Há muitas décadas corria, na América do Norte, uma expressão que passava por espirituosa e pretendia sintetizar o contraste entre o protagonismo dos Estados Unidos e o caráter muito menor da presença canadense no mundo. O Canadá, segundo tal expressão, sofreria de um mal irreparável: sua geografia era tudo, a história quase nada. Duplo preconceito, é evidente, contra a geografia e contra um paÃs tão plural, diversificado e original quanto o poderoso vizinho mais ao Sul.
De uma certa forma, padecemos de sÃndrome semelhante, que deu origem a inúmeras expressões de autoironia: o "transoceanismo" das nossas elites, inclusive culturais, deixava-nos de costas para a realidade americana, as ideias e as crenças vinham-nos com o último paquete da França, e custou-nos muito adquirir paulatinamente, a partir da intensa modernização do paÃs no século XX, a noção do nosso enraizamento numa realidade nova e desafiadora, bem distante, muitas vezes, do padrão metropolitano. Custou-nos descobrir, afinal, que geografia é destino - logo, é algo saturado de história, com seus dramas, encruzilhadas e até imprevistas acelerações.
É por isso que já agora nos atingem tão diretamente as peripécias individuais dos nossos vizinhos, as marchas e contramarchas do processo de unificação sul-americana: a necessária integração fÃsica do subcontinente, o aumento dos seus fluxos de comércio, a elaboração possÃvel de um ponto de vista original sobre o mundo nestes paÃses em si tão variados e até estruturalmente desiguais da América Ibérica.
O fato é que por aqui convivem, numa assimetria evidente de tempos históricos, paÃses que, como o Brasil, a Argentina ou o Chile, seria melhor considerar como membros plenos de um "extremo Ocidente", com sociedades e economias que se abriram, de um modo ou de outro, à participação dos setores subalternos; e paÃses que, por sua vez, ainda vivem o acidentado processo de expansão das suas repúblicas para além do restrito âmbito oligárquico. Um processo que, não raro, acontece de modo autoritário e conduzido "pelo alto", como, aliás, se deu entre nós, nos anos trinta do século passado, e que agora parece se reproduzir nos paÃses da "revolução bolivariana", especialmente naquele que se singulariza por altÃssimas reservas de petróleo e por uma agressiva liderança carismática, capaz de se arvorar, com alta dose de voluntarismo, em porta-bandeira de resistência ao neoliberalismo e de construção do socialismo no novo século.
Geografia e história se misturam, e não se trata de experimentos conduzidos in vitro ou, para citar expressão sugestiva, não são acontecimentos que possam transcorrer "num ringue convencionalmente regulado". Pode acontecer, por exemplo, que ações positivas de democratização social - ou que apontem neste sentido - se entrelacem com visões esquemáticas da polÃtica e da sociedade. Nem tudo, em nuestra América, é Ocidente, ainda que extremo e periférico, razão pela qual, mesmo em ambientes de esquerda, pode predominar uma sociologia polÃtica rudimentar, que vê, de um lado, o presidente e o povo, em ligação imediata e sem restos, e, de outro, o conjunto das mediações sociais e instâncias organizativas, vistas como algo irreparavelmente oligárquico e elitista.
Nascem assim projetos autoritários de mudança social, que mais adiante vão cobrar seu preço - tal como aquele cobrado, no final do século XX, pelo esgotamento e colapso das experiências igualmente autoritárias do antigo "socialismo real". As instituições clássicas da democracia polÃtica - o Parlamento, o Judiciário independente - são vistas como um obstáculo à mudança, e daà para sua descaracterização e manipulação, em contextos de autoritarismo eleitoralmente competitivo, vai um passo curto, que costuma atrofiar por décadas o florescimento de uma convivência civil livre e autônoma. A própria ideia de uma sociedade civil plural e articulada, como um valor em si mesmo, como espaço de luta muitas vezes áspera, mas também de permanente recriação de consenso e acordo, perde-se em favor da arregimentação militarizada da vida social a partir de cima: do Estado e do seu homem providencial.
Os antigos Estados do Leste europeu fossilizaram-se num sistema de privilégios, que se tornava visÃvel assim que o olhar crÃtico ia além da superfÃcie de um certo nÃvel de direitos sociais supostamente universalizados, em troca da passividade polÃtica ou de um consenso artificialmente obtido. Faltava-lhes animação cÃvica, choque de ideias, possibilidade real de alternância entre grupos dirigentes cada vez mais expostos ao controle dos governados, tanto nos critérios da sua formação, quanto no exercÃcio das diferentes instâncias de direção. Naqueles paÃses, o contendor polÃtico era, invariavelmente, confundido com o agente externo, com o inimigo de classe, que cabia denunciar e esmagar. Em resumo, faltava-lhes o viço que só pode nascer de uma autêntica dialética democrática.
Muito poucos intelectuais de esquerda - poucos, desgraçadamente -, contemporâneos do erguimento daquele tipo de Estado, souberam ou quiseram apontar os limites "corporativos" da experiência, sua incapacidade de marcar época e se oferecer como alternativa de civilização. Não raro, entregaram-se a exercÃcios "justificacionistas", como se o atraso relativo de uma sociedade implicasse necessariamente uma polÃtica baseada em demiurgos, partido único ou avassaladoramente dominante, bem como estruturas estatais aquém dos requisitos modernos de liberdade individual e coletiva. O custo histórico deste erro foi, e ainda é, imenso; e, na América Latina, se é que entramos no século XXI, a geografia também isolará novos surtos desse tipo, cuja expansividade enganosa só incendeia a imaginação dos sectários.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.