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Os contos de Aconselho-te crueldade

Alexei Bueno - Outubro 2011
 

Fernando Fiorese. Aconselho-te crueldade. São Paulo: Nankin Editorial, 2011. 160p. 

Os gêneros literários são mistérios, como as nações, para recordarmos o verso brilhantemente aforismático do Fernando Pessoa de Mensagem. Como acontece com as formas fixas na poesia, todas parecem haver surgido de uma necessidade anterior, platônica, como oriunda do inapreensível mundo das ideias puras. Se há formas fixas de evidente artificialismo - a sextina, por exemplo -, como explicar a milagrosa necessidade, necessidade de existir, que encontramos num soneto, numa oitava heroica, na terza rima, ou, para ir ao outro lado do mundo, num haicai? Por isso a vacuidade algo ridícula dos ataques às formas fixas em si mesmas nos momentos de subversão literária, quase sempre na saudável tentativa de libertá-las da crosta dos maneirismos e das modas. O problema é que as formas nada têm a ver com as modas e os maneirismos com que os maus poetas e os maus prosadores as cumulam nos momentos de decadência literária. Elas retornam sempre, com uma juventude auroral que as acompanha desde sua gênese secular.

Se o romance, indubitavelmente, assumiu o primeiro plano entre os gêneros literários da prosa narrativa na idade moderna, a especificidade das outras formas, a novela e ainda mais marcadamente o conto, garante-lhes essa necessidade inexplicável sobre a qual acabamos de falar em relação às formas poéticas. Como estender a trama, aumentar o número de personagens, aprofundar o psicologismo na relação entre os mesmos, sem destruir uma mínima e insubstituível maravilha como é - um exemplo perfeitamente aleatório, entre milhares - um conto como "O barril de Amontillado", de Edgar Allan Poe?

Há autores em que se nota, independentemente de variadas e às vezes culminantes realizações em outros gêneros literários, o que podemos chamar do gênio da narrativa curta, a implacável vocação ao conto, como, entre nós, um Machado de Assis, um Monteiro Lobato, um Hugo de Carvalho Ramos, um Guimarães Rosa, ou, entre os estrangeiros, o já lembrado Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, Stevenson, Tchekhov, Kipling, Gorki, Horacio Quiroga, Panait Istrati, Isaac Babel, Jorge Luis Borges, Miguel Torga ou Juan Rulfo.

Como a dominância classificatória de um dos gêneros literários é quase uma necessidade do público em relação aos autores, até mesmo no caso dos polígrafos, é preciso lembrar que todos conhecíamos Fernando Fiorese, acima de tudo, como poeta, sem esquecer do ensaísta do excelente Trem e cinema: Buster Keaton on the railroad. Com o aparecimento de Aconselho-te crueldade, a questão passa a ser mais melindrosa, pois ele nos surge como um requintado contista, nas várias vertentes que, por sua vez, podemos encontrar no gênero.

Conto magistral, exemplo tout court do que tentamos definir acima como o conto em sua essência mais pura, é a narrativa "Era uma boneca". A prosa de Fernando Fiorese adquire, nessa pequena obra-prima, um tom mais coloquial, claramente explicado pela ambiência cotidianamente banal em que tudo se passa, assim como pelo fato de o papel do narrador estar entregue a uma figura infantil, arauto de uma coletividade infantil numerosa. Se o ambiente é cotidianamente banal, o fato detonador do pathos do conto não deveria sê-lo de maneira alguma, mas, na verdade, chega quase a sê-lo entre nós. Compreendo perfeitamente que estou escrevendo frases obscuras e sibilinas, que ninguém entenderá, mas o meu objetivo é exatamente este, pois não quero desvelar o cerne dessa narrativa.

Se "Era uma boneca" me parece um exemplo acabado do conto em sua essência, "A tempestade" se encontra na fronteira do poema em prosa, gênero de muito complexa definição, que vez por outra é tangenciado pelo conto, ou o tangencia. A prosa do autor, nesse caso, muda completamente de registro, mantendo a mesmíssima eficácia. Trata-se de uma prosa muito requintada - o coloquialismo desapareceu - a tal ponto que é difícil não julgar a obra, por sua extrema concisão e acuidade, um poema.

Já em "Um nome e os óculos" há como que uma fusão entre as duas tendências. Começando por uma análise muito aberta da psicologia feminina, ou do que algumas ou muitas mulheres julgariam como tal, a narrativa se move do geral em direção ao particular, conduzindo a um final surpreendente. A prosa do autor, do mesmo modo, como que se equilibra sobre uma corda suspensa entre as duas maneiras que acabamos de comentar, o registro mais terra a terra das coisas e a visão aguda, sintética - poética, portanto - da essência profunda do que se apresenta gradativamente desde as primeiras palavras, através de uma narradora que também se aclara paulatinamente.

Falamos de três contos apenas, que representam três estilos de contos, no universo do livro, todos vazados na mesma brilhante prosa do artista aqui presente. E julgamos que três - número místico por excelência, em todas as religiões e visões do mundo - é um número suficiente e exato, pois o que importa é a silenciosa percepção e fruição de cada leitor.

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Alexei Bueno é poeta, ensaísta, editor e tradutor.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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