá um golpe branco, quer dizer, simplesmente diz: "Alvarado, chega!".

Guillermo Thorndike tem um livro no qual ele se refere ao processo de nacionalização da imprensa peruana, um livro bem escrito, uma leitura interessante, e da deposição do Alvarado, chama-se No, mi general. Como quem diz, "Basta, general, chega, assim não dá mais".

Apelação marqueteira calcada no ódio ao Chile derruba candidato aprista

E nós vamos ter o processo que leva à eleição da constituinte e à promulgação da Constituição, e chegamos dessa maneira às eleições de 1980.

O Apra está absolutamente seguro da vitória. Ele não só não foi esmagado, ele reivindica para si o título de principal elemento de oposição à ditadura, ao governo militar peruano. Lança a candidatura de um senador eleito da Constituinte que é um homem da velha direção aprista, foi companheiro de Haya de la Torre - Haya já tinha morrido, em 1979 - Armando Villanueva. E volta à cena numa articulação do centro direita liberal a mesma figura que tinha sido eleita em 63, Belaúnde Terry . E realmente está tudo caminhando para a vitória do Villanueva, quando algum marqueteiro esperto de Belaúnde resolveu aproveitar eleitoralmente o fato de que a mulher de Armando Villanueva era chilena - porque uma parte da direção aprista nos anos mais duros, ditatoriais, foi exilada no Chile, terra de asilo, como todo mundo sabe - e bolou uma frase que inundou a televisão: "Mulher peruana, você votaria numa chilena para primeira-dama?".

Eu acho que já explicitei isso: se há casos de ódio nacional na América do Sul, entre esses casos estão o ódio entre Peru e Chile e entre Bolívia e Chile. Mas no caso peruano é mais forte, porque a Bolívia é um país fraco, ela não poderia derrotar o Chile. Mas o Peru achava, até hoje acha - eu conversei com gente do Peru que atribui o insucesso na Guerra do Pacífico a incompetência militar - que poderia derrotar. Fica aquela história: "Se nós tivéssemos feito isso, se nós tivéssemos feito aquilo, teríamos ganhado a guerra".

Não sei se é verdade, se é mentira, mas pouco importa. O certo é que o ódio em relação ao Chile é muito grande, é muito forte. E essa mensagem eleitoral calou fundo. O resultado qual foi? É que o Armando Villanueva ganhou folgadamente entre os homens, mas foi esmagadoramente derrotado no eleitorado feminino. O resultado foi a vitória de Belaúnde Terry, que assume novamente em 1980 e leva até 1985.

Uma política liberal antes do Consenso de Washington

Talvez, eu acho, que é o primeiro país da América do Sul a aplicar uma política liberal antes que o Consenso de Washington entrasse em vigor. Eu me lembro lá de algumas pessoas que me falavam claramente, tinham contas em dólares mas em bancos nacionais peruanos. Podia ter conta na moeda peruana, que era o sole, se não me engano, e conta em dólares.

Bancos ainda estatizados?

A.C.P. - Havia uma situação confusa no sistema financeiro. Alguns já tinham passado de novo para mãos privadas.

Eu ainda não estou me referindo ao grande fator de perturbação da vida peruana, nos anos 80, e num pedaço dos 90, que é o Sendero Luminoso. Mas vamos nos referir então, rapidamente, à eleição de 85, quando ganha Alan García.

Alan García foi lançado pelo aprismo e conseguiu se eleger. O único partido que tem enraizamento na vida peruana é o Apra, o resto são legendas de ocasião, como nós temos não sei quantas aqui no Brasil. Aqui, de enraizado, o que é que tem? PT, PMDB, PSDB e o DEM. O resto... Quer dizer, sem falar em PCdoB, Partido Socialista, que têm outra trajetória.

Um presidente que era da tropa de choque do Apra

E nessas condições o Apra ganha a eleição. O Alan García era uma figura já com longo tempo de militância no Apra e tinha sido o que se chama no Apra de búfalo. Os búfalos eram a tropa de choque do partido. Aquela encarregada de dissolver os comícios dos adversários na porrada e de proteger os próprios comícios. Era um cara forte, sarado, como se diz na gíria hoje em dia.

Ele passou algum tempo em Paris estudando, esteve lá na École de Hautes Études, frequentou seminário também no Instituto de América Latina. Eu me lembro até de tê-lo visto uma ou duas vezes por lá. Casado, não com uma chilena, mas com uma argentina, o que no Peru pode ser um trunfo, porque por causa do Chile as relações entre Peru e Argentina sempre foram muito próximas.

Charmoso, excelente orador de frases vazias

E Alan García foi lançado candidato exatamente para quê? Para recuperar o voto feminino. Excelente orador, mas aquele tipo de orador que, enquanto você está ouvindo, você aplaude extasiado. Na hora em que acaba o comício, você está voltando para casa e se pergunta: "Mas o que é que ele disse?". Você não vai se lembrar de nada porque ele não disse nada. Aquele orador que arrebata multidões, mas que não tem mensagem, não tem discurso, não tem nada. Esse é o homem, cujo governo foi outra catástrofe.

Mas vamos fazer um parêntese aí. O que é que acontece mais ou menos a partir do comecinho dos anos 80? Em 1980 houve a primeira ação violenta do Sendero, que havia começado a atuar na política estudantil em 1973.

O Sendero operava no Altiplano peruano. Em 1983, consegue, para usar uma linguagem marxista, dar um salto de qualidade: as células do Sendero Luminoso começam a operar em Lima.

Sabotagens da rede elétrica, assassinatos: Sendero em cena

O senhor visitou o Peru nesse período?

A.C.P. - Foram dois anos em que eu andei bastante pelo Peru: de meados de 84 até algum momento do começo de 86. O aeroporto de Lima, Aeroporto Jorge Chávez, era um entroncamento importante, porque pega muita rota pelo Pacífico. Você desembarcava, as luzes do aeroporto eram garantidas por gerador, porque várias torres de transmissão tinham sido dinamitadas, sabotadas. Lima era uma cidade que vivia às escuras. De noite aquilo era um terror. Apagón! era o que eles gritavam, e o apagón significava exatamente isso. Áreas inteiras da cidade estavam às escuras.

Ao lado disso, não só explosões que deixavam a cidade sem iluminação, mas começaram a existir também os atentados a vidas humanas.

E se a implantação do Sendero em Lima se dá durante o governo do Belaúnde, um dos pontos-chave da plataforma de Alan García era justamente debelar a ofensiva do Sendero e esmagar o Sendero.

Um aprendiz de Pol Pot nos Andes

O que aconteceu?

A.C.P. - Ao contrário. Durante o governo de Alan García, o Sendero prosperou, se tornou mais forte em Lima, desafiou abertamente o governo peruano e se colocava a alternativa de tomada de poder. Quer dizer, depois de ter o Khmer Vermelho no Camboja, o Pol Pot lá do Camboja, nós íamos ter o Pol Pot dos Andes, porque esse homem que dirigiu o Sendero, acabou sendo preso, Abimael Guzmán... só não era o Pol Pot porque a expressão fisionômica dele não era de um asiático.

Eu acho importante que alguma outra coisa seja dita sobre o Sendero.

Base da guerrilha não era camponesa

O quê?

A.C.P. - É preciso retificar em profundidade uma versão que é muito difundida, a de que o Sendero era uma guerrilha de base camponesa. Não era. As fontes de recrutamento do Sendero se encontravam basicamente na rede de pequenos e médias cidades do Altiplano, por exemplo Cuzco, que é uma cidade importante do Peru. Uma cidade alta. Não é a parte a mais alta do altiplano, mas Cuzco é uma cidade que está a dois mil oitocentos e tantos metros. Perto de três mil metros de altitude.

Quem foi recrutado?

A.C.P. - As baixas camadas médias, gente que terminava o curso secundário ou até tinha o diploma universitário, mas um diploma universitário tão desvalorizado que o sujeito não sabia o que fazer com aquilo. O Sendero não foi um movimento guerrilheiro de base camponesa. Os centros de recrutamento dele estavam principalmente nas cidades médias e nas cidades pequenas. De baixas classes médias que não encontravam alternativa de colocação no mercado de trabalho. Funcionários públicos de prefeituras dessas cidades, cujo salário, provavelmente, era miserável, mal dava para a subsistência.

Para os camponeses, terror

É aí que o Sendero recruta, é daí que ele puxa seus quadros, porque diante das comunidades camponesas do Altiplano a política do Sendero é uma política de terror. Ele aterrorizava as comunidades tanto quanto o Exército aterrorizava. Talvez até mais, porque ele entrava lá matando. Ele tinha uma política sistemática de obrigar as comunidades camponesas a servirem de apoio logístico, fornecimento de víveres, de alimentos e de esconderijo, esconder armas, esconder gente, e isso era feito na base do terror.

Existem relatos mais do que conhecidos dos grupos terroristas do Sendero entrando numa comunidade, começavam matando oito ou dez, que era a melhor maneira de assegurar a lealdade futura dos integrantes dessa comunidade. Não estou dizendo que isso foi feito em todos os casos, mas, em alguns casos, foi.

Então, o Sendero não pode ser considerado uma guerrilha camponesa. Começa por esse sujeito que é um intelectual, entre aspas, era um professor de filosofia, Abimael Guzmán, de Cuzco, com um projeto de tipo maoísta, o cerco da cidade pelo campo, mas que não tem a base camponesa.

Reforma agrária de Alvarado acabou com latifúndio

Por que não tem base camponesa?

A.C.P. - É algo de essencial, que deveria ter sido dito a respeito do governo de Alvarado, não sei como escapou: faz-se a reforma agrária. A ditadura militar peruana faz a reforma agrária. É um caso um pouco semelhante, eu me referi a isso quando nós conversamos sobre a Bolívia, à reforma agrária feita logo depois da revolução de 52 na Bolívia.

A terra do Altiplano é repartida. Volta às comunidades. Só que se a terra era ruim do lado boliviano, não tinha razão para ser boa do lado peruano. Mas dá às comunidades uma sensação de quê? De autossatisfação e de autopreservação, quer dizer, a colheita pelo menos é deles. Eles não colhiam muito, mas o que eles colhiam ficava nas mãos deles. A terra foi repartida. O latifúndio no altiplano peruano desapareceu, ao mesmo tempo que as fazendas de uma agricultura de exportação que ficavam na área do litoral, e essas que eram frequentemente de proprietários externos, investimentos estrangeiros, foram nacionalizadas.

O latifúndio realmente desapareceu no Peru. O campesinato peruano ia se meter numa guerrilha a troco de quê? Não tinha razão pra isso. Da mesma forma como eu mencionei a você que nos anos 60 o campesinato boliviano apoia a ditadura de Barrientos, quando se dá o golpe contra [Víctor Paz] Estenssoro, no final de 64. Eles não têm razão para se meter numa guerrilha. Eles são coagidos pelo Sendero, e coagidos sob ameaça das armas.

Primeiro governo de Alan García, um desastre

A situação se deteriora. Quando nós chegamos às eleições de 1990, nós temos um Apra inteiramente desacreditado. A estrutura do Apra ficou intacta, mas a força popular dele, conjunturalmente, está muito ruim, porque o governo de Alan García foi um desastre.

Tentando orientar o fluxo de investimentos para os projetos econômicos dele, Alan García nacionaliza os bancos. Esse episódio me foi contado na França, não sei se é verdade, mas eu não duvido que seja.

A culpa era do conselheiro francês

Alan García, quando andou no Instituto de América Latina, foi aluno de um antropólogo lá, o Henry Favre, com quem eu me dava bem nos tempos em que eu era professor lá. O Favre me contou essa história soltando enormes gargalhadas. Favre era um especialista em Estudos de Comunidades Camponesas do Altiplano, e ele ia ao Peru quase todo ano. Apareceu lá no Peru uma vez e em algum momento Alan Garcia, que gostava dele, convidou-o para tomar um café da manhã. E Favre lá foi ao palácio. E no café da manhã, durante o tempo todo, o Alan García está se queixando dos bancos. Que os bancos transformavam a vida dele num inferno, que os bancos tinham que emprestar dinheiro ao Estado a uma taxa de juros mais em conta. E lá pelas tantas o Favre, que já estava de saco cheio, disse o seguinte: "Mas, senhor presidente, nesse caso só lhe resta uma saída, nacionalizar os bancos". E continuaram a conversar, se despediu, voltou para o hotel e está ele lá no dia seguinte, de manhã, lendo os jornais, ia viajar no dia seguinte para o Altiplano, pegar um avião até Cuzco, depois pegar um trem, ia lá para as pesquisas dele. No finalzinho da manhã a porta do quarto dele é aberta a pontapés, entram lá dez indivíduos com ar truculento, mandando ele arrumar as malas com rapidez, porque ele ia ser levado dali imediatamente para a embaixada francesa, porque de noite, ao que eu me lembro não tinha saído ainda nos jornais da manhã, o Alan García tinha assinado a nacionalização dos bancos. E o sindicato, sindicato no sentido anglo-saxão da palavra, de donos de banco tinha sabido que Alan García tinha tomado essa medida aconselhado por um francês que tinha sido chamado da França como conselheiro político dele, e tinha colocado a cabeça dele a prêmio. Estavam contratando assassinos profissionais, pistoleiros, para liquidar o homem.

Uma história estranha demais para ser inteiramente mentirosa

O homem saiu correndo dali, foi para a embaixada da França, felizmente nessa noite passava o voo da Air France, desses vôos que vão pela rota do Pacífico, que terminam em Santiago do Chile. Santiago, Lima, Bogotá, Paris. Alguns param em Caracas. Eu não sei como é hoje, mas na época tinha esse voo. E pela embaixada tinha conseguido um lugar de qualquer maneira, o cara sai da embaixada debaixo de um fortíssimo esquema de segurança, entra lá no aeroporto, não tinha passarela, obviamente, e entra no avião diretamente lá do asfalto do aeroporto.

Aí, me disse o Favre, é claro que depois disso não entrou no Peru e não pretendia voltar lá tão cedo. Eu não sei essa história é verdadeira, mas acho engraçada, é estranha demais para ser inteiramente mentirosa.

E nós chegamos então ao ano de 1990. Como eu disse, a conjuntura eleitoral era uma conjuntura lógica. O Apra é um partido desacreditado. E lança candidato, não me lembro o nome do candidato [Luis Alva Castro]. Grosso modo, a mesma coligação que tinha levado Belaúnde Terry ao poder em 80, e tinha sustentado como apoio político o governo do Belaúnde, se agrupa em torno da candidatura de Vargas Llosa.

Vargas Llosa, liberalismo puro-sangue

Que aí não é uma aglutinação frouxa de uma centro-direita liberal, é o projeto liberal na sua integridade. O Consenso de Washington já tinha ocorrido. Vargas Llosa encarna realmente um projeto liberal puro-sangue. Contra o estatismo do Apra, que levou ao fracasso do governo do Alan Garcia, etc. e tal, e tudo isso que a gente conhece. Mas tem um tertius, tem uma candidatura do Apra, teve essa coligação liberal, que hoje em dia seria chamada de neoliberal, mas que na minha opinião de neo não tem nada, é liberal, mesmo, mas tem um tertius, aquela figura sinistra de Alberto Fujimori.

Um cidadão desconhecido na política, um engenheiro agrônomo de profissão. E como engenheiro agrônomo esse homem tinha andado pelo Altiplano praticamente todo. Um sujeito que conhecia o campo peruano, conhecia a terra peruana.

Enquanto isso, o Sendero, na cidade de Lima, está mais do que atrevido. Ele agora não está mais implantado, não, implantação ele conseguiu uns oito, nove anos antes. Ele agora já é uma força considerável dentro da cidade de Lima.

E Fujimori, então, surpreendentemente, derrota Vargas Llosa, o que sempre me leva a dizer o seguinte: aqui na América do Sul, América Latina de um modo geral, esse negócio de projeto liberal não passa pelo povo, o povo não entra nisso.

Eu não estou dizendo que o povo está certo, que o projeto está errado, isso é outra discussão. Eu quero dizer o seguinte: é muito difícil isso passar. Porque Fujimori tem duas mensagens-chave, a sua bandeira política é o seguinte: acabar com o terrorismo e acabar com a inflação, que estava muito alta. Vargas Llosa também prometeu as duas coisas. Ele prometeu por meio de um discurso liberal.

Fujimori, antes desconhecido, é eleito e reeleito

O resultado é que Fujimori foi eleito. Ele é reeleito em 95. Fujimori não tem partido político, ele tem uma legenda que se chama Cambio 90, que é o ano da eleição em que ele ganha. Mudança 90. Engraçadamente, não é diferente do slogan do Barack Obama, Stand for change, quer dizer, alinhe-se para a mudança.

E Tancredo, "Muda Brasil".

A.C.P. - Quando Fujimori se recandidata, ele consegue uma emenda constitucional, como vários outros, inclusive mais democráticos do que ele, também conseguiram, em ocasiões próximas, e obteve um segundo mandato.

Não há dúvida de que Fujimori tem uma base eleitoral, ele não tem uma base política, ele tem base eleitoral consistente, porque ele efetivamente cumpriu aquela história que dizíamos do Tancredo, ele promete e entrega. O Fujimori prometeu e entregou. Em 95, a inflação está sob controle, o Sendero está praticamente destroçado.

Houve aquele famoso episódio, não sei se você lembra, um atentado do Sendero numa festa na embaixada do Japão, e Fujimori pagou para ver, aquelas mesmas coisas que o [Vladimir] Putin fez naquele teatro de Moscou e naquela escola de Beslan: "Não me interessa quantos vão morrer, mas eu não entrego", o que, abrindo um parêntese, eu acho que é o que tem que ser feito, não tem saída. Você sabe que em Israel uma coisa semelhante foi feita. Eu não sei se foi o Setembro Negro que tomou uma escola. Tomou uma escola e claro que o número de alunos, de crianças, era infinitamente menor, tinha 28 ou 30 crianças ali, mas o governo de Israel não negociou, mandou atacar.

Segundo governo de Fujimori, uma tragédia

E em 95 a situação de Fujimori é eleitoralmente confortável. Ele ganha a eleição, mesma legenda, Cambio 95. Agora, o segundo governo do Fujimori é uma tragédia, é uma desgraça. Por quê? As características autoritárias que já vinham se manifestando desde o primeiro governo, mas que encontravam uma justificativa - uma justificativa, não estou dizendo uma explicação aceitável, mas uma justificativa -, na medida em que eram empregadas na luta contra o terror. Essas tendências autoritárias vão aumentando, vão se reforçando.

O Sendero já não é mais o inimigo que era, restam poucos núcleos dele. A inflação está sob controle. Então nós temos aí, efetivamente, uma ameaça de ditadura. Métodos de coerção, o Congresso está aberto, os partidos estão funcionando, mas existe coerção contra a oposição e existe corrupção, também.

Você deve ter visto na televisão o caso daquele sujeito que era o diretor da agência nacional de inteligência deles, o tal do Vladimir Montesinos, negociando num quarto de hotel, entregando não sei quanto de grana para um deputado. Isso apareceu claramente. E nessas condições o Fujimori obtém a licença do Congresso para disputar um terceiro mandato e se apresenta pelo Cambio 2000.

Governo FHC lavou as mãos diante do continuísmo

Aí as coisas realmente se complicaram. Se complicaram porque no conjunto da América do Sul começa a haver perplexidade, inquietação, e o governo americano é o [Bill] Clinton, o governo de Clinton dá um murro na mesa, diz "não". Num show de primor de política externa, o que é que faz o governo brasileiro, do nosso querido Fernando Henrique? Isso é um problema interno do Peru, não temos que nos meter em problemas internos de outros países, é tradição da política brasileira. Deixou os Estados Unidos levarem as glórias de serem o grande país a se insurgir contra isso.

O candidato oposicionista, Alejandro Toledo, ganha a eleição, mas a eleição foi roubada, descaradamente roubada. Os observadores da OEA que foram pra lá ficaram escandalizados, estarrecidos com o volume de corrupção. Termina a eleição, Alejandro Toledo se refugia na Colômbia, foi morar em Bogotá durante algum tempo...

E o Brasil de braços cruzados. O resultado é um governo sem legitimidade, um governo que não tem mais base eleitoral, ele não tinha base política, e você sabe muito bem que, quando um governo não tem base política forte, a base eleitoral pode se desfazer. Não tem nada que amarre aquilo.

Toledo nunca perdoou a passividade brasileira

O resultado era de se prever. Fujimori, pouco tempo depois, é obrigado a entregar o poder, debaixo de acusações de roubalheira, ladroeira, malversação de recursos públicos, intimidação de adversários, corrupção sistemática empregada em cima das oposições; sai correndo do Peru e vai se refugiar no Japão, porque por alguma razão legal japonesa o homem tinha direito à nacionalidade japonesa.

Alejandro Toledo, que tinha sido derrotado, ocupa o poder. E não engoliu essa de Fernando Henrique. Alejandro Toledo foi um presidente do Peru que não quis saber de conversa com o Brasil. Ele estava muito irritado com o que tinha se passado. Nem a eleição do Lula em 2002 conseguiu amenizar isso.

Benefícios da alta das matérias-primas

Alejandro Toledo, sem dúvida alguma, apesar de não ter o mesmo vigor, a mesma consistência neoliberal do Vargas Llosa, é um homem dessa cartilha. É um presidente liberal na economia que se encontra no governo e que foi beneficiado, principalmente a partir da segunda metade do seu mandato, por um fenômeno que beneficia o Peru, beneficia o Peru, o Chile: a elevação sistemática dos preços das matérias-primas minerais, base das exportações peruanas. O Peru tem uma diversificação na exportação de minérios maior do que a do Chile. O Chile não exporta só cobre, mas a exportação de minérios dele é muito concentrada no cobre. O Peru tem um leque maior de exportação de minérios. Todos eles foram atingidos por essa onda de elevação dos preços. O Peru tem crescido a uma taxa alta, seis, seis e meio, sete por cento. Crescido mais que o Brasil, bem mais.

Candidatura de Lourdes Flores provocou derrota de Ollanta Humala

Há, portanto, uma onda de satisfação na sociedade peruana. E nós chegamos nessas condições às últimas eleições, em 2006, quando se assiste a uma triangulação. Existe uma candidatura que tenta reproduzir aquilo que teria sido Vargas Llosa e aquilo que foi Alejandro Toledo. É uma candidatura do setor privado, liberal, uma mulher, Lourdes Flores. O Apra ressurge, e ressurge o Evo Morales do lado peruano, que é Ollanta Humala, candidatura de um movimento indigenista que é mais fraco no Peru do que na Bolívia, candidatura mais rural do que urbana, porque a implantação aprista nas cidades continua sendo forte, e o fato de que a Lourdes Flores, por uma diferença relativamente pequena, chega em terceiro lugar, e dá portanto a possibilidade de Alan Garcia ir para o segundo turno, garante assim a vitória de Alan García, porque quem votou na Lourdes Flores votou em Alan Garcia para barrar o ascenso de Ollanta Humala. Se fosse o contrário, o Ollanta teria ganho, porque o eleitorado do Apra não iria votar em Lourdes Flores. Não gosta do eleitorado da Lourdes Flores.

Então, nós temos no Peru o mesmo fenômeno da emergência de setores populares, no caso indigenistas, do Altiplano, que se sentem menos beneficiados do que os outros, principalmente do que os setores urbanos, pela onda de prosperidade que vem ocorrendo no Peru nos últimos anos. Há uma mobilização desses segmentos.

Interesses privados são mais consistentes no Peru do que na Bolívia

O que aconteceu no lado boliviano do Altiplano não deixa de influenciar. O Peru é sensível a isso. Com uma diferença: é que, se o que Evo Morales quer fazer já encontra uma forte resistência, no núcleo um pouquinho mais desenvolvido do capitalismo boliviano que é Santa Cruz de La Sierra, Ollanta Humala teria muito mais dificuldade de fazer isso no Peru. Por quê? Porque ali já existe uma agregação de interesses privados. Isso na Bolívia é muito tênue, mas no Peru ela já é relativamente sólida. Ela conseguiria fazer face a um presidente como Ollanta Humala, caso ele quisesse efetuar o mesmo tipo de política que Evo Morales vem efetuando na Bolívia e não está conseguindo. Ollanta conseguiria menos ainda. A opinião dos diferentes analistas é que, se isso ocorresse no Peru, era banho de sangue. Não ia conseguir. A agregação dos interesses privados no Peru é relativamente sólida, no litoral peruano.

Alan García tem se beneficiado do mesmo fenômeno, o preço das matérias-primas minerais continua em ascensão, aumentou mais do que tinha aumentado nos tempos de Alejandro Toledo. O Peru continua mantendo taxas de crescimento relativamente elevadas. Pode ser que esse boom da economia consiga garantir uma nova vitória do Apra nas próximas eleições.

Além disso, Evo Morales não cometeu certas barbaridades que a família do Ollanta Humala na campanha eleitoral - você se lembra? -, chamando os homossexuais de depravados, ou de doentes.

O Peru na contramão da América do Sul

Há uma última coisa que eu acho que é preciso dizer. A trajetória dos países sul-americanos, dos que passaram por ditaduras, é uma trajetória mais ou menos linear, passam pelas ditaduras, existe um momento da redemocratização, e a partir daí existem os avanços da institucionalização democrática. A democracia se institucionaliza, se aprofunda, avança cada vez mais. O caso peruano é o contrário. Ele sai de uma ditadura militar, supõe-se que a democracia vai se enraizar e aí existe uma regressão autoritária, que é o Fujimori, mas que se explica por causa da questão do Sendero Luminoso e de uma gestão incompetente do primeiro governo de Alan García na economia, que permitiu uma inflação absolutamente descontrolada.

E mal as coisas caminham de novo na direção de uma institucionalização democrática, eu diria mais enraizada, mais profunda, existe a sombra de Ollanta Humala, que quase ganhou as últimas eleições.



Fonte: Observatório da Imprensa & Gramsci e o Brasil.

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