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O laboratório de Gramsci

Rubem Barboza Filho - Agosto 2001
 

Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999-2002. 6 v.

A publicação em português dos Cadernos do Cárcere recoloca a indagação acerca da atualidade de Gramsci. Teria este sardo, aprisionado pelo fascismo, algo a dizer a um mundo profundamente distinto daquele em que viveu e refletiu? Especialmente o Gramsci destes dois volumes, guardaria ele ainda reservas teóricas para ajudar a decifrar um novo estágio do capitalismo, caracterizado por fundas alterações produtivas, pelo crescente papel do avanço tecnológico, pela relativização do mundo do trabalho, pela morte aparente dos grandes sujeitos sociais, pela redefinição das funções dos Estados nacionais, por uma ordem internacional submetida a um sistema financeiro resistente a qualquer forma de controle e por um permanente estado de déficit utópico, descarnadas as utopias que cinzelaram o mundo moderno?

Fantasiado de labirinto, o laboratório conceitual de Gramsci exerceu um tremendo impacto libertador e renovador na tradição do marxismo ocidental durante o pós-guerra e a conjuntura da Guerra Fria, estendendo sua influência para o território próprio da tradição liberal-democrática, como no exemplo de Norberto Bobbio. Gramsci fez de sua desgraça pessoal a ocasião para um acerto de contas com o horizonte predominante da esquerda e do marxismo, tentando entender as mutações em curso no mundo e os processos estruturais que sustentavam o fascismo na Europa e a progressiva hegemonia norte-americana na economia do Ocidente.

O que eliminou qualquer interesse em reconstituir uma ortodoxia marxista, autorizando a forma labiríntica de seu pensamento e a relação agônica com seus conceitos, martelados por sucessivas indagações, ampliações e correções. Gramsci redimensionou e atualizou a imaginação política das forças de esquerda no Ocidente desenvolvido, livrando-as do tributo à velha idéia jacobina da revolução como assalto ao poder, substituindo-a pelo exigente programa de uma transformação de longo curso. Essa redescoberta da política, mediante uma rede de categorias inovadoras e originais, adequadas para o entendimento da complexa trama das relações entre estrutura e superestrutura no Ocidente, fez de Gramsci uma figura referencial na Europa e nos EUA. Mas a sua fortuna não permaneceu circunscrita ao mundo desenvolvido. Também aqui, nesta nossa sempre inquieta e confusa América Latina, o pensamento gramsciano se deixou apreender como obra aberta, dotada de enorme capacidade para orientar os atores, de esquerda ou não, empenhados em superar a proliferação de regimes autoritários e modernizantes como saídas para os nossos dilemas.

Embora progressivamente dedicado ao estudo de mudanças mundiais no capitalismo, Gramsci nunca deixou de se preocupar com a Itália, um país ocidental e retardatário. Razão pela qual o seu pensamento revelava uma surpreendente "tradutibilidade" para as circunstâncias latino-americanas, enriquecendo nossa perspectiva com temas e conceitos como hegemonia, guerra de posição, revolução passiva, função dos intelectuais, sociedade civil, americanismo e fordismo, vários deles presentes nestes volumes. Esse instigante acervo teórico permitiu à esquerda uma compreensão mais precisa dos processos em curso e a construção de poderosas alianças destinadas a desalojar os regimes autoritários do continente. Um olhar retrospectivo sobre os movimentos de democratização dos anos 80 não pode ignorar esse legado de Gramsci em nossa América.

Mas, se Gramsci foi um intérprete autêntico e criativo de seu tempo, teria ele atualidade num mundo que cansou de ser moderno e quer ser pós-moderno, sociedade complexa ou coisa semelhante?

Ainda que soe um pouco acaciano, o principal desafio da filosofia e da ciência política contemporâneas é pensar instituições e mecanismos que façam dos sistemas econômico e burocrático elementos subordinados a processos de crescimento da igualdade, da justiça e da liberdade, sem desconhecer as profundas novidades que explodiram nas últimas três décadas. Em que pese a complexidade e a relevância de reflexões universalistas e normativas como as de John Rawls, Richard Rorty, Jürgen Habermas, para citar alguns, ou do pensamento comunitarista, todas parecem envolvidas num problema derivado de suas pretensões de universalidade: a dificuldade em determinar ou convocar atores capazes de oferecer tradutibilidade às suas formulações, devolvendo-lhes, por outro lado, a riqueza da vida e do real. Sem atores, a imaginação utópica se perde ou serve apenas como critério geral para a reparação de danos, sem a ambição de subordinar o mundo das coisas ao mundo dos homens. É nesse ponto que as categorias gramscianas, com as torções e atualizações necessárias, recuperam o antigo frescor e vitalidade. Elas continuam categorias modelares para a compreensão deste mundo novo, incorporando com facilidade as contribuições das tentativas mencionadas. Elas não exigem, por exemplo, a oposição entre Gramsci e Habermas, convidando antes à fecundação mútua, ao estilo do próprio Gramsci. Mas, além de heuristicamente poderosa, a rede gramsciana de categorias continua a exibir uma qualidade especial, própria de sua origem: ela permanece contaminada pela febre de ação, apresentando-se como consciência que deseja abrir possibilidades sempre novas para a intervenção dos homens no mundo das coisas e dos fatos.

O laboratório gramsciano, invadido e utilizado por europeus, norte-americanos e latino-americanos, continua fiel à intenção com que foi erguido: a de renovar as possibilidades de atuação para formas novas e emergentes de subjetividade humana. Agora que os fatos e acasos parecem nos governar, nada mais atual do que essa inspiração embutida no pensamento de Gramsci, ou seja, essa busca de atores para a reinvenção da política como dimensão capaz de construir um mundo humanamente objetivo, ou objetivamente humano. 

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Rubem Barboza Filho é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Tradição e Artifício - Iberismo e Barroco na Formação Americana (UFMG).



Fonte: Folha de S. Paulo, 11 ago. 2001. Jornal de Resenhas, p. 8.

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