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Democracia, Justiça e controle político

Hamilton Garcia de Lima - Julho 2010
 

Quase terminando um artigo sobre o controle social dos governos locais, eis que Campos sofre nova intervenção judicial em seu processo eleitoral depois da posse dos eleitos e transcorrido mais de um ano do mandato, tal como na eleição de 2004, sem que isso signifique efetivamente uma luz no fim do assombroso túnel da instabilidade política municipal, muito ao contrário.

Na primeira intervenção da série, que interrompeu o mandato do Prefeito eleito Carlos Campista em função de abuso do poder econômico por parte de seu apoiador e antecessor Arnaldo Vianna, que nem por isso foi impedido de se candidatar à Câmara Federal e tomar posse no pleito seguinte (2006), a expectativa criada em torno da capacidade de transformação das práticas políticas, sem mudança no sistema político, foi intensa. A inconsistência punitiva da legislação brasileira e a lentidão da Justiça, todavia, não lograram um teste efetivo dessa hipótese, não obstante a compreensível carga de responsabilidade que paira sobre a Justiça Eleitoral no momento em que ela rompe o pacto de omissão de priscas eras.

Infelizmente, o rompimento da histórica omissão das autoridades fiscalizatórias do Estado brasileiro é uma medida que vem tarde e sem a carga redentora que séculos de desmandos e arbitrariedades exigiriam. Muito pelo contrário, algumas das intervenções ocorridas em Executivos do Norte Fluminense mostraram claramente uma tendência "ao tiro pela culatra", em termos políticos, das intervenções judiciais ao fim do processo eleitoral. Se muito, podemos dizer que os grupos concorrentes passaram a tratar melhor das aparências, pois o observado efeito inibidor de abusos está longe de compensar os prejuízos causados ao Estado e ao bem público pelas autoridades sacramentadas pelo atual sistema político-eleitoral.

Tanto no caso do uso indevido da máquina e recursos públicos para a promoção de seu grupo, caso das eleições de 2004, quanto no uso indireto dos mesmos, visando, segundo o TRE/RJ, à promoção de "práticas panfletárias da rádio e do jornal O Diário", no caso das eleições de 2008, estamos diante do mesmo problema que resta intocado: a privatização do público pela classe política, entendida como o conjunto dos grupos que, uma vez eleitos, independente de sigla e ideologia, utilizam recursos além dos esforços partidários e da legislação pertinente para se perpetuarem no poder.

Em relação ao último caso, que parece ser visto por muitos como de menor relevância, cabe aqui um parêntese: a imprensa não partidária, por sua própria natureza, não pode se comportar com facciosismo, devendo, mesmo tendo uma orientação ideológica definida, cumprir seu papel social de informar com isenção e equilíbrio os leitores; afinal a informação é também um direito, cabendo a notícia engajada apenas aos veículos explicitamente vinculados a grupos partidários ou corporativos.

Mas, voltando ao problema das intervenções judiciais nas eleições municipais fluminenses, a de 2004, que levou à cassação da chapa vitoriosa com quase um ano de mandato transcorrido, não apenas produziu instabilidade administrativa, pelo tempo transcorrido entre as infrações e a punição, como ainda estiolou a própria autoridade pública, ao colocar no lugar do prefeito eleito, que iniciou um tímido mas claro processo de saneamento político da cidade, um presidente da Câmara Municipal que não só se demonstrou inepto como liderança administrativa, como ainda incapaz politicamente de preservar a própria incolumidade do aparato estatal diante dos grupos dilapidadores do patrimônio público. Guindado ao posto legislativo pelo próprio prefeito cassado, com base na política generalizada de submeter o Legislativo local, e ao Executivo local por força da intervenção judicial, até ser confirmado nele pela eleição suplementar de 2006, o dirigente local emergente do processo judicial de 2004 - sem que o Judiciário tenha qualquer responsabilidade nisso - fez a cidade mergulhar no período mais obscuro de sua vida política desde pelo menos 1988.

Um outro caso digno de nota é o de Bom Jesus do Itabapoana [1], no Noroeste fluminense, onde os abusos do poder econômico e político constituído - nesse caso por meio da utilização de expedientes não declarados de financiamento de campanha -, em meio a uma disputa acirrada, produziram o perverso efeito de uma aguda instabilidade política depois da cassação do mandato dos beneficiários da fraude a poucos meses do término do mandato. Nesse caso, a cassação, a sete meses das novas eleições, fez com que a cidade tivesse sete prefeitos em cerca de quatro meses, sendo o derradeiro escolhido o terceiro colocado na eleição cancelada, sem que a crise terminasse, visto que os dois cassados em 2004 acabariam por se enfrentar na eleição de 2008: o vice cassado disputando a Prefeitura com a esposa do prefeito cassado, num imbróglio digno de chanchada.

Tais experiências mostram com nitidez que intervenções judiciais com foco exclusivamente eleitoral, contra lideranças políticas acostumadas ao amplo conforto no trato da coisa pública, em meio a uma sociedade resignada, não produzem os resultados saneadores esperados. Muito pelo contrário, acabam por promover, inadvertidamente, quadros despreparados para o exercício de responsabilidades vitais à sociedade. As punições eleitorais promovidas pelos TREs, nas condições das acima citadas, se tornam não só inócuas, quando não acompanhadas de punições administrativas e criminais contra os dilapidadores do bem público, como ainda perversas pelos efeitos colaterais sobre a administração pública. Em ambos os casos relatados, a tardia e perfunctória punição eleitoral desconsidera que o uso de recursos públicos para fins privados, no período eleitoral, está longe de se caracterizar apenas como crime eleitoral. Afinal eles provêm, direta ou indiretamente, do erário público municipal, sendo mister perseguir a causa administrativa dessa distorção.

De outro lado, a punição pessoal dos líderes de tais processos de corrupção e abusos eleitorais é tão inócua quanto a omissão diante dos crimes administrativos graves que jazem por trás desso epifenômeno, e isso não apenas pela brandura das penas impostas, que deveriam ser mais duras e progressivas em caso de reincidência, mas pelo fato de que elas deixam incólumes os organismos políticos responsáveis pela reprodução de tais práticas. Ou seja, os partidos, que abrigam tais facções ou que promovem diretamente tais práticas, deveriam ser também atingidos pelas punições - por meio de ônus sobre fundo partidário, horário de propaganda eleitoral gratuita ou mesmo da nominata -, de modo que fossem estimulados a exercer de maneira efetiva seu poder e dever de filtro político para o exercício do poder.

No caso brasileiro, a irresponsabilização recorrente dos partidos em face do comportamento de seus líderes ou representantes autorizados constitui verdadeiro incentivo a uma filtragem de orientação invertida, promovendo o menos virtuoso em detrimento do mais virtuoso. Guardadas as devidas especificidades, a punição de cunho individualista, empreendida pelos tribunais eleitorais, é análoga àquela efetivada outrora pela polícia nos morros cariocas: a simples repressão aos soldados e gerentes do tráfico de drogas, por mais dura que seja - nesse caso, a pura eliminação -, não faz mais que promover uma alta rotatividade no poder criminal, ao custo de uma espiral declinante, em termos morais e etários, de seus líderes, em combinação com uma espiral em sentido inverso em termos de índices de confrontação e militarização do espaço social urbano.

A combinação atual de sistema político caótico com protagonismo judicial débil e delongado vem produzindo um quadro que, longe de engendrar qualquer efeito de aperfeiçoamento das instituições democráticas, como amiúde sugerem alguns especialistas desconhecedores desses processos concretos, caminha celeremente no sentido oposto, desmoralizando instituições republicanas constantemente agredidas por uma dinâmica eleitoral perversa, cuja regulação judicial é impotente ou contraproducente.

É aqui que entra em tela a necessidade de um enfoque sistêmico do crônico processo de corrupção da política nacional e o papel das iniciativas democráticas de grupos organizados da sociedade, que almejam reverter o quadro de descontrole da gestão do Estado na esfera local. Antes de avançar nessa direção, porém, é preciso matizar o terreno no qual estamos pisando, destacando alguns elementos históricos fundamentais para a determinação do comportamento brasileiro diante da política e do poder local.

A formação do Estado-Nação brasileiro foi fortemente marcada pela centralização colonial, que, se bem que desprovida das condições diretas de imposição da ordem social na colônia, soube reunir as condições "externas" para essa dominação, privatizando o processo colonizatório (capitanias hereditárias), o que deitou raízes na nossa tradição para muito além do sucesso dessa empreitada colonial. O modelo privatista de exploração e constituição do público no mundo colonial americano, já em plena era da separação entre o público e o privado na civilização europeia, teve entre nós a característica de dotar os costumes políticos com uma ética dualista tendente a eximir de culpa e controle os dirigentes (privados) dos espaços públicos na medida inversa de sua importância e magnitude, de modo que, quanto menor e mais próxima a unidade de poder, maior é o "conforto" de que dispõem tais dirigentes para tocar a administração pública como se privada fosse, elegendo beneficiários e clientelas sem observância aos preceitos de uma administração virtuosa no sentido da "vontade geral".

Diante das formas inevitavelmente excludentes e repressivas de tal tipo de dominação, cidadania alguma pôde florescer até que a decadência econômica da terra, que sustentava tal modelo, solapasse os alicerces da dependência pessoal e da repressão discricionária como instrumento de contenção de conflitos. Esgotado esse longo processo de nossa formação nacional sem rupturas, de modo "lento, gradual e seguro", como ensina nossa tradição política, abriu-se a possibilidade para um inaudito processo democrático hoje em curso no país. Nossa democracia, todavia, na ausência de reformas econômicas inclusivas, assim como na relutância em franquear ao povo o direito à participação política e à escolarização pública nas várias etapas de seu processo de modernização, fez com que os limites do pacto conservador anterior se mantivessem quase intactos, não obstante os avanços jurídicos-institucionais de todo o período, fazendo com que o Brasil real, como apontou Oliveira Vianna, se mantivesse a léguas de distância do Brasil legal em termos de modernidade política e social, restringindo-se nossa democratização política a uma oligarquização mais aberta e permeável aos influxos de um capitalismo que resistiu bravamente à massificação.

Esse processo foi responsável não só pelos limites alcançados pelo desenvolvimento nacional, em função da desigualdade extrema de renda e oportunidades, mas também, e é isso que aqui mais nos interessa, por uma cultura política marcada pela passividade e pela indiferença relativa, acostumada a desprezar os marcos legais do país em proveito de uma normatividade ad hoc, feita sob medida para cada situação e conveniência. Daí ser compreensível a falta de reação popular diante de uma legalidade constante e despudoradamente ferida em prol de interesses oligárquicos fortemente representados no sistema político. Por onde quer que se olhe, o que se vê são políticos populares manipulando a lei no limite de suas conveniências privadas, por meio das instituições democráticas livremente constituídas, oferecendo em troca, ao povo, uma parte menor do que lhe caberia em face dos recursos amealhados pelo Estado, mas certamente melhor do que aquela que o simples mercado foi capaz de prover ao longo da história familiar de cada indivíduo.

A dinâmica se sustenta e se reproduz por meio de um sistema político-eleitoral feito sob medida para reproduzir o modus operandi discricionário das oligarquias, o que só é possível mediante a astuta combinação entre as liberdades individuais e a anomia institucional, num espelho perverso daquilo que é a regra da nossa convivência social. Muitos democratas sinceros e ilustrados, inclusive, se fazem defensores desse modelo em nome da inusitada democracia que vivemos, sem se darem conta de que a soberania popular que temos encontra-se mortalmente subsumida aos interesses oligárquicos, que de uma forma ou de outra dominam também os mecanismos burocráticos de Estado que deveriam defendê-lo da sanha dos grupos minoritários predadores.

Desse modo, nosso sistema político parece ter sido cuidadosamente talhado para a autonomização absoluta dos eleitos em face dos eleitores, no interregno que vai de uma eleição a outra, sendo a oferta de serviços de clientela com recursos públicos uma forma de pagamento por essa autonomia e não uma efetiva contrapartida ao poder de decisão do eleitorado. Não obstante o poder esteja nas mão do eleitor, é patente que ele não se percebe como detentor efetivo desse poder nem enxerga nos partidos políticos (indisciplinados) instrumentos aptos para tal exercício.

Resta assim, como última saída, o controle direto da classe política pela sociedade civil insuficientemente organizada, politizada e instrumentalizada para impor freios efetivos à liberdade do corpo de representantes eleitos. Tal controle, por mais paradoxal que pareça, para se agigantar em meio a tantas desvantagens estruturais, deve lutar, para tornar-se efetivo, contra uma institucionalidade que privilegiou os interesses dos dirigentes por meio da manipulação caótica da liberdade eleitoral dos dirigidos - reduzida a nada pela anarquia institucional combinada à indiferença política elevada a verdadeira religião nacional. Pudéssemos trazer de volta o ativismo dos anos 1960-70, associando-o às liberdades de hoje, de fato teríamos um resultado até mesmo revolucionário sobre a ordem política caótica dominante. Não sendo possível tal empreitada, o que se coloca é a necessidade da descoberta de remédios de outra natureza no interior dessa mesma ordem.

Sem poder subverter a lógica oligárquica dominante a partir de um ativivismo social contundente, como outrora, resta-nos a engenharia política dos novíssimos movimentos sociais, instituídos em redes, como modo de ressignificar os instrumentos de controle burocrático que outrora foram ferramentas do próprio conservadorismo oligárquico, mas que hoje interessam aos cidadãos como instrumento progressista de contenção do arbítrio de uma classe política que, em conúbio com interesses privados fortemente alicerçados, busca no eleitorado uma forma de escapar à lei e renovar sua tutela sobre a maioria social.

Acontece no Norte fluminense apenas numa forma mais aguda aquilo que também se vê em São Paulo, Rio ou Minas: políticos inidôneos e improbos encontram nas urnas não o castigo para seu ativismo nocivo, mas a redenção, transcorridas suas rápidas penas e geralmente em cargos de hierarquia inferior, o lenitivo provisório para expiarem suas "culpas" e prosseguirem em suas exitosas "vidas públicas", estimulados pelo sistema caótico de voto e organização partidária.

Os intrumentos a que se alude aqui são os de caráter restritivo da amplíssima liberdade das oligarquias políticas, que usam o voto popular contra os próprios interesses populares ou, na linguagem de Rousseau, adulam a "vontade de todos" (interesse privado imediatista) para solapar a "vontade geral" (interesse comum mediato). Que tais oligarquias edulcorem tamanha desfaçatez sob o rótulo da vontade popular é compreensível, mas isso não deveria eludir a distorção subjacente no processo, pelo menos no nível da Ciência Política.

Na verdade, o processo democrático, tal como se realiza nas eleições brasileiras, de um modo geral, é uma peça de ficção, pois o eleitor, mesmo que esteja imbuído de uma clara vontade, é incapaz de saber para onde sua escolha foi de fato direcionada na bacia das almas do cálculo da divisão dos votos pelas coligações. Mesmo no caso de seu partido não estar coligado, fica ele sem nenhuma garantia de que seu voto pelo menos ajude a eleger alguém com quem ele tenha alguma afinidade política mínima, visto que a maioria dos partidos brasileiros - inclusive os outroras combativos partidos de esquerda - preenchem suas nominatas com nomes sem nenhuma coerência programática ou histórica; isso para ficarmos apenas no campo daqueles que não abrem mão de fazer um voto consciente. Se ampliarmos essa consideração até o eleitorado que vota sem muita consciência, então chegaremos a um quadro de frustração quase completo, pois nesse estrato o papel do partido como guia ideológico é ainda menos pronunciado.

No sistema vigente, move-se com maior segurança apenas aquela parcela do eleitorado que "quer levar vantagem em tudo" e que, nesse ambiente de absoluto descontrole institucional, tem muito mais chance de acerto no varejo do que os que buscam conseguir algo no atacado. A razão disso é muito simples de entender: como a seletividade dos partidos não funciona virtuosamente, ou seja, recrutando os melhores quadros dentro do seu escopo ideológico-programático, aqueles que ingressam em suas nominatas têm muito mais chances de fazerem do partido seu instrumento de ascensão social do que o contrário, ou seja, o partido se aproveitar de sua energia individual para promover seus objetivos sociais. Toda essa engrenagem perversa precisa ser revertida de modo que o ativismo social possa encontrar estruturas sólidas e sistêmicas por onde se amparar na luta pelo bem público.

O controle social da política local, destarte, necessita avidamente de uma pauta nacional que substitua a anemia dos partidos, como se viu no protagonismo de rede da Lei da Ficha Limpa, que, independentemente de seu resultado final, mostrou essa necessidade de ligar o local ao nacional como modo de promover efetivamente a cidadania política.

A ideia da democracia participativa, em países com as características políticas do nosso, assume um caráter diverso daquele verificado em países institucionalmente maduros. Não se trata apenas de romper os limites aristocráticos das instituições liberais através de uma ação direta da cidadania, mas de instituir uma forma específica de controle do corpo político que o impeça de manipular o voto popular por meio da corrupção de Estado semi-institucionalizada.

Sem uma reforma política ampla, geral e irrestrita, os ensaios de controle social do poder local que surgem no país correm o risco de perderem o impulso em meio à poderosa barreira institucional legitimada pelo voto popular, que garante às neo-oligarquias o controle sobre o Estado, em seus diversos níveis, a despeito das ações localizadas, tênues e restritas da Justiça brasileira e de outros atores sociais e institucionais de boa índole.

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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do LESCE-CCH/UENF-DR (Laboratório de Estudo da Sociedade-Civil e do Estado – Centro de Ciências do Homem/Universidade Estadual do Norte-Fluminense – Darcy Ribeiro).

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Notas

[1] Detalhes desse processo podem ser encontrados na monografia de conclusão de curso do cientista social José Crizóstomo, defendida em 2009 na UENF.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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