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Chico Buarque: herança de Sérgio

Lúcio Flávio Pinto - Julho 2010
 

Nelson Pereira dos Santos fez, sobre Sérgio Buarque de Holanda, um dos melhores documentários que já vi. Vi e revi. Sérgio foi um verdadeiro scholar, ensaísta de mão cheia, aquele tipo de pesquisador que ilumina os documentos consultados, que vê a história viva dentro - e além - dos papéis. Tinha um descortino raro do fato cultural, qualquer que fosse. Sentava-se diante da escrivaninha e levantava com um trabalho primoroso, fosse Raízes do Brasil, Visões do paraíso ou Monções. Além do mais, viveu muito e intensamente, em múltiplos ambientes: na academia, no bar, nos salões, nas ruas. Um dos intelectuais mais completos que o Brasil já teve. Um homem com altura e profundidade.

No documentário belíssimo, recebi com um travo o depoimento do filho mais famoso, o compositor, cantor e - por último - escritor Chico Buarque de Holanda. Chico é um fenômeno, uma dádiva que qualquer país deve cultuar e agradecer por tê-la. Nunca resgataremos a dívida que temos com ele, nós, seus contemporâneos. Mas Chico não deu sobre o pai o testemunho que seria de esperar dele. Parecia acanhado, tímido. Mais do que isso, porém: transparecia um ar de mágoa, talvez ressentimento. Suas palavras ressoavam certa amargura.

Seria pelo fato de que o pai quase não o deixava penetrar no seu gabinete, no qual se concentrava para o trabalho, local interditado ao comum dos mortais? O talento do filho foi precoce. O talento e certa qualidade mediúnica: menino bem nascido, que cresceu em ambiente de classe média ilustrada, era um acabado descendente de Noel Rosa e Ismael Silva, saído do subúrbio e descido do morro para sítio mais caracteristicamente urbano. Lirismo de sonetos combinado com a aspereza das ruas pelas quais circulam pivetes e assaltantes, operários e meretrizes.

O muito rápido e contido depoimento dado por Chico a Nelson sugere o desgosto do filho por não ter partilhado mais momentos com o poderoso intelectual que foi o pai, por não ter conversado de igual com ele, por não ter sido considerado um igual. Gênio da música popular não foi título suficiente para Chico: consolidada a carreira, acima do bem e do mal, quase uma unanimidade (inclusive na inveja que provoca), o filho de Sérgio Buarque investiu sobre a condição de escritor. Sabe, de fato, escrever. Mas não é um grande escritor. A musa da ficção não lhe é tão pródiga e ele não tem os atributos do pai.

Num texto também curto demais para a última edição (a 45) da revista Piauí, Chico fala do seu fascínio pelos dicionários. O gosto pelos verbetes do léxico remonta ao grande patrimônio que o pai lhe transmitiu: um exemplar do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Foi o livro que Sérgio passou ao filho, que relembra: "Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante".

Desde então, o compositor comprou sucessivos exemplares que encontrou, em sebos ou mesmo através da internet, para não se expor ao risco de ficar sem seu texto de consulta permanente e ao mesmo tempo imaginando-se detentor do monopólio da obra. Até que nova edição foi agora publicada, fazendo-o sentir-se "como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro". Quem sabe, não era o dicionário uma forma de se resguardar da competição com o pai e, ao mesmo tempo, tê-lo ali imobilizado como um igual?

Não sei se Chico Buarque de Holanda já leu Carta ao pai, de Kafka. Podia servir-lhe de inspiração mais provocadora do que a notícia da reedição do já não mais raro dicionário analógico de Francisco Azevedo. E mais satisfatória para nós, seus leitores e admiradores.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).



Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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