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Entre Iacyr Anderson e João Cabral de Melo Neto

Paulo Andrade - Novembro 2012
 

Houve um sentido? Não foi tudo em vão?
Iacyr Anderson Freitas

Em Viavária (2010), livro mais recente do poeta de Juiz de Fora Iacyr Anderson Freitas, o leitor reconhece a filiação cabralina, no uso das quadras, no estilo descritivo e prosaico, na objetividade e rigor do corte, nas formas fixas e no ritmo, na intensa capacidade de reflexão e, sobretudo, na leitura crítica da realidade, questão que norteará a abordagem a seguir.

O poema "Viavária", que abre o livro homônimo, funciona como preâmbulo aos vários dramas históricos e individuais, encenados em nove séries, sobre os quais o poeta atravessa tempos e espaços para mostrar como o sistema de crenças, discursos e utopias, como a confiança no progresso, por exemplo, não passa de uma "ruína de erros". Nesse jogo de olhar oblíquo para os eventos históricos, sua crítica insurge-se contra projetos desenvolvimentistas da modernidade burguesa.

Portador de uma voz comprometida, o eu lírico utiliza-se da linguagem da poesia para "unir, a frio, o que o acaso dissipou". É nesse sentido que o livro se oferece como oblação, reiterando o forte valor de redenção da poesia. Mas seu humanismo solidário exclui qualquer efusão lírica sentimental, dissolvida pelo uso da ironia, e, às vezes, do humor, como arsenal crítico.

Consciente de seu lugar, como sujeito histórico, essa voz ética posiciona-se, a um tempo, no passado e no presente, analisando eventos históricos do país, filtrados pela sua subjetividade e transfigurados, como forma de resistência, em linguagem poética crítica. É possível notar na poesia de Iacyr Anderson uma voz que conserva e pratica os valores do alto modernismo.

Comentando a variedade temática de Viavária, Alexei Bueno (2010, p. 12) observa, no prefácio, que "a única coisa fixa, o centro e o cerne, é exatamente a voz" do eu lírico. De fato, a consciência crítica está constantemente armada para pôr em xeque as contradições dos discursos civilizatórios da modernidade, denunciando a presença sistemática de ciladas que, sob diferentes aspectos e desdobramentos, são sustentadas pelo discurso da razão e do saber, que o homem cria para si:

assim tão jovem me parece agora
essa ruína de erros: céus que se movem
para a morte, que entre livros se escora. (p. 17)
Chamo atenção para o traço polissêmico do título. Viavária pode significar desde a variedade temática, unida por profunda coerência interna, até a multiplicidade dos procedimentos técnicos: variedade de versificação, de metro, de rima, de ritmo, extraídos do vasto repertório da tradição, da qual Iacyr Anderson Freitas é profundo conhecedor.

Em Quaradouro (2007), obra que marca os 25 anos de publicação do livro de estreia de Freitas, curiosamente, sua poesia se inscreve numa tradição órfica, presente, no modernismo brasileiro, na voz de Cecília Meireles e Jorge de Lima. Tal fato chama a atenção de Affonso Romano Sant’Anna, que aponta o caráter de "intemporalidade" na obra do poeta mineiro:
Agora não se trata apenas do "de onde" (espaço), mas "de quando" (tempo) está reverberando essa poesia. Assim, passado-presente-futuro se fundem numa atmosfera onírica. O "onde" e o "quando" também se fundem [...]. Sendo genuinamente órfica, há na poesia de Iacyr algo de hierático, de nobre". (SANT`ANNA, 2007, p. 9)
Em Viavária, ao contrário, ganha espaço um eu lírico insurgente que arremete contra as promessas de emancipação humana da modernidade. Tal postura manifesta-se sob diferentes aspectos e desdobramentos nas diversas partes do livro, revelando contradições históricas como fracasso ou "ruínas de erros".

Se o diálogo com a voz de João Cabral de Melo Neto é presença constante no livro, no poema, "João Cabral: o método em visita" a gramática de contenção, precisão e concretude do mestre pernambucano se revela com todo vigor. Num gesto claro de aliança e homenagem, ressaltam os recursos técnicos do mestre revisitado:
Ser ao revés da cana:
algo que não se dobra.
Se o verso nos engana,
mudá-lo quando em obra.

Trazê-lo ao rés da fala,
sempre a menos garbosa.
Se o verso tudo embala,
fazer, em verso, prosa.

Para a cal de seu canto,
melhor outra demão:
para não cantar tanto
quando em exposição.

Que seja cal somente.
Pura, ácida, branca.
E, quando se apresente,
seja o que não se estanca

em tais frases de efeito,
que mal servem de aceiro:
separam em mil leitos
o que é de corpo inteiro. (FREITAS, 2010, p. 69)
Concomitante ao processo de construção do verso, o poeta vai desnudando a sua encenação, deixando expostos artifícios e procedimentos de composição, a maquinaria e o material utilizado para se expressar. Utilizando o método cabralino de comparar pela oposição ("ser ao revés da cana/algo que não se dobra"), o que se pretende é o total "controle do discurso", como observa Antonio Carlos Secchin (1985, p. 133), a respeito da escrita cabralina.

Ao submeter o verso à dobra, o poeta impõe seu domínio técnico sobre o impulso do canto, impedindo seu transbordamento. Lição ensinada por João Cabral, principalmente em "Ferrageiro de Carmona", publicado em Crime na calle Relator (1985-1987), no qual concebe a arte como enfretamento físico com o objeto:
Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro;
então, corpo a corpo com ele.
domo-o, dobro-o, até onde quero. (MELO NETO, 1994, p. 595)
Ferro forjado exige a "queda de braço /e o cara a cara de uma forja" (id., ibid.). O procedimento é semelhante às esculturas de chapa de ferro de Amílcar de Castro, que são cortadas, dobradas e torcidas, fazendo com que a nova forma exiba o esforço técnico do artista. Viavária dialoga, seja de modo direto, seja de forma sutil, como muitos poemas de Quaderna, sobretudo com "A palo seco", "poema-lema de todo o poetar cabralino, em sua dureza e em sua enxutez, em seu cortante laconismo" como sintetiza Haroldo de Campos (apud BARBOSA, 1975, p. 159).
Se diz a palo seco
O cante sem guitarra;
O cante sem; o cante;
O cante sem mais nada;

Se diz a palo seco
A esse cante despido:
Ao cante que se canta
Sob o silêncio a pino. (MELO NETO, 1994, p. 247)
Neste canto "a palo seco" afinam-se as semelhanças entre os dois poetas: o uso de quadras, versos de seis sílabas, a presença de referentes concretos e do prosaico descritivo, que potencializa a secura e desempluma a linguagem, trazendo o verso ao "rés da fala".

Iacyr Anderson persegue o recurso de "subtração" ou de "depuração" (SECCHIN, 1982) ou de uma "linguagem de carência" (BARBOSA, 1975, p. 163), expressões criadas para definir a poética cabralina. Se em "A palo seco" a linguagem da carência se figurativiza na paisagem, nas "paredes caiadas", Iacyr em "João Cabral: o método em visita" busca depurar ainda mais o seu canto, ao aconselhar "outra demão" da cal, e ainda adverte: "Que seja cal somente./Pura, ácida, branca".

Ética e estética

O poeta mineiro atinge um alto grau de construção formal sem perder de vista o centro de suas preocupações: a história do homem. Quer dizer, a sua sofisticação técnica que não impede a comunicação, como bem defende João Cabral no ensaio "Da função moderna da poesia".

O poeta moderno, que vive no individualismo mais exacerbado, sacrifica ao bem da expressão a intenção de se comunicar. [...] Apesar de os poetas terem logrado inventar o verso e a linguagem que a vida moderna estava a exigir, a verdade é que não conseguiram manter ou descobrir os tipos, gêneros ou formas de poemas dentro dos quais organizassem os materiais de sua expressão, a fim de tornarem-na capaz de entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida social lhes impõe modernamente. (MELO NETO, 1994, p. 768-9)

Há em Viavária um sentimento de decepção com relação a certos projetos da modernidade, que, abordados por meio de diferentes temas e enfoques, deixa vazar um sentimento de promessa não cumprida. Este traço está disseminado em imagens que concentram o olhar do leitor em um mesmo campo semântico: naufrágio ("onde navegações, um só naufrágio/em que pouco do mundo se salvara" – p.18), cilada, morte, doença. É um livro sobre fracassos, sobre tempos de desencanto, com o passado e com o presente.

Em "Das cidades em fuga", o poeta nos lembra que a cidade - símbolo do esforço da civilização e das ações transformadoras da cultura - tem na Natureza sua origem e fundamento. Se o homem é construído pela cultura, ele, por sua vez é parte constituinte da natureza, como diz em "entrever o já visto":
Cidades não se fazem
com nenhum improviso.
O que parece vago
teve traço preciso.

[...]

Só o fluxo, a rotina
de entrever o já visto
e dele retirar até o último cisto.

As pessoas não fundam
as cidades que alinham:
fazem-nas com o barro
que elas mesmas continham. (FREITAS, 2010, p. 21)
As transformações advindas das experiências da modernidade - e as cidades estão relacionadas com tais experiências - não podem romper com o passado, porque ele é inerente às transformações do presente. Se, pensando com Maria Cecília Pinto (2004, p. 226), ao surgir, a cidade preserva sua memória, "marca humana do permanente ao lado da criação original, cujo processo de conservação é o renovar-se por ciclos, na imagem perfeita da roda", o discurso desenvolvimentista, que busca apagar o passado, por meio da transformação da natureza, numa permanente busca pelo novo, é mais um erro anunciado, como se vê em "Armadilha":
Se nenhuma cidade
chegou a ser criada
sem antes um passado
lhe servir de calçada,
Se nenhuma chegou
a gerar-se do nada,
pois outras mil cidades
lhe cederam morada,

então toda a labuta
talvez esteja errada
e o que vemos no mapa
seja apenas uma cilada:

armadilha de quem,
ao dar sua cartada,
pensa fundar a terra
que lhe serviu de estrada. (idem, p. 22)
Insistindo na permanência da tradição no interior da modernidade, mesmo que ela se dê como rastros de memória, fragmentos de mosaico, a voz lírica nos lembra que povos ancestrais ("turcos, árabes, sírios, espanhóis, coreanos") trazem na "bagagem/ um colar de cidades/ que ficaram à margem". As cidades funcionam como palimpsestos ("Uma cidade feita/de cidades em fuga"), como diz o verso de "Os terrores mudados" (p. 25).

Desencanto e fracasso

Na base, o alvo a ser atingido é a crença no permanente discurso de ruptura que deslegitima a tradição, como se não houvesse outros modelos ou direções a seguir. Subvertendo esta lógica, Iacyr Anderson Freitas expõe as lacunas de tal discurso como se fossem apenas modos de "entrever o já visto".

A "ruína de erros" anunciada na primeira parte da obra radicaliza-se na série "Quilombo", na qual a voz lírica denuncia a truculência dos bandeirantes, no século XVII, ampliando o raio de ação da voz crítica. Os treze poemas da série narram os planos do diabólico Domingos Jorge Velho, responsável pelo aniquilamento dos negros do Quilombo dos Palmares, em 1695: distribuiu "entre os escravos roupas de homens mortos pela varíola" e, em seguida, facilitando a fuga, deu a eles condições para que fossem se refugiar no Quilombo, contaminando, assim, toda a comunidade, conforme registro dos historiadores Luis C. A. Costa e Leonel I. A. Mello, de cujo livro, História do Brasil, Iacyr retira a epígrafe da série.

Este diálogo entre ética e estética é outro ponto de convergência entre a obra de Iacyr Anderson Freitas e a de João Cabral de Melo Neto. Em vários poemas de Viavária a visão crítica da realidade utiliza o cenário da urbe contemporânea, para expor os dramas individuais, como a miséria, o alcoolismo, o sonho falido de ir para a Europa em busca de melhores condições de vida, temas que reverberam, no tempo presente, a mesma "ruína de erros". Em muitos momentos a crítica vem acompanhada de uma acidez e um tom de desencanto irônico, como em "Ring my bell":
O salão quase vazio,
não mais que duas bruacas.
ambas com o mesmo cio
cantado no bate-estaca.

[...]

Ontem tudo foi promessa.
Agora perdeu-se o céu
onde entrariam, sem pressa,
na esteira de "Ring my Bell". (p. 81)
Há uma terrível disjunção entre o ritmo dançante de "Ring my Bell", hit de Anita Ward, sucesso nas discotecas dos anos 1970/1980 e o cenário de solidão, flagrado pelo olhar cruel do eu lírico, que observa, com distanciamento, o cenário de fim de noite: "duas bruacas" num salão vazio.

Seja no passado, seja no presente, ("na eternidade/em que a pista se projeta,/ali onde a dança invade/o passado e sua seta") tudo é decadência, solidão e vazio. O tema também se impõe, aliado à prostituição, no poema "Ceci na Via Selci, em Roma":
Antes eu escolhia. Agora não.
Só de vez em quando sou escolhida.
Noites e noites cavando o meu pão
nos bares. Pergunto: isso é que é vida? (p. 82)
Os poemas se estruturam num jogo de oposições entre construção e corrosão no plano social e humano. A mensagem dos poemas geralmente se aproxima do caráter contraditório da modernidade, tal como foi formulado por Marshall Berman, em sua análise da sociedade e da cultura moderna.

Para o sociólogo, ser moderno é viver num ambiente que promete "poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor" (1987, p. 15) ao mesmo tempo em que "ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos" (idem). A modernidade, para Berman,
[...] une a espécie humana, porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, ‘tudo o que é sólido desmancha no ar’" (p. 15).

A ideia de corrosão, de desgaste, seja dos sistemas sociais, seja dos seres humanos, dialoga muito bem com o modo como João Cabral formaliza em "Paisagens com cupim":

Por fora o manchado reboco
Vai-se afrouxando, mais poroso,
Enquanto o desfaz-se. Intestina,
O que era parede, em farinha.
E se não se gasta com choque,
Mas de dentro, tampouco explode.
Tudo ali sofre a morte mansa
Do que não quebra, se desmancha. (MELO NETO, 1994, p. 235)

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Paulo Andrade é Doutor em Estudos Literários (Unesp/Araraquara) e professor de Teoria da Literatura do Departamento de Literatura (Unesp/Assis). Músico e autor de Torquato Neto: uma poética de estilhaços (Annablume/Fapesp) e de vários ensaios em livros e revistas especializadas.

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Referências bibliográficas

BARBOSA, J. A. A imitação da forma: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975.

BERMAN, M. Modernidade ontem, hoje, amanhã. In: Id. Tudo que é sólido desmancha no ar; a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 15-33.

BUENO, A. Prefácio. In: FREITAS, Iacyr. A. Viavária. São Paulo: Nankin; Juiz de Fora: Funalfa, 2010. p. 11-14..

FREITAS, I. A. Viavária. São Paulo: Nankin; Juiz de Fora: Funalfa, 2010.

PINTO, M. C. de M. Charles Baudelaire, poeta da cidade moderna. In: BARBOSA, S. (Org.). Tempo, espaço e utopia nas cidades. São Paulo: Cultura Acadêmica; Araraquara: Laboratório Editorial Unesp, 2004. p. 226.

SECCHIN. A. C. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985.

SIMON, I. Considerações sobre a poesia brasileira em fim de século. Novos Estudos Cebrap, n. 55. São Paulo, nov. 1999.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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