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O impeachment de Collor: literatura e processo

Brasilio Sallum Jr. e Guilherme S. P. Casarões - Junho 2011
 

Em dezembro de 1989 foi eleito Fernando Collor de Mello para a Presidência da República do Brasil com cerca de 35 milhões de votos, mais da metade dos votantes. Era o primeiro presidente a ser eleito conforme a Constituição democrática de 1988, quase trinta anos depois que o eleitorado brasileiro elegera diretamente o seu presidente pela última vez, em 1960. Com a eleição de Collor, parecia enfim efetivada a demanda central da campanha das Diretas-Já e do movimento pela democratização do país. Contudo, ao longo do tempo, foi perdendo prestígio popular, seu governo foi atingido por um volume crescente de acusações de corrupção e perdendo condições de comandar politicamente o país. Em maio de 1992 foi acusado por seu irmão de associação em esquema de corrupção gerenciado pelo tesoureiro de sua campanha eleitoral. Em seguida formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito que confirmou seu envolvimento. Em setembro a Câmara dos Deputados autorizou por grande maioria a abertura do processo de impeachment, em meio a uma onda de manifestações populares que demandavam isso do Congresso. Em dezembro de 1992, o Senado Federal aprovou o impeachment do presidente e o baniu da vida pública por oito anos. Também isso foi comemorado como sinal da força de democracia brasileira.

Como foi possível que isso acontecesse? Como explicar o impeachment do presidente Collor? Infelizmente, ainda não há explicação satisfatória para este evento singular da história política brasileira.

Os cientistas sociais que se debruçaram sobre o fenômeno têm recorrido a diferentes fatores para explicá-lo. Entre tais fatores, pouco destaque se deu à corrupção como tal, o alegado motivo para o impeachment. Como alega Weyland (1993), "a corrupção só se torna fatal quando empregada como arma por poderosos adversários". Os analistas têm priorizado na explicação as características pessoais do presidente, o modo como exerceu a Presidência, as disputas político-institucionais, a fragmentação partidária, o desgaste de Fernando Collor junto à opinião pública, a mobilização da sociedade civil ou uma combinação desses aspectos. Não se negará a explicações tão diversas alguma pertinência. Trata-se, mesmo, de fenômeno político para o qual concorreram múltiplas causas.

Não pretendemos aqui reduzir o impeachment a uma "necessidade histórica", explicá-lo por padrões gerais de conduta ou como fruto previsível de inconsistências institucionais. Evitaremos também reduzi-lo a resultado de circunstâncias improváveis. Tentaremos nos mover no espaço amplo entre o "acaso" e a "necessidade histórica" tentando esboçar aquilo que nos parece mais fazer falta à produção acadêmica sobre o impeachment do presidente Collor: um quadro inteligível que articule os fatores apontados pela literatura acadêmica - ou por ela às vezes subestimados - como responsáveis pelo impeachment, quadro este que permita caracterizar a dinâmica política que tornou o tornou muito provável.

Na sequência, examinaremos alguns dos fatores apontados por historiadores, cientistas políticos e sociólogos como explicação para o impeachment de Fernando Collor de Mello, chamando a atenção tanto para a pertinência como para a insuficiência explicativa de cada um dos aspectos enfatizados e para a vantagem analítica de complementar cada fator enfatizado com outras dimensões relevantes para a explicação do fenômeno. Começaremos pela discussão das explicações que ressaltam características pessoais do presidente, examinaremos em seguida os argumentos que enfatizam especialmente o papel das disputas político-institucionais e discutiremos, depois, as interpretações que põem em relevo as dimensões societárias subjacentes às instituições políticas e seus atores. Por último, tentaremos esboçar um quadro explicativo mais compreensivo para o impeachment do presidente Collor.

Personalidade e imagem simbólica do presidente

Quase todos os analistas do impeachment de Fernando Collor mencionam, pelo menos incidentalmente, suas características pessoais ou de comportamento como fatores contribuintes para que aquele evento tivesse ocorrido. Alguns deles, no entanto, fazem desses traços elementos chave para a explicação do impeachment. Concentram-se no exame do ator dando atenção menor à análise das circunstâncias, embora não deixem de sublinhar a sua relevância. Focalizaremos aqui particularmente os argumentos de dois desses autores, Thomas Skidmore (2000) e Carlos Melo (2007). Skidmore afirma, por exemplo, que "não obstante a influência de fatores ambientais e institucionais, não teria havido impeachment se não fosse pelos atributos pessoais de Fernando Collor de Mello. Quaisquer que fossem os defeitos estruturais do sistema político, os políticos convencionais que constituíam o Congresso provavelmente não teriam votado a favor do afastamento do presidente. Foram obrigados (sic) a agir por um comportamento presidencial que só pode ser definido como politicamente suicida" (Skidmore, 2000, p. 35).

Entenda-se bem de que características pessoais se tratará aqui. Os cientistas sociais cujos trabalhos serão examinados referem-se mais à personalidade política de Fernando Collor e à suas bases socioculturais do que ao perfil psicológico do ex-presidente.

Skidmore, por exemplo, aponta para a "identidade política esquizofrênica" de Collor, "em parte rebento de um antiquado clã político nordestino, em parte o representante de um Brasil moderno". Sublinha a circunstância de ele ter nascido e sido criado em uma família tradicional de Alagoas, ter recebido boa parte de sua educação escolar e ter vivido sua juventude, a partir dos anos 1960, no Rio e em Brasília, voltando depois a seu estado de origem para fazer política, tornando-se deputado federal, prefeito nomeado, governador e candidato a presidente da República. Assinala que seu aprendizado do Brasil moderno não se deu apenas por ter vivido e sido educado na região mais dinâmica do país, o sudeste, mas também por conviver de perto com os meios de comunicação de massa, dado que sua família era proprietária em Alagoas de uma TV repetidora da Rede Globo de Televisão, a mais importante do país. Para Skidmore, Collor teria experimentado esta pertinência a dois mundos também em seus casamentos, o primeiro com uma socialite que representava o Sul sofisticado e o segundo, ocorrido na sua volta a Alagoas, com uma jovem da família Malta, um dos clãs econômicos e políticos importantes do estado. Para o historiador, Collor fazia a ponte entre o mundo tradicional, que vinha aos poucos desaparecendo, e o moderno, que se expandia.

Argumenta-se também que os dois mundos em que Collor foi socializado estiveram presentes na imagem política que projetou ao longo da campanha presidencial. Com grande sensibilidade para o marketing político, Collor construiu com a ajuda de uma verdadeira "empresa político-eleitoral" uma imagem pessoal que tocou em pontos sensíveis das expectativas das massas populares incultas e das elites empresariais, na situação de crise econômica e política experimentada pelo Brasil do final dos anos 1980. Projetou-se como líder messiânico e paladino da moralidade, como religioso e associado a Frei Damião, conhecido no Nordeste como um novo Padre Cícero, como a voz dos que não tinham voz e a força de quem não tinha força para lutar contra a corrupção e os marajás, que enriqueciam sem trabalhar e contra as elites que exploravam o povo. Projetou de si também a imagem de paladino da modernidade, de um "Estado moderno, eficiente, que realmente preste serviços à nossa comunidade [...] um Estado que não seja interventor, que não seja paternalista, que não seja clientelista; um Estado que deixe as forças de mercado trabalharem..." [1].

Encarnando esta imagem pública, Collor conseguiu eleger-se presidente em dezembro de 1989. Seus problemas teriam começado depois.

"O maior problema de Collor - argumenta Skidmore - era sua maneira de ser. Sua boa aparência e queda por esportes arriscados o haviam tornado o político brasileiro mais telegênico em muitas décadas. [...] No entanto, a boa aparência não conseguia esconder uma atitude arrogante, própria de uma fase anterior da política brasileira. [...] Estava habituado a fazer poucas concessões ao lidar com outros políticos. Parecia a encarnação do "coronel" da política nordestina, acostumado a mandar". Ao contrário de outro nordestino, o ex-presidente Sarney, não procurava parecer conciliador perante os outros políticos e o público; seu estilo era belicoso e isso se refletia na escolha do seu secretário de imprensa, Claudio Humberto, que usava "linguagem ofensiva, atacando pessoalmente jornalistas e seus editores" (Skidmore, 2000, p. 35).

Os autores que focalizam a persona política do presidente percebem nela - e em suas relações com o clã político-familiar que levou para Brasília - a raiz de suas dificuldades para governar e dos erros que o levaram à queda. Seu estilo de conduta teria se materializado edição desmedida de medidas provisórias - éditos válidos desde seu recebimento pelo Congresso e reeditáveis a cada 30 dias a menos que fossem recusadas pelo Congresso.

A ideia-chave dos autores a que nos referimos é que o cerne das dificuldades políticas de Collor derivava da incapacidade entender que em uma democracia não basta receber 35 milhões de votos; em uma sociedade recém democratizada como a brasileira, complexa e com novos atores políticos, seria fundamental gerar consensos por meio da negociação. Os "erros" capitais que teria cometido decorreriam, no fundo, de agarrar-se à sua tradição política ao invés de ajustar-se aos novos tempos. O recurso farto à comunicação de massa como reforço à vontade política se esvaiu na medida em que fracassou sua política de estabilização e revelou-se a corrupção que permeava o seu governo.

O que é notável nesta literatura não é tanto que a sociedade subjacente não seja incorporada à explicação. Aparecem, sim, as dificuldades econômicas, algo da "cultura política" em mudança, o ambiente midiático etc., algumas das condições em que o personagem central fazia política. O que está quase totalmente ausente nestes textos são análises das instituições políticas e de sua dinâmica, da atuação dos centros de poder do Estado, dos partidos políticos e dos grupos de pressão. No livro de Carlos Melo é tanta a ênfase no personagem, em sua virtù ou na falta dela, que todo resto da situação com que Collor se defrontou depois da posse aparece metaforicamente como fortuna. No caso de Skidmore, o sistema presidencialista de governo só é introduzido para enfatizar que sua estabilidade também depende, sendo democrático o regime político, da capacidade de negociação política do chefe de governo, o que teria faltado a Collor.

A ausência de um tratamento específico das instituições políticas é tão mais gritante porque, afinal, foi uma Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as acusações contra seu tesoureiro de campanha, foi mais de 2/3 da Câmara dos Deputados que permitiu o seu julgamento pelo Senado e foi a quase totalidade de senadores, depois de sua renuncia, que votou pelo impeachment do Presidente da República e pela cassação de seus direitos políticos por 8 anos. Assim, invertendo a sentença de Skidmore, ainda que a personalidade de Fernando Collor tenha tido - como, de fato, teve - importância para o seu próprio impeachment, ela só ganhou relevância porque ele ocupava o posto-chave de um particular sistema de instituições políticas, em um certo tipo de república democrática e presidencialista, com uma dinâmica particular. A análise desta esfera da vida social, e da literatura que a focaliza prioritariamente, é, pois, crucial para o entendimento do evento histórico que nos ocupa. É o que ensaiaremos a seguir.

Sistema presidencial e instabilidade política

Tendo em vista o grande número de analistas das instituições políticas brasileiras, a bibliografia que analisa desse ponto de vista o impeachment de Fernando Collor é diminuta. Sua característica mais marcante é enfatizar as tensões institucionais inerentes ao sistema presidencialista de governo, em afinidade com o artigo seminal de Juan Linz, "The Perils of Presidentialism", publicado em 1990. Linz observou com estranheza a opção quase unânime pelos sistemas presidencialistas - mais propensos ao conflito e ao colapso - nas novas democracias que surgiam ao redor do globo. Para ele, o sistema parlamentarista seria superior tanto na preservação da estabilidade da democracia como no enfrentamento de eventuais crises de governo que raramente transformam-se em crises do próprio regime democrático.

Linz sublinha que, embora o presidencialismo dê certa estabilidade ao processo político e assegure a renovação dos quadros dirigentes em função do mandato fixo do chefe de Estado e governo, ele acaba por criar uma descontinuidade no processo político que pode produzir oscilações bruscas de orientação política entre os governos. Além disso, no presidencialismo há uma disputa latente entre poderes: não somente o parlamento reclama legitimidade para si, mas também o chefe do Executivo, munido de amplos poderes constitucionais que lhe dão o comando do governo e do Estado. Essa característica, a que Linz denomina "legitimidade dual" tende a produzir distanciamento entre os Poderes, faz com que possamos caracterizar o presidencialismo como um sistema de "independência mútua" entre Poderes, enquanto o parlamentarismo seria caracterizado por uma "dependência mútua" entre eles (Linz, 1990, p. 62).

Além das tensões decorrentes desta dualidade, podem surgir outras decorrentes da própria concentração de poderes de que dispõe o presidente. As constituições presidencialistas criam um executivo estável e forte, com legitimidade plebiscitária bastante para colocar-se no caminho de interesses particularistas que povoam a legislatura mas buscam, ao mesmo tempo, conter eventuais excessos personalistas e plebiscitários, dos quais o presidente é sempre suspeito. Num contexto de política democrática como um jogo de soma zero, o conflito é a regra, a oposição é implacável, e exacerbam-se as tensões e a polarização política entre os atores políticos relevantes (Linz, 1990, p. 56-7).

É verdade que o presidente, dotado de ampla legitimidade popular, pode se prontificar em "curar as feridas" da campanha eleitoral assim que assume seu cargo – tornando-se, portanto, um presidente de todos. Para Linz, no entanto, seria ingênuo achar que esse tipo de esforço ocorrerá em todo e qualquer caso. Ele depende em grande medida da personalidade e do estilo político do presidente e, em menor grau, de seus principais opositores (Linz, 1990, p. 60). Como se percebe, Linz retoma a questão da personalidade, mas como parte da dinâmica de um sistema, como parte inerente ao seu funcionamento.

Os pontos de vista de Linz têm grande afinidade com os de alguns analistas brasileiros do governo Collor. Entre eles sobressaem os trabalhos de Bolívar Lamounier e Amaury de Souza, que enfatizam as tensões político-institucionais na explicação dos fenômenos estudados. Dadas as afinidades intelectuais dos trabalhos, os examinaremos em conjunto.

Para estes autores haveria uma polarização institucional entre, de um lado, o forte poder da Presidência da República e, de outro, um conjunto de instituições reguladoras dos partidos, do sistema eleitoral e da federação orientado mais para a dispersão do poder, para a fragmentação da maioria, para a limitação do exercício do poder do que para a produção, por meio da engenharia institucional, de uma maioria governante compacta (Lamounier, 1993, p. 23). A força da Presidência da República viria do seu caráter imperial e/ou plebiscitário. Imperial, porque o chefe do Executivo centraliza o poder de diversas formas, dentre as quais se podem destacar, a partir da Constituição de 1988, as iniciativas legislativas exclusivas - como nas questões orçamentárias - os poderes de veto parcial e total, e acima de tudo o poder de decreto, consubstanciado nas medidas provisórias (MPs). Plebiscitário, porque associado à crença de que o capital político eleitoral do presidente eleito pelo conjunto do eleitorado e com acesso privilegiado aos meios de comunicações possa assegurar, junto com seus poderes constitucionais, a unidade e a coerência de um sistema político altamente fragmentado (Lamounier, 1993, p. 24-5).

No Brasil, a crença plebiscitária retomaria o culto personalista a Vargas e atribuiria ao presidente da República papel dual e central: o de poder estabilizador, por um lado, disciplinando e contendo particularismos da sociedade, e o de desestabilizador construtivo, por outro, indicando a direção e ditando o ritmo das grandes reformas sociais (Lamounier, 1992, p. 40).

No centro da argumentação está o caráter muito problemático da crença no poder unificador da presidência plebiscitária; a crença seria problemática porque entende que esta adesão do grande eleitorado ao presidente é estável e propicia a ele, de maneira contínua, o poder político de que carece. Para Lamounier esta estabilidade é tanto mais difícil, pois se acrescenta à fragmentação e à Presidência plebiscitária outra característica institucional brasileira, o corporativismo das relações capital/trabalho que, ao invés de organizar a "paz social", estaria produzindo o oposto, convertendo-se "em fator de falseamento dos interlocutores e às vezes de indexação exagerada dos conflitos trabalhistas entre regiões e setores" (Lamounier, 1993, p. 25). Quer dizer, às tensões propriamente políticas se adicionaria uma regulação das relações capital/trabalho que exacerba os conflitos sociais. O raciocínio não se restringiria ao período Collor, mas este parece, à primeira vista, ilustrar perfeitamente o problema. Seguramente, Lamounier tem isso em vista quando afirma que "em condições de superinflação crônica, é infelizmente muito provável que o capital plebiscitário decorrente da escolha eleitoral se esvaia com grande rapidez e que o presidente perca este que é seu principal recurso político: o apoio difuso do eleitorado. Se a este fato acrescentarmos a debilidade de nossa estrutura partidária e parlamentar, a estrutura federativa [...] com seu alto grau de fragmentação, chegaremos seja qual for o titular da Presidência da República, à situação em que o presidente vê erodida sua base de apoio e não dispõe, do ponto de vista legislativo e partidário, de maioria estável e, às vezes, nem mesmo de minoria substancial que permita, por meio de negociações, completar o que falta" (Lamounier, 1993, p. 25-6). Esta dificuldade permitiria compreender porque a Presidência da República, independente de quem ocupasse o cargo, tenha recorrido "à pressão, ao clientelismo e a outras instrumentalidades de poder..." (loc. cit., p. 26).

Estes dilemas institucionais permitem ao autor dizer que os riscos de ingovernabilidade podem ter origem tanto no Executivo como no Legislativo. Viriam do Executivo se ocorresse o que denomina "cenário janista", referindo-se à crise que levou em 1961 à renúncia do presidente Janio Quadros: "neste cenário, uma vertiginosa perda de prestígio e popularidade debilita politicamente o Presidente [...], tornando-o incapaz de persuadir ou pressionar o Congresso a aprovar o seu programa econômico; mas isso acontece sem que ele se disponha a negociar com o Congresso uma política alternativa. Aferrando-se às suas preferências e às prerrogativas que lhe são inerentes sob o regime presidencialista, o chefe de Estado passa a exercer autoridade fictícia, enquanto o país caminha rapidamente para o desgoverno" [...] Do lado do Congresso, o risco seria se o conflito entre suas principais correntes, ou a fragmentação interna de todas elas, impedisse tanto a aprovação dos programas do Executivo como o oferecimento a ele de alguma alternativa aceitável. Nesta hipótese, a capacidade de ação coletiva dos congressistas se reduziria a efêmeras coalizões de veto contra as propostas do Executivo, com a consequente paralisia do sistema". Estes cenários seriam situações-limite e, reconhece Lamounier, "entre o apocalipse que eles aludem e as condições que de fato se delineiam nesse começo de legislatura, muitas possibilidades e matizes se interpõem" (Lamounier, 1991, p. 83).

Como se vê, as tensões institucionais que empurram o sistema presidencial brasileiro para a ingovernabilidade não seriam inexoráveis, para estes autores. A governabilidade dependerá da personalidade e estilo de exercício da presidência, como notava Linz ou, na interpretação mais orientada para a ação, de Lamounier, da sua disposição de negociar com o Congresso uma política alternativa, em lugar de aferrar-se às suas preferências. Lamounier ainda acrescenta outra dimensão chave à interpretação, a da opinião pública, pois ela seria fundamental para a preservação da adesão plebiscitária à Presidência. Assim, a ocorrência do "cenário janista" dependeria tanto da manutenção do prestígio popular do presidente, reforçando sua capacidade política para dar unidade e direção ao Congresso - expressão destacada da fragmentação política produzida pelas instituições eleitorais, partidárias e federativas - e/ou da capacidade presidencial de negociar com o legislativo uma política alternativa, caso sua proposta não recebesse o apoio necessário. Os riscos de instabilidade se reduziriam drasticamente, no caso de preservação do prestígio presidencial, e/ou de o presidente demonstrar capacidade de negociar com o Congresso uma política econômica alternativa (isso no caso de Collor, que assumiu o governo à beira da hiperinflação). De novo: no tipo de literatura que examinamos, são as tensões inerentes a uma combinação específica de instituições políticas que dão grande relevo à personalidade, ao estilo ou à atitude negociadora, ou não, do presidente da República.

Na análise do processo político ocorrido ao longo do governo Collor, Lamounier identifica, em seu início, um período de "ditadura romana" – no qual legitimidade da eleição direta para a Presidência, a iminência da hiperinflação (a inflação corria a 80% ao mês) e a catástrofe que ocorreria em caso de desaprovação das medidas antiinflacionárias propostas por Collor tornaram o Congresso Nacional refém do Executivo e "afrouxaram" os requisitos de constitucionalidade das medidas apresentadas. Isso teria ocorrido pelo menos no primeiro mês do mandato de Collor. No primeiro dia do governo Collor anunciou 22 medidas provisórias, incluindo uma reforma administrativa, a extinção de entidades públicas desnecessárias, a privatização de empresas estatais, abertura externa da economia e uma redução de 80% da liquidez da economia, com a transformação de aplicações financeiras e parte dos depósitos bancários e de poupança em depósitos no Banco Central indisponíveis por um ano e meio, sendo depois liberados com juros em doze parcelas mensais. Um mês depois, as medidas provisórias estavam convertidas em lei (Cf. Lamounier, 1991, p. 88-91).

Este sucesso inicial trazia, porém, um perigo inerente à dinâmica do sistema presidencialista brasileiro. Afastado o risco da hiperinflação e aprovadas as medidas propostas pelo governo, o Congresso saiu da condição de refém, o Judiciário ganhou mais liberdade para avaliar a constitucionalidade das iniciativas governamentais e a capacidade de condução da Presidência passou a depender do poder que a Constituição lhe conferia, do prestígio popular que potenciava o exercício de sua autoridade legal e de seu estilo de exercer o poder. Passada a fase da "ditadura romana", fica implícito, começam a manifestar-se os riscos à governabilidade.

Com efeito, o fracasso na luta contra a inflação, a recessão prolongada, uma série de escândalos de corrupção que envolveram membros do seu governo e o estilo pessoal de Collor exercer o poder produziram uma redução drástica do prestígio do presidente junto à população.

Partindo de uma expectativa partilhada por 71% da população de faria um governo ótimo ou bom, seu prestígio popular cai drasticamente: três meses depois só 36% o consideravam um governo ótimo ou bom; depois de um ano, este percentual caiu a 24% e ao final de dois anos, seis meses antes de a Câmara dos Deputados autorizar o processo de impeachment, apenas 15% mantinham esta avaliação positiva. Seguindo o movimento inverso, apenas 4% partilhavam uma expectativa de que o governo Collor seria ruim ou péssimo; depois de 3 meses, 19% já o consideravam desta forma negativa; após um ano de governo 34% tinham esta opinião sobre ele; e no seu segundo aniversário, esta avaliação negativa já era partilhada por 48% da população. No momento em que a Câmara autorizou o processo de impeachment a avaliação do governo Collor tinha praticamente invertido as expectativas com que ele iniciou seu mandato.

Os autores dos trabalhos aqui examinados concordariam facilmente que embora a queda de prestígio popular possa ter aumentado os riscos à governabilidade, isso não levaria necessariamente a uma crise política aguda a ponto de resultar na renúncia ou no impeachment do presidente. O governo anterior, presidido por José Sarney manteve-se quase todo o tempo com prestígio popular muito baixo – à exceção dos meses que se seguiram ao Plano Cruzado, foi considerado ruim ou péssimo por uma porção que variou entre 50 e 70% da população e menos de 10% o consideravam bom ou ótimo (Datafolha). Denúncias de corrupção também não faltaram àquele governo. Ainda assim, o presidente Sarney conseguiu encerrar seu mandato e passar a faixa presidencial para seu sucessor.

Isso nos conduz a examinar com mais vagar as instituições e o estilo do presidente. As instituições políticas brasileiras seriam tão inflexíveis a ponto de conter sempre um potencial tão grande de risco? Da perspectiva da literatura considerada, "mesmo em condições normais, a combinação de presidencialismo com sistema partidário fragmentado torna extremamente difícil formar uma maioria estável no Congresso. [...] Uma grave crise econômica quase sempre produz pressões políticas em favor de forte liderança presidencial. Em tais circunstâncias a tentação de reivindicar legitimidade plebiscitária pode tornar-se irresistível para qualquer presidente, como foi para Collor no primeiro ano de mandato. A reação do Congresso pode também causar uma cisão. À medida que o apoio popular ao presidente diminui, o Congresso começa a vetar suas iniciativas políticas ou exigir compensações proibitivamente altas para lhe prover maiorias temporárias. Foi exatamente o que aconteceu com o presidente Sarney [...]" (Souza, 2000, p. 144-5). Assim, "o maior problema do presidencialismo brasileiro ainda são as reivindicações exageradas de legitimidade por parte da Presidência em face de um Legislativo fragmentado demais para fornecer um apoio estável, mas suficientemente forte para provocar impasse" (loc. cit., p. 148).

Dado que o presidencialismo brasileiro tendia a gerar enormes riscos políticos, qual a explicação que estes autores dão para o impeachment de Fernando Collor? De forma surpreendente, parecem acreditar que apresentando uma "agenda política consensual" e fazendo a reforma ministerial de março/abril de 1992 [2] - muito bem recebida no Congresso - Collor havia se recuperado politicamente, o que dava bons motivos para crer que as acusações de corrupção contra membros do governo, que há tempos se avolumavam, logo se dissipariam. Dai a conclusão de que "à luz desses acontecimentos, o impeachment de Collor estava longe de ser o resultado inevitável de seus deslizes e fracassos passados. Na verdade foi uma surpresa para todos (sic). Nas palavras de Lamounier, o impeachment foi o resultado inesperado da combinação praticamente impossível de cinco circunstâncias extremamente raras" (Souza, 2000, p. 138) [3].

Que circunstâncias improváveis foram estas? 1ª) a acusação de seu irmão, Pedro Collor, de que o presidente Collor era o sócio oculto de P.C. Farias, ex-tesoureiro de sua campanha eleitoral, que aproveitava sua relação com o Presidente para atividades de corrupção. Frente ao escândalo, o Congresso teve que formar uma Comissão Parlamentar de Inquérito; 2ª) a extraordinária incompetência de Collor e PC Farias para esconder suas supostas atividades corruptas; 3ª) a fragilidade e incompetência da bancada parlamentar governista para defender o governo e controlar a situação; 4ª) a ausência de tentativas de silenciar a imprensa ou abortar o processo político, mas pelo contrario um apego à ordem legal com a consequência inesperada de pessoas de origem modesta se apresentarem para depor perante a CPI; 5ª) a obstinação de Collor permanecer no poder até o último momento.

Não discutiremos por ora estas circunstâncias. Embora os trabalhos examinados sublinhem, com razão, a importância das tensões político-institucionais para a ocorrência do impeachment de Fernando Collor, suas análises ficam no meio do caminho. Isto é, ainda que enfatizem ter o processo de transição política brasileira se dado pelo fortalecimento do Congresso diante do Executivo e ter ocorrido no final da crise do impeachment uma sorte de "parlamentarização" do presidencialismo, eles não examinam suficientemente o comportamento dos partidos, do Congresso e as relações entre este e o Executivo no período Collor. Com efeito, esta literatura não examina tanto a gênese e a própria crise institucional; ela prefere ilustrar com ela os perigos que o presidencialismo plebiscitário traria para a consolidação da democracia, sublinhando com isso a urgência de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo.

Chamaremos a atenção do leitor apenas para alguns equívocos da análise que fazem das relações Executivo/Legislativo. Um exame mais detido da dinâmica político-institucional do período mostra que, a despeito da fragmentação partidária tornar difícil a constituição de uma maioria estável de apoio ao governo, não foi ela que impediu Collor de constituir uma base parlamentar majoritária e sólida ao longo do seu mandato. Ao contrário, não constituir uma maioria parlamentar estável foi uma opção tomada e reiterada várias vezes pelo Presidente contra as recomendações de alguns de seus apoiadores. Ainda em discurso comemorativo do primeiro aniversário de seu governo, em março de 1991, ele assegurou que considerava "mais democrático" constituir maiorias parlamentares ad hoc, para aprovar cada projeto. Além desta opção política, Collor tomou uma outra, a de não partilhar o Executivo com os partidos políticos que congregavam a maioria dos parlamentares que o apoiavam. Embora seu governo incluísse parlamentares, eles participavam do ministério sem a intermediação dos partidos. Sublinhe-se que estas duas escolhas políticas estão em geral associadas na política brasileira, mas não é necessário que assim estejam. Embora não se detenha na análise das instituições políticas, enfatizando mais as relações de força entre os atores, Kurt Weyland aponta, com razão, para o sentido do isolamento político de Collor: a constituição de uma forte base política com os partidos reduziria a autonomia política que tanto desejava; ele procurava, ao contrário, enfraquecer outros centros de poder existentes, tanto no interior sistema político como na sociedade (Weyland, 1993, p. 9-11).

De qualquer modo, as opções de não constituir maioria estável e de não compartilhar o Executivo com os partidos tiveram vigência plena no governo Collor até fins janeiro de 1992, quer dizer, nas duas primeiras fases do seu governo.

A primeira fase inicia-se com o lançamento do Plano Collor I de estabilização monetária e se encerra com o lançamento do Plano Collor II, em 31 de janeiro de 1991. Este fase se caracteriza pelos experimentos heterodoxos de combate à inflação e, principalmente, pela edição de um grande número de medidas provisórias – se incluirmos as medidas reeditadas, elas chegaram a cento e quarenta e quatro – recebidas com animosidade crescente pelo Congresso. A segunda parte do governo inicia-se em 1º de fevereiro, com a posse dos deputados federais e senadores eleitos em 1990. Entendendo que teria se tornado inviável seguir governando da mesma forma [4], com prestígio em baixa e animosidade crescente no Congresso, Collor decidiu melhorar suas relações o Legislativo, inclusive pela redução drástica de edições de medidas provisórias. Com efeito, Collor aumentou muito a latitude da "negociação" com o Congresso, discutindo intensamente o conteúdo suas iniciativas legais - principalmente projetos e as cinco medidas provisórias editadas no restante de 1991 - e ampliando a possibilidade de concessões do Executivo às demandas individuais dos parlamentares. Portanto, ao contrário do que às vezes se afirma, o governo Collor negociou suas iniciativas no Congresso e sempre praticou, em alguma medida, o clientelismo. Entretanto, ele manteve suas duas opções iniciais - de não formar maioria estável e de não compartilhar o Executivo. O Congresso não respondeu de acordo com o esperado a esta mudança de procedimento. A oposição manteve-se aguerrida e a base parlamentar governista desorganizada e oscilante. Isso foi restringindo ao mínimo a capacidade de Collor governar, ainda mais que seu programa de reformas incluía um grande numero de mudanças constitucionais, que para serem aprovadas exigem 3/5 dos votos do Congresso.

Apesar dessas dificuldades, apenas em janeiro de 1992, quando sua capacidade de comandar o processo político se esgotava, o presidente Collor decidiu incorporar os partidos de sua base ao executivo, mas aos poucos e seletivamente. Trocou ministros acusados de corrupção e, principalmente, convidou o ex-senador Bornhausen a ocupar uma Secretaria de Governo, a ser criada, para melhorar as relações com o Congresso e a organização da base governista. A partir daí, de forma hesitante, Collor foi atendendo às exigências de participação no Executivo dos partidos a que pertenciam os parlamentares com que, em geral, contava no Congresso. Almejava organizar sua base parlamentar e aos poucos constituir uma maioria parlamentar estável. Seu último movimento neste sentido ocorreu em fins de março/começo de abril, quando promoveu uma demissão coletiva do ministério e tentou formar outro atraindo para si parte do centro partidário. Mas não conseguiu incluir o PSDB, enquanto partido, no governo. O ministério resultante mesclava lideranças partidárias, com peso no Congresso, e "notáveis" que tinham aprovação genérica - especialmente da "opinião publicada" - mas com reduzida capacidade de articulação no Congresso. Por outro lado, o novo ministério, embora tenha produzido uma curta trégua nas acusações de corrupção contra o governo - pelo menos até a publicação das acusações de Pedro Collor - tolheria, pelo próprio peso político dos ministros, a capacidade de manobra do presidente frente às acusações. De qualquer modo, as iniciativas tomadas a partir de janeiro foram remédios insuficientes para que Collor retomasse o comando do processo político.

Em suma, já em movimento defensivo, procurando afastar as acusações de corrupção e evitar a paralisia de seu governo, Collor reformulou suas opções políticas iniciais e melhorou um pouco a situação do governo no Legislativo, mas sem constituir uma maioria parlamentar sólida. Deste modo, a "fragilidade e a incompetência da base governista" para defender o presidente e bloquear as iniciativas da oposição desde a instalação, em 1º de junho, da Comissão Parlamentar de Inquérito, não era uma circunstância improvável, como entende Lamounier; pelo contrário, era previsível.

Quaisquer que tenham sido as motivações para as opções políticas de Collor, quando ele teve condições políticas de superar a "fragmentação partidária" para sustentar-se, não o fez, e, ao revés, quando desejou fazê-lo já não dispunha de poder para tanto. Não aproveitou o prestígio político dos primeiros tempos e nem mesmo o que ainda lhe restava depois de um ano de mandato para negociar uma coalizão de governo com os partidos que com que tinha afinidade política e aspiravam por recursos do Executivo. Isso lhe teria permitido avançar mais em seu programa de reformas e poderia ter ajudado a sustentá-lo nos momentos de desprestígio. Ainda que se possa argumentar existirem tensões institucionais inerentes ao presidencialismo brasileiro, elas só se tornaram relevantes na produção de "ingovernabilidade" e do impeachment porque não foram adotadas as "soluções institucionais" oferecidas pelo próprio sistema para minimizá-las.

Que tais soluções eram possíveis, não há dúvida. O exame do processo político daquele período evidencia claramente que lideranças e partidos políticos apresentaram frequentemente tais "soluções institucionais", mas elas foram desprezadas quase até o final do governo pelo presidente Collor [5]. Lideranças e partidos sugeriram e, depois, demandaram compartilhar o poder executivo, reivindicaram que o governo praticasse enfim alguma modalidade daquilo que Sérgio Abranches denominou "presidencialismo de coalizão" [6]. A despeito disso, Collor apenas caminhava nesta direção quando foi atingido pelas denúncias de seu irmão, pela investigação da CPI e pela ação do Congresso, da imprensa e da "sociedade civil organizada", que impediram que chegasse ao fim do seu mandato.

Embora a argumentação desenvolvida até aqui, sobre a dinâmica político-institucional do período Collor, avance, como acreditamos, no conhecimento sobre o processo político que redundou no impeachment, ela deixa na obscuridade muitos de seus aspectos.

Um dos aspectos diz respeito aos limites que a personalidade de Collor teve no processo. A exposição das tensões institucionais do sistema presidencialista brasileiro, especialmente em função da não utilização das possibilidades de compartilhamento das funções executivas entre a Presidência e os partidos a que se vinculava a maioria dos simpatizantes do governo, indica a relevância provável da personalidade do presidente da República no gênese da "crise de ingovernabilidade" que levou ao impeachment. É verdade que a personalidade só ganha relevância porque é a do presidente, chefe de Estado e de governo; e que as alternativas à disposição dele são as fixadas pelas instituições políticas. Trata-se, pois, de personalidade institucionalmente inserida. De qualquer modo, a decisão de não compartilhar o ministério com os partidos onde encontrava apoio e de não organizar uma maioria parlamentar estável, ainda que dentro do horizonte das possibilidades institucionais abertas pela Constituição de 1988, poderia ser explicada pela personalidade autossuficiente do presidente Collor, por sua atitude arrogante, de menosprezo pelo Congresso, "própria de uma fase anterior da política brasileira, habituada a fazer poucas concessões ao lidar com outros políticos". Personalidade que parecia a encarnação do "coronel" da política nordestina acostumado a mandar (Skidmore, 2000). Mas, ainda assim, não se estará descrevendo aquelas alternativas institucionais de forma demasiado abstrata? Como se elas não ocorressem em um Estado social e economicamente inserido? Tais alternativas não pesariam de modo diverso caso o Estado não estivesse em crise, endividado e sem controle sobre a moeda? Os efeitos das escolhas feitas não teriam sido muito diferentes?

Outro aspecto que foi deixado de lado na argumentação desenvolvida diz respeito à oposição política ao governo Collor. Teria sido ela tão fragmentada que não estimulava a organização dos governistas? Ou, seu comportamento oscilante não deixava entrever sua possível articulação e capacidade crescente de mobilização?

A análise do processo político mostra que os partidos de centro e de esquerda - PMDB, PSDB, PDT, PT e outros partidos menores - embora possam ter discrepado quanto às iniciativas governamentais liberalizantes, atuaram como se constituíssem uma frente partidária na maioria das vezes em que estiveram em questão temas vinculados ao equilíbrio entre os poderes (como a do instituto da medida provisória) e a questões relativas a salários, aposentadorias e assemelhados. Tratava-se, é verdade, primordialmente de uma "coalizão", não articulada, de veto. Mas o seu núcleo, PMDB, PT e PSDB, converteu-se em uma coalizão de oposição e, depois, pró-impeachment [7]. Foi tal coalizão de partidos de centro e de esquerda, auxiliada pela imprensa e organizações extraparlamentares, que conduziu as investigações e todas as iniciativas e negociações que produziram o impeachment, incluindo aquelas destinadas a obter aos poucos o assentimento e até a colaboração ativa de núcleos de poder - entre eles as Forças Armadas - e/ou correntes políticas dos partidos "de direita". Isso, de imediato, remete à questão: como foi possível que partidos, aos quais se atribui coesão interna muito baixa, pudessem manter-se coesos e unidos ao longo de todo o processo de investigação da CPI e de impeachment? Por que o "centro" partidário - ao invés de aliar-se à direita, como o fez quando das votações sobre as políticas liberalizantes - vinculou-se à esquerda contra o governo Collor, quando se tratava da afirmação do peso relativo do Congresso Nacional no Estado e na defesa da renda dos trabalhadores e inativos? Outra questão diz respeito à participação das organizações extraparlamentares e de vários segmentos da população no processo de impeachment. Qual foi peso relativo desta participação e também das pesquisas de opinião no impedimento do presidente?

Todas estas questões - e as que diziam respeito aos alicerces "materiais" do Estado - demandam um exame do contexto social mais amplo em que ocorreram os processos político-institucionais que redundaram no impeachment. A literatura que focaliza este aspecto do processo de impeachment é muito pequena. Por isso, e por limitações de espaço, ele será examinado de modo sumário.

A dinâmica societária e o impeachment

Devemos a Bolívar Lamounier a análise mais aguda do contexto e dos dilemas societários subjacentes ao governo Collor e às opções do presidente da República (Lamounier, 1990). Ele chama a atenção para as circunstâncias adversas e para a reduzida capacidade macrossocial de escolher um rumo para superá-las que marcavam a sociedade brasileira quando das eleições de Fernando Collor. Resume tais adversidades sublinhando que ao longo de década de 1980 aumentou em muito o potencial de conflito social em confronto com uma diminuição significativa da capacidade dos sistemas econômicos e político acomodar as tensões sociais. A estagnação do crescimento per capita e a elevação da taxa de urbanização teriam se refletido em inflação crescente e em aumento de participação política, tanto a associativa como a eleitoral. O sistema político, no entanto, embora definindo uma nova norma reguladora, a Constituição de 1988, apresentava uma capacidade declinante de acomodar, de forma legitimada, os conflitos. Mais ainda, o Estado perdeu ao longo dos anos 1980 capacidade de impulsionar o crescimento econômico, na medida em que entrou em crise fiscal, pressionado pelos encargos do endividamento externo e pelas pressões redistributivas. Elevação do potencial de conflito e redução da capacidade material e simbólica do Estado para lidar com as tensões e demandas sociais – essas foram as circunstâncias adversas, em resumo, que Collor encontrou ao assumir o poder em março de 1990. A crise do "setor público" teria sido a causa mais abrangente do "declínio da capacidade macrossocial de decidir". Este declínio teria sido marca central da transição política brasileira, uma disputa regulada pelo calendário eleitoral com acordo mínimo entre elites e que envolveu dispersão progressiva do poder (multiplicação dos partidos, constituição elaborada sem núcleo ordenador e com participação de amplos segmentos sociais, debilidade do poder executivo), impasses institucionais prolongados sobre a duração do mandato presidencial e o sistema de governo e a insegurança em relação aos rumos econômicos e políticos do país, em função da coexistência de distintas utopias econômicas (variando do estatismo ao neoliberalismo) e políticas (participatória, presidencialista-plebiscitária e parlamentarista). Seguindo este raciocínio, podemos deduzir que a eleição de Fernando Collor em 1989 foi entendida pelos vitoriosos como uma sorte de opção popular pelo liberalismo econômico (e até pelo neoliberalismo) e pelo presidencialismo na sua modalidade plebiscitária, quer dizer, atribuindo - graças à votação popular direta - ao Executivo a condição de poder predominante sobre os demais.

A argumentação de Lamounier permite-nos sublinhar que as opções políticas feitas por Collor eram não apenas possíveis do ponto de vista institucional, mas correspondiam também a uma das alternativas "utópicas", no sentido de Karl Mannheim, socialmente existentes no final dos anos 1980. Tais opções não derivavam, pois, da personalidade do presidente, moldada pelo mandonismo oligárquico de Collor, embora pudessem ter muita sintonia com ela. A utopia econômica era sustentada por grande parte do empresariado, dos militares e da grande imprensa e em parte pelos políticos profissionais. A utopia política era uma interpretação conservadora, possível, da Constituição de 1988, na medida em que dava ao presidencialismo imperial, herdado dos governos militares, a legitimidade das urnas. Foi conforme tais opções - socialmente vigentes e não decorrentes de arbítrio pessoal - que o governo Collor buscou superar a crise herdada dos anos 1980 - a virtual hiperinflação, a incapacidade de o Estado impulsionar o crescimento econômico, etc. Assim, as opções político-institucionais de Collor [8], que preservaram as diretrizes governamentais [9], ainda que, ao longo do tempo, o incapacitassem para conduzir o processo político e deixassem-no sem proteção política na adversidade, não decorreram simplesmente de impulsos voluntaristas e autoritários, mas de crenças socialmente compartilhadas por largos segmentos das elites sociais brasileiras. Que tais crenças eram, de fato, "utopias" que não contavam com consenso social e, especialmente, dos membros do Legislativo e do Judiciário, já o demonstrou a progressiva paralisação e impedimento do presidente.

A dispersão progressiva do poder, ocorrida ao longo dos anos 1980, embora tenha reduzido a capacidade macrossocial de decidir, resultou de um processo sociopolítico inovador, a ampliação da autonomia política das classes medias e a emergência das classes subalternas no espaço público. Esta "democratização" das relações sociais de poder na sociedade brasileira alicerça as análises do período Collor e do impeachment que enfatizam a relevância da intervenção da "sociedade civil", dos "movimentos populares" e/ou da opinião pública no processo. A despeito desta ênfase comum, as análises distinguem-se segundo a maior ou menor ênfase dada aos movimentos sociais em detrimento da dinâmica político-partidária. O trabalho de Leonardo Avritzer representa talvez o limite extremo no que diz respeito à valorização do papel da "sociedade civil" a expensas dos partidos e do Congresso. Para ele, "a aliança política que se estabeleceu entre a opinião pública, os movimentos sociais e o sistema legal revelou-se mais forte que as forças patrimonialistas que o presidente mobilizou a seu favor" (Avritzer, 2000, p. 191). Deixa a entender que tal aliança foi decisiva para conseguir os votos necessários para autorizar o processo e para impedir o presidente. O papel do Congresso e dos partidos "de oposição" nesta análise é muito minimizado. Reconhece-se apenas que os votos do eleitorado "anti-patrimonialista" elegeram um "grupo de parlamentares [não definido] que não dependiam dos recursos do patrimonialismo "[...] cuja consolidação "representou uma renovação definitiva na composição da sociedade política" (loc. cit., p. 190). O impeachment teria sido a "primeira tentativa das forças políticas e movimentos sociais surgidos no final dos anos 1970 para influenciar a distribuição do poder no nível da sociedade política" (loc. cit., p. 191).

É notável a baixa relevância dada ao Congresso, às suas relações com o Executivo e aos partidos políticos na análise do impeachment e, de forma mais ampla, da transição para a democracia. Na sua reconstituição do processo, sequer o Congresso Constituinte joga um papel, embora tenha sido o autor da constituição democrática que permitiu o impedimento presidencial. A "sociedade política" - ainda que tenha provido os votos que autorizaram e impediram o presidente - cumpre aí o papel passivo de moldar-se à vontade popular expressa pela "opinião publica" e pela "sociedade civil", portadoras do universalismo democrático.

Uma análise bem mais nuançada - e que reconhece a autonomia relativa da esfera político-institucional - encontra-se no artigo já referido de Kurt Weyland. Depois de um exame das relações de força entre os principais atores políticos, em que sublinha a estratégia do presidente Collor de isolar-se dos partidos políticos que poderiam apoiá-lo e de enfraquecer centros de poder concorrentes para preservar sua autonomia política, o que centralizou as possibilidades de corrupção e debilitou suas linhas de defesa para eventuais ataques futuros dos adversários, Weyland conclui que "os interesses e erros de cálculo das elites conservadoras mais as pressões dos políticos de oposição não foram em si mesmos responsáveis pela queda de Collor. Contribuíram enormemente para este resultado revelações prejudiciais feitas pela mídia e o crescente ultraje popular que foi alimentado por elas. Começando em meados de agosto de 1992, multidões encheram as ruas de todo o Brasil para registrar o seu protesto contra as evidências de corrupção presidencial [...] para exigir que o governo limpasse a casa [...] criticar Collor [...] exigir sua saída" (Weyland, 1993, p. 20). "O fato de que estas manifestações de massa ocorreram pouco antes das eleições municipais que se dariam em outubro de 1992 serviu com elemento adicional para minar a estratégia dos aliados "reticentes" de Collor usarem o escândalo para propósitos limitados [...]. As demonstrações públicas funcionaram como fatores decisivos para persuadirem muitos dos seguidores remanescentes de Collor retirarem seu apoio" (loc. cit., p. 19).

Tendo isso em vista, Weyland procura responder a duas questões: 1) por que esta cólera cívica atingiu tais proporções?; e 2) por que neste momento?

Para o autor, o ultraje moral sinalizou tanto a maior liberdade de a cidadania expressar seus pontos de vista como o descompasso entre as expectativas crescentes em relação ao governo, engendradas pela nova democracia, e suas realizações. Que expectativas eram estas? Imaginava-se que um governo democrático romperia com o passado de privilégios, favorecendo a aplicação de procedimentos limpos e neutros, do princípio da igualdade perante a lei e de responsabilização dos representantes eleitos. O próprio Collor reforçou estas expectativas durante a campanha eleitoral de 1989 e procurou simbolizar isso. Esta foi a base da construção da imagem pública com que foi eleito (ver primeira seção deste artigo). Weyland sublinha que tanto o comprometimento com os valores democráticos como o ultraje com sua negação foram decisivos para o desprestígio de Collor, particularmente na classe média, origem dos jovens estudantes secundaristas e universitários que estiveram à frente das manifestações contra o presidente. Mais ainda: a situação recessiva produzida pelo próprio programa de austeridade fiscal do governo, tornando muito difícil a sobrevivência para os mais pobres e obrigando a contenção dos gastos da classe média, tornou ainda mais ultrajante as somas exorbitantes gastas pelo presidente e providas por PC Farias. Weyland argumenta que em um período de prosperidade a opinião pública não teria sido tão severa na condenação à corrupção.

Toda a argumentação do autor visa explicar a "virada" da maioria parlamentar "conservadora" ocorrida entre o resultado da CPI e a votação que exigia maioria de 2/3 da Câmara dos Deputados para dar início ao processo de impeachment. Ela é convincente em relação a isso, mas não vincula as expectativas, demandas e ações coletivas associadas ao processo de democratização: 1) à formação da coalizão partidária de oposição; b) às atividades de planejamento e mobilização desenvolvidas por esta frente já mencionada de partidos políticos.

Com efeito, toda a literatura que estuda o impeachment (e não apenas o artigo que acabamos de discutir) não se preocupa em explicar a existência de uma "oposição político-partidária" ao governo Collor, como isso não constituísse um problema. Ora, não se afirma que o sistema partidário é fragmentado, que os partidos não são coesos, etc.? Como explicar então que nas questões relativas à afirmação do poder do Congresso em relação ao Executivo, em relação aos salários, aposentadorias, pensões PMDB, PSDB, PT, PDT e os pequenos partidos de esquerda votavam majoritariamente juntos? Como explicar que PMDB, PSDB e PT, apesar de suas diferenças, oficializaram uma frente partidária pró-impeachment e, de fato, atuaram em conjunto, como se verá? Acreditamos que uma boa hipótese é que tais partidos eram a expressão parlamentar uma coalizão sociopolítica democratizante que incluía organizações de classe média, de classe operária e de pobres urbanos que vertebrou o eleitorado urbano e, em especial, das cidades maiores, em favor da democracia. Embora tal coalizão - frouxa porque informal e por vezes marcada pela competição entre seus componentes - tenha surgido nos anos 1970, ela ganhou densidade e capacidade máxima de impulsão com a Campanha das Diretas-Já. A despeito das divergências, os partidos desta coalizão sociopolítica - mesmo quando o PSDB ainda era parte do PMDB - estreitaram seus laços durante a Assembleia Constituinte, sustentaram a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno das eleições presidenciais de 1989 (ainda que tivessem diferenças notáveis entre si) e atuaram juntos em tudo aquilo que eles interpretavam colocando em questão a democracia, fosse penalizar os mais pobres seja por inferiorizar o Congresso. Portanto, a frente partidária oposicionista e a coalizão pró-impeachment tiveram sua unidade impulsionada e sustentada por uma coalizão sociopolítica democratizante e por uma rede de contatos e articulações parlamentares desenvolvida ao longo da Assembleia Constituinte.

A ênfase que aqui foi dada à democratização enquanto movimento sociopolítico - e não apenas como construção de normas institucionais - permite compreender também por que estava fora de questão qualquer limitação à liberdade de imprensa e porque os partidos de oposição e atores políticos em geral cuidaram de atuar no estrito cumprimento da lei. Talvez Lamounier (1993) tivesse razão em qualificar isso como circunstâncias improváveis que contribuíram para o impeachment caso o país ainda estivesse sob a regra militar, mas não depois do processo constituinte. Não há que surpreender-se, pois, com a preservação da liberdade de imprensa e com o cuidado na manutenção da lei. No que diz respeito a esta última questão, ademais, o cuidado com a legalidade tinha em vista adicionalmente não dar margem a dúvidas - por parte dos militares - de que agia-se em obediência à constituição, o que justificava sua neutralidade.

Entretanto, esta impulsão e sustentação sociopolítica da frente partidária democratizante não devem ser pensadas como o lado ativo de uma relação em que os partidos de oposição tivessem sido receptáculos passivos do movimento da "sociedade civil". Longe disso. A frente partidária democratizante deu lugar, em fins de maio, a uma coalizão entre partidos, como mostramos. A leitura da reconstrução cuidadosa, como a que fez Alberto Tosi Rodrigues, das relações entre partidos e as organizações da "sociedade civil" no processo de mobilização mostra que as associações de estudantes, de profissionais de classe média, sindicatos operários, etc., embora tivessem alguma capacidade autônoma de mobilização, como o demonstraram até meados de agosto de 1992, não cumpriram papel dirigente no processo de impeachment (Rodrigues, 2000). Este foi desempenhado pela coalizão entre PMDB, PT e PSDB, ainda que cada um deles tivesse cumprido papeis diferenciados no processo.

Impeachment: algumas conclusões

O exame crítico, ainda que sumário, da bibliografia sobre o impeachment permite confirmar a pertinência explicativa de vários dos fatores que ela apresenta como relevantes para a queda de Collor. Confirma, adicionalmente, a carência de um esquema explicativo de conjunto para o evento. Entretanto, a discussão anterior permite apresentar alguns resultados que acreditamos avançar na direção a um esquema deste tipo.

Em primeiro lugar, parecem ter alguma razão os que enfatizam ter sido a personalidade autoritária de Collor - uma das faces da tradição oligárquica em que foi socializado - relevante para explicar a queda do presidente. Há indicações, no entanto, que ela jogou aí um papel limitado. Desde logo o tipo de personalidade só pode ter tido importância, se teve, porque se tratava de um presidente da República. Além disso, as opções políticas que parecem manifestar sua personalidade estavam inscritas na Constituição de 1988. Não compartilhar o executivo com os partidos e não preocupar-se em formar uma maioria parlamentar estável eram possibilidades que a Constituição de 1988 lhe oferecia. Dado que elas parecem apequenar o papel que boa parte dos congressistas, governistas e oposicionistas, desejava para os partidos ou o Parlamento, aquelas opções podem ser interpretadas como derivadas da personalidade "arrogante", "voluntarista", "pouco propensa à negociação" do Presidente. Ocorre que tais opções efetivavam também – mal ou bem, pouco importa – uma das utopias políticas que orientavam as disputas naquele período pós-constituinte. Com efeito, elas materializavam um regime presidencialista forte, tanto porque sagrado pelas urnas como porque capaz de conduzir reformas que superassem a instabilidade monetária e "ajustassem" o Estado para conformá-lo à dinâmica do mercado. A maioria das organizações empresariais e a grande imprensa vocalizavam estas utopias, o presidencialismo forte e o reformismo liberal. Em suma, o que se atribui à personalidade materializava uma utopia política que pareceu encontrar condições de realização no governo de Fernando Collor. A tentativa de efetivação contrariou, porém, as práticas clientelistas usuais do "presidencialismo de coalizão" e a utopia parlamentar que, ancorada no movimento de oposição ao regime autoritário e ao poder do Executivo, aspirava reforçar o poder Congresso até, no limite, transformá-lo em centro do Estado, como no parlamentarismo.

Em segundo lugar, têm razão os autores que enfatizam a importância da dimensão político-institucional para o impeachment. Mas não porque, como querem Lamounier e Souza, o sistema presidencialista brasileiro seja por si mesmo instável e produtor de crises de governabilidade. A instabilidade do governo Collor decorreu mais das opções institucionais do presidente - frente a outras alternativas possíveis e mais "ajustadas" ao poder atribuído pela Constituição de 1988 ao Congresso. Isso sugere que a democracia e o presidencialismo brasileiros, embora permitam muitas variações no que diz respeito à "gestão" das relações entre os poderes executivo e legislativo, apresentam limites quanto a isso. Há que ter cautela, porém, em tomar o impeachment como sinal de que tais limites foram atingidos e que os governos que adotarem tais práticas de "gestão" - executivo não compartilhado com os partidos e maiorias parlamentares ad hoc - tendem à instabilidade e, no extremo, à queda. Cabe não esquecer que a crise do impeachment ocorreu em circunstâncias históricas muito especiais. Aconteceu em meio a um processo inacabado de transição política, marcado por movimentos de democratização política e liberalização econômica e regulado precariamente por um Estado cuja capacidade de comando sobre a sociedade e o mercado era muito débil [10]. Cabe, por isso, indagar se os efeitos das opções políticas do presidente Collor teriam sido tão danosos ao equilíbrio de seu governo caso o Estado, na época, tivesse maior capacidade regulatória. Infelizmente, não temos condições de discutir aqui esta possibilidade.

Ademais, as opções políticas de Collor explicam apenas porque o presidente teve dificuldades grandes para aprovar suas iniciativas no Congresso e contou com uma defesa política débil quando sob ataque dos adversários. Como vimos, aquelas opções não explicam a unidade dos opositores de Collor em meio à fragmentação partidária e às divergências dos partidos de centro e de esquerda em relação às políticas de liberalização econômica. Por um lado, a explicação para esta unidade está, em parte, nas redes de relações transpartidárias que os políticos do PMDB, do PT e do PSDB forjaram na luta contra o regime autoritário e no processo constituinte e, em parte, na sustentação política que tinham de um grande número de atores coletivos - associações profissionais, sindicatos, associações de moradores, etc. - que, sob a liderança daquelas agremiações partidárias, formaram a coalizão democratizante que derrotou o regime militar, fixou as diretrizes básicas da Constituição de 1988 e seguiu atuando em favor da expansão da cidadania. Por outro lado, a unidade decorreu também por terem tais partidos interpretado as políticas do governo Collor como ameaças ao processo de democratização, seja por desvalorizarem os partidos e o Congresso seja produzirem ônus para os trabalhadores, funcionários ou aposentados.

Assim, a despeito de os partidos de centro - PMDB e PSDB - não se oporem ao conjunto das políticas de Collor, contribuindo com suas vitórias quando se tratava de iniciativas liberalizantes, sobrepuseram a isso sua aposta na preservação do que tinham conquistado em 1988 e na efetivação das diretrizes normativas contidas na Constituição.

Em terceiro lugar, as mobilizações coletivas ocorridas ao longo de 1992 tiveram como elemento impulsionador não apenas os resultados econômicos negativos do governo Collor mas sua dissociação e contraponto em relação às aspirações universalistas e igualitárias inerentes ao processo de democratização. Isso está bem estabelecido pela literatura. Como vimos, as mobilizações respaldaram tanto a atuação conjunta da oposição partidária como foram fator impulsionador importante da conversão política da maioria parlamentar "conservadora" à decisão pró-impeachment. A reconstituição das manifestações públicas ao longo de 1992 permite dizer, além disso, que embora as entidades estudantis e sindicais e as associações de classe média profissional tenham mostrado capacidade autônoma de mobilização contra o presidente Collor, elas só ganharam volume e intensidade no final de agosto, depois da aprovação do relatório final da CPI, sob o impulso da coalizão partidária pró-impeachment.

Por último, a literatura acadêmica subestima várias questões cujo exame poderia resultar em avanço significativo no conhecimento da crise política que resultou no impeachment de 1992. Ressaltamos duas delas. A primeira diz respeito ao papel das disputas simbólicas ocorridas ao longo do governo Collor e, especialmente, no processo de impeachment. Acreditamos que tais disputas - como as relativas às cores da bandeira, ao hino nacional, etc. - tenham sido dimensão fundamental das mobilizações coletivas e da avaliação popular dos acontecimentos. A segunda diz respeito ao papel ativo desempenhado pelos partidos de oposição no processo de impeachment. Nossa hipótese, a ser examinada em outra ocasião, é que o impeachment foi conduzido pela coalizão entre PMDB, PSDB, PT (com apoio relevante do grupo do senador José Sarney). Esta coalizão político-partidária foi o núcleo motor do processo, atuando em várias esferas, moldando decisões e articulando apoios para seus objetivos. Trata-se de uma coalizão que mostrou consistência estratégica e precisão tática invulgares. Ela não deve ser confundida com a frente partidária de atuação formada, sem uma verdadeira articulação, pelos mesmos partidos - e outros menores - ao longo do governo Collor até meados de 1992, sempre que interpretavam estarem em jogo as diretrizes democráticas orientadoras da Constituição de 1988. Só a partir da formação da CPI eles se articularam em coalizão. As circunstâncias antes mencionadas - tradição comum de luta contra o regime militar, interação transpartidária e suporte social - permitem explicar a atuação dos partidos como frente mas são insuficientes para dar conta da coalizão, de seus dilemas, dos objetivos e das opções adotadas diante das movidas dos adversários e assim por diante.  

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Brasilio Sallum Jr. é professor do Departamento de Sociologia da USP. Guilherme Stolle Paixão e Casarões é doutorando de Ciência Política da USP. Texto originalmente publicado em Lua Nova, São Paulo, n. 82, 2011, p. 163-200. 

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Notas

[1] Cf. discurso no programa gratuito de televisão do Partido de Reconstrução Nacional transmitido em 30/03/1989, citado por Melo (2007, p. 151). Este parágrafo deve principalmente às análises de Carlos Melo, e Sallum Jr., Graeff e Lima (1990). Uma análise dos discursos de Collor e do binômio messianismo/modernidade encontra-se em Olga Tavares (Tavares, 1997).

[2] A reforma ministerial foi um movimento de defesa de Collor em relação às acusações de corrupção feita contra membros da equipe anterior. O novo ministério incluía, segundo Souza (2000), "respeitados membros do Congresso, do Judiciário e do setor privado".

[3] O autor refere-se ao artigo de Bolívar Lamounier, "Bagatela sobre uma lorota", Jornal da Tarde, edição de 15/12/1992.

[4] As eleições de Ibsen Pinheiro (PMDB-RS) e de Mauro Benevides (PMDB-CE) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado Federal se associaram ao compromisso de valorização do Congresso, o que incluía o repúdio ao uso corriqueiro de medidas provisórias como iniciativa legal.

[5] As demandas dos partidos ancoravam-se na força institucional do próprio Congresso. Com efeito, como sublinhou Amaury de Souza, o Congresso recebeu poderes consideráveis da Constituição de 1988, inclusive a de decidir sobre a estrutura e organização do próprio Executivo.

[6] Referindo-se àquele período, antes do impeachment, Abranches observa: "O governo Collor não se constituiu segundo os moldes do ‘presidencialismo de coalizão’, nem loteou politicamente os principais núcleos decisórios do Estado, como o fizeram Tancredo Neves e José Sarney. Ao mesmo tempo, como a eleição do presidente se deu fora dos limites partidários [...] também não foi um governo de partidos. O executivo não tem uma base orgânica no Congresso e, por isso mesmo, sofre sistemática pressão para ajustar-se ao padrão clientelista. Não obstante tem atacado duramente muitas das instituições que viabilizam este padrão e, assim, desgostado os setores que o apóiam no Congresso" (Abranches, 1992, p. 133). A respeito do " presidencialismo de coalizão", consultar (Abranches, 1988).

[7] Em 27/5/1992, Orestes Quércia, presidente do PMDB, Tasso Jereissati, presidente do PSDB, e Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do PT, decidiram formar uma coalizão de oposição para atuar na CPMI. Resolveram também convidar Leonel Brizola (Cf. Banco de Dados POLI, evento 036). Em 3/06/1992 reuniram-se novamente e acordaram ação conjunta no Congresso Nacional (Cf. Banco de Dados POLI, evento 010). Embora Brizola resistisse, os parlamentares do PDT agiram na CPI em sintonia com os demais da oposição. Os demais partidos de esquerda eram liderados pelo PT. Deve-se agregar ao núcleo duro formado pelos três partidos o grupo do senador José Sarney que incluía parlamentares do PMDB e PFL.

[8] Apenas para deixar claro: referimo-nos às opções de não partilhar o executivo com os partidos políticos governistas e de não formar maioria parlamentar estável.

[9] O insulamento institucional apenas se exacerbou e estendeu no governo Collor. No governo Sarney pelo menos a política macro-econômica foi insulada, especialmente os planos de estabilização.

[10] Sobre este processo de transição política, consultar, entre outros Sallum Jr. (1995), especialmente os capítulos 2, 3 e 4, e Sallum Jr. (2003).

Referências bibliográficas

ABRANCHES, Sérgio H. H. de. "Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro". Dados, v. 31, n. 1, 1988.

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Fonte: Lua Nova & Gramsci e o Brasil.

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