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Os últimos dias de Gramsci

Luciano Barca - 2007
 

Luciano Barca, respeitado economista italiano, escreveu este precioso depoimento sobre Antonio Gramsci, então internado na Clínica Quisisana, em Roma, na condição de preso sob liberdade condicional, obtida em 1934. O depoimento está no volume autobiográfico Buscando per mare con la X Mas (Roma: Riuniti, 2002), baseado na participação de Barca na Marinha italiana, durante a II Guerra Mundial, e na consolidação da consciência antifascista que logo depois o levaria a ingressar no antigo PCI. Com a publicação deste documento, também homenageamos os setenta anos da morte de Gramsci, que ora transcorrem.

Roma, fevereiro-março de 1937. Um telefonema de papai nos autorizou a ver mamãe na Clínica Quisisana, onde lhe haviam operado a vesícula biliar. A Quisisana era uma das clínicas mais caras, mas papai, que passara por uma dura experiência na Policlínica, quis que mamãe fosse operada pelo Dr. Puccinelli, e a convalescença naquela clínica era obrigatória.

Chegando a pé, logo nos surpreende o fato de que a clínica esteja rodeada de guaritas com carabineiros e também que três ou quatro agentes à paisana, os quais não fazem nada para se disfarçarem, estejam parados na entrada. Como a nossa casa dá para a Via Salaria, constantemente vigiada por carabineiros, que são reforçados por agentes à paisana nos dias em que Mussolini se dirige à Vila Savóia, logo pensamos que na clínica está internada alguma alta autoridade. Mas a ansiedade em relação a mamãe nos faz imediatamente deixar de lado o problema. A operação correu bem, embora mamãe sofra muito e esteja com raiva porque Puccinelli, logo depois da operação, desapareceu e não mais se fez presente. Além do mais, ela não gosta muito das freiras: só se converteu ao catolicismo para contentar papai, mas, de fato, continuou sendo uma protestante cheia de suspeitas.

No segundo ou terceiro dia (já tínhamos assumido nós, os três irmãos mais velhos, o turno de acompanhantes das tardes), um certo movimento dos agentes, exatamente na entrada do primeiro andar em que mamãe está internada, nos traz de novo o problema, e, quando vem a freira colocar o termômetro em mamãe, pergunto-lhe o porquê de toda aquela vigilância: balança a cabeça na direção do fim do corredor e diz: "Porque lá está internado um subversivo, mas é melhor não falar disso". Um subversivo? Inutilmente, quando papai aparece, tentamos fazer com que nos diga quem é e por que o chamam de subversivo. "É melhor não se ocupar com estas coisas." Mamãe é quem, no dia seguinte, depois de ter feito a freira falar, nos informou que é um líder comunista, saído da prisão, muito doente: Antonio Gramsci. E será ainda mamãe quem compreende nossa curiosidade e permite que, a partir daquele momento, um de nós três monte guarda no corredor, na esperança de vê-lo. Várias vezes, de fato, fomos até a porta dele, mas sem conseguir ver nada.

No dia seguinte, é Silvano quem dá o alarme a mim e a Liliana: "Saiu do quarto".

Quem passa ao nosso lado, sem dar mostras de nos ver, é um homem baixo, despenteado, com o corpo deformado por duas corcovas. Caminha lentamente, quase se deixando guiar por um dedo que desliza na parede diante das portas dos quartos e que só abandona nas imediações da reentrância que dá acesso à capela. Chega até o fim do longo corredor, depois vira e retorna. Enquanto isso, nós nos movemos até o seu quarto, incapazes de ocultar a nossa deslavada curiosidade e também um pouco de emoção. E, desta vez, não nos ignora. Antes de entrar no quarto, observa-nos e nos sorri.

Nota. Quando, pouco tempo depois, duas linhas de Il Messaggero - do qual, na ausência de livros, lia até os anúncios econômicos - deram a notícia da morte de Antonio Gramsci na Quisisana, minha mãe acusou os médicos, e um em particular - aquele que a havia operado -, de ter deixado Gramsci morrer sem cuidados adequados. Procurei evitar que a questão se tornasse motivo de briga com meu pai, até porque estava convencido de que as responsabilidades cabiam a outros. Mas minha mãe jamais renunciou às suas convicções.

Nota de 1957. Uma vez, quando Mario Montagnana [dirigente do PCI] me falava de Gramsci, disse-lhe que o tinha visto não muito tempo antes da morte. Mario quis então - estávamos em 1947 ou 1948 - que eu escrevesse sobre aquela visita à Clínica Quisisana em L’Unità. O artigo foi publicado abrindo a página de cultura e suscitou a curiosidade de Togliatti, que me fez perguntas sobre detalhes que infelizmente não tinha registrado na minha memória. As duas irmãs Schucht [Giulia, a mulher, e Eugenia, a cunhada], quando fui visitá-las, com Alfredo Reichlin, em Moscou, em 1956, quiseram que repetisse várias vezes a narrativa, ao mesmo tempo que, quase competindo uma com a outra, nos mostravam alguns objetos recuperados do cárcere e do hospital. 



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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