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Entre a literatura e as ciências sociais

Rafael da Rocha Massuia - Dezembro 2012
 

Leonel, Maria Célia e Segatto, José Antonio. Ficção e ensaio: literatura e história no Brasil. São Carlos: EdUFSCar, 2012.

As complexas e intricadas relações entre ciência e arte, história e literatura, dão corpo a diversos trabalhos importantes, entre os quais se destaca a obra A peculiaridade do estético, de autoria do filósofo marxista húngaro György Lukács. O receituário clássico propõe uma diferenciação entre as duas modalidades cognitivas, uma demarcação necessária para que suas especificidades sejam respeitadas, em tempos em que a pós-modernidade projeta-se como discurso hegemônico na Academia, essa fronteira passa a ser energicamente questionada, deixando a questão que levantamos em uma posição desfavorável. Ora, se atualmente a própria realidade do mundo é questionada, o que poderá ser dito da - agora mais frágil que nunca - divisão entre ciência e arte? José Antonio Segatto e Maria Célia Leonel, os autores de Ficção e ensaio, parecem insistir nessa "antiquada e "ultrapassada" demarcação entre os dois campos de conhecimento.

E além disso, procuram fazê-lo não através de intermináveis (ainda que por vezes necessária) discussões de cunho gnosiológico sobre as peculiaridades de cada forma de conhecimento, mas na colocação dessas questões em tela, na genuína práxis investigativa, flagrando as diferenças das formas cognitivas no ato de suas reflexões. Cabe assinalar ainda que, pela modalidade analítica dialética que adotam, conseguem evitar, em suas análises das obras de ficção, tanto um historicismo reducionista (que reduz a obra ao seu contexto) quanto um formalismo abstrato (que vê a literatura como um fenômeno autotélico).

Mobilizando uma quantidade invejável, não só quantitativamente como, sobretudo, qualitativamente, de cientistas e literatos, os autores nos convidam a um passeio pela história e pela cultura de nosso país, passando de Machado de Assis a Guimarães Rosa, culminando em escritores contemporâneos, sempre a partir de uma fina e rebuscada lente analítica, e sempre com a preocupação da manutenção de um constante e acurado diálogo com os principais intérpretes de nossa sociedade e cultura - que se pense não só no apoio recorrente a nomes como Antonio Candido, Roberto Schwarz, Luiz Costa Lima, Alfredo Bosi, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho, como nos questionamentos recorrentes, para além de certos argumentos questionáveis destes autores.

O primeiro ensaio, "Política e sociedade: versões do conselheiro", resgata um período relativamente pouco abordado da obra de Machado de Assis, assim como retoma o antigo debate sobre o posicionamento político do escritor carioca. O hábito da crítica em considerar nosso grande escritor como defasado politicamente é derrubado. Através da investigação sobre a natureza do narrador das obras em escopo, os autores demonstram como, mesmo em obras em que o conteúdo político é desconsiderado, como o Memorial de Aires e Esaú e Jacó, valendo-se de sua sútil ironia habitual, Machado recria em linhas gerais a configuração sociopolítica da sociedade brasileira, inclusive realizando pesadas críticas ao fenômeno social da escravidão (acresce que alguns críticos dizem não perceber um posicionamento crítico de Machado em relação ao fenômeno. Concluem os autores, reconhecendo o mérito estético das obras machadianas: "Portanto, nos dois romances, nem a história é apenas ilustração da ficção, nem simples pano de fundo do cenário narrativa, nem a ficção é mero recurso instrumental para leitura e compreensão da história brasileira" (p. 36).

Nos textos que se seguem, do segundo ao quinto ensaio da coletânea, podemos acompanhar uma focalização extensiva e intensiva da obra de Guimarães Rosa, analisada sob diversos ângulos e possibilidades analíticas. No segundo texto da coletânea, aquele que dá nome ao livro, os autores retomam a antiga polêmica em torno de Os sertões de Euclides da Cunha, e - numa moda mais recente - Grande sertão: veredas; ocorre que diversos estudiosos têm proposto que as duas obras pertenceriam a um gênero misto ou híbrido, transitando entre a ficção e o ensaio (para não mencionar aqueles que insistem em considerar o ensaio de orientação sociológica sobre a guerra de Canudos como um romance, ou a obra-prima ficcional de Guimarães Rosa como um ensaio sobre o Brasil). Problematizando com essas posições, os autores realizam um minucioso debate com as mais variadas tendências que, da publicação das obras até os dias hoje, predominaram ou predominam na interpretação de tais obras. Numa defesa da especificidade da ciência e da arte, concluem os autores que

[…] a literatura - como a história - consegue desvendar e iluminar aspectos muitas vezes velados da realidade. Isso quer dizer que, mesmo com linguagem e formas (artística e científica) distintas, ambas têm uma função cognitiva fundamental […]. A existência de similitudes ou elementos comuns entre a ficção e a realidade, entre a compreensão e a invenção não permite a inversão das peculiaridades das duas obras (p. 55; 58).

O terceiro texto do livro, "Sertão: tudo política, e potentes chefias", tem como temática a dimensão sociopolítica que permeia a figuração do "sistema jagunço" em Grande sertão: veredas. Diferenciando a figura do jagunço do bandido comum, os estudiosos da obra rosiana; mas, se por um lado, é ressalvada uma conduta diferenciada por parte do jagunço, fundamentada por uma espécie de código de guerra, por outro o resultado de suas ações se resume à perpetuação de atos violentos, à mando dos coronéis latifundiários. Se essas relações de poder explicam muito do Brasil, sobretudo entre 1880 e 1930, após esse período opera-se um movimento mais direto rumo à modernização e urbanização das camadas sociais locais, o que pouco colaborou para uma diminuição das profundas desigualdades sociais ora vigentes: "O sertão foi progressivamente incorporado e, ao mesmo tempo, invadido pela modernidade - migrou para as cidades, urbanizou-se, foi integrado pelo capitalismo e pela nação" (p. 73).

Em "Alegoria e política no sertão rosiano" a temática é, como o título sugere, a discussão sobre as interpretações que concebem a magnum opus de Guimarães Rosa como uma representação alegórica do Brasil. Retomando o conceito de alegoria do alemão Walter Benjamin, alguns pensadores locais, como Luís Roncari, Willi Bolle e Heloisa Starling, buscam identificar a obra literária rosiana com algumas das principais obras de pensadores do Brasil. Retomando a defesa da especificidade da arte literária, os autores levantam o seguinte questionamento: "Não seria uma tentativa de atribuir a Guimarães Rosa uma visão de mundo (crítica ou conservadora) que pode não ter similitude em sua obra?" (p. 93). Retomando os escritos de Marx sobre Balzac e de Adorno sobre Kafka, os autores nos lembram que os grandes artistas, enquanto artistas, podem - e, quando realmente grandes, o fazem com agradável frequência - descobrir aspectos ainda não completamente maduros da realidade social e que, portanto, ainda não puderam servir de matéria para obras de cunho científico; daí reside o caráter "antecipador" que Marx viu em alguns dos personagens de A comédia humana, ou do poder "profético" que Adorno percebeu na obra kafkiana, e o que, por certo, também pode ser encontrado na grande obra do escritor mineiro, desde que o escopo analítico do crítico não transcenda a obra analisada.

O quinto e último texto da sequência dedicada à Guimarães Rosa, "O regional e o universal na representação das relações sociais", realiza uma discussão sobre a questão do regionalismo. Inicialmente vinculado ao Romantismo, o regionalismo identifica-se com uma posição sociopolítica bastante específica, de cunho ideológico marcado. É somente de 1930 em diante, segundo Antonio Candido, que alguns escritores locais conseguem, a partir de temáticas regionalistas, produzir literatura de alta qualidade. Em relação à obra rosiana, se em Magma (1936) o escritor alcança, em sua produção artística, uma totalização da dimensão nacional, em Sagarana (1946) ocorre um movimento similar, mas que se opera na direção de nacional-regionalismo; a ascensão do valor estética obra rosiana ao universal, que culmina em Grande sertão: veredas (1956), no entanto, já é observada pelos autores em "A hora e a vez de Augusto Matraga" (a fase universal de Rosa, apontam os autores, possui ainda a característica da retomada da veia metafísica já apresentada em alguns dos seus primeiros contos). A despeito da crescente dificuldade em falar-se uma literatura regionalista atualmente, os autores finalizam o texto buscando analisar comparativamente Livro dos homens (2005), de Ronaldo Correia de Brito, e Tumameia (1967), do próprio Guimarães Rosa. A violência, observam, é fator recorrente e temática central das suas obras, o que ocorre em decorrência da não alteração das condições regionais, de profunda desigualdade social, do sertão.

No sexto texto, "Refiguração do tempo histórico pela ficção", valendo-se do romance Leite Derramado (2009), de Chico Buarque, os autores realizam uma reflexão sobre a internalização das noções de tempo e espaço nas obras romanescas. Para tal, apoiam-se em alguns teóricos da literatura como Mendilow, Genette e, sobretudo, Mikhail Bakhtin. Para o teórico russo, tempo e espaço formam uma unidade indissolúvel, cuja finalidade é abarcar a essencialidade do real de dado período histórico, uma condensação dessa temporalidade sócio-histórica no espaço. O que se segue do ensaio, a análise do romance de Chico Buarque, confirma as considerações de Bakhtin anteriormente aludidas, pois, segundo os autores, o músico-escritor, em sua obra "[…] refaz a saga histórica da decadência inevitável de uma categoria social (fração da classe dominante), personificada na família Assumpção, com seus valores éticos e culturais, suas concepções de mundo e seu comportamento - estiliza, enfim, sua dissolução social e moral" (p. 141).

Duas recentes obras da literatura brasileira, Heranças (2008) e Eu vos abraço, milhões (2010), de Silviano Santiago e Moacyr Scliar, respectivamente, são trazidas à discussão no penúltimo texto, "Autobiografia de personagem de ficção". Tomadas sobretudo em suas composições estruturais, as obras são contrapostas às considerações de G. Lukács, no seu famoso ensaio "Narrar ou descrever?". A partir do filósofo húngaro, os autores buscam identificar uma predominância de elementos descritivos nas obras analisadas, o que acarretaria numa diminuição dos seus valores estéticos. Ainda que díspares, e até mesmo opostas, as propostas dos dois livros se aproximam no que diz respeito a existência de uma regressão autocrítica nas vidas dos protagonistas, mas que, em ambas, não superam a literatura de tese.

Por fim, no texto que fecha a coletânea, "Formação da literatura e constituição do Estado nacional", os autores resgatam a principal obra de nossa historiografia literária, Formação da literatura brasileira (1959), de Antonio Candido. Num cenário de referenciais teóricos de corte positivista e evolucionista, importados da Europa pelos nossos principais teóricos da literatura de então, a obra de Candido destaca-se de maneira consensual; sem romper totalmente com a tradição existente (sobretudo com dívida reconhecida com Sílvio Romero), o teórico busca acompanhar os momentos decisivos que contribuíram para a formação entre nós de um sistema literário. É somente com Machado de Assis que este sistema se veria completo, em função da universalidade ímpar de sua obra literária, que alcançaria de uma vez por todas o patamar da universalidade ficcional. No entanto, apontam os autores, haveria nessa tese um problema cronológico, pois dessa forma teríamos uma literatura que antecederia a formação de uma nação brasileira, ao que se perguntam. Ainda que, como ocorrido nos casos alemão e italiano, ser perfeitamente possível essa inversão aparentemente paradoxal, o que se observa em comum é a existência de unidades comuns entre os povos (língua, cultura, etc.), o que não se observava no caso brasileiro.

A unidade acabou sendo imposta de cima e pela força. O único elemento de consenso entre os grupos dominantes das diferentes regiões foi a manutenção da escravatura e do tráfico de escravos. […] Nesse processo de criação da nação, a elite dominante, amparada pelo Estado imperial, elaborou uma política cultural extremamente arrojada, tendo como pilar a elaboração da cultura brasileira, ancorada, sobretudo, no forjamento da literatura e na concepção da história (p. 176).

Segundo os autores, e em discordância à proposta teórica de Candido, o processo de formação da literatura brasileira não se encerra em Machado, ainda que o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas tenha dado grande impulso nessa direção. É somente com Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no arco compreendido entre 1881 e 1956, que o importante processo iniciado por Machado ganha conclusão. Assim como, no campo da historiografia literária, foi necessário o tempo de maturação de 1888, com História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, até 1956, com a Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, para que a nossa literatura ganhasse, em registro teórico, uma fundamentação sólida e coesa.

Em tempos de valorização de um saber cada vez mais especializado, os textos que compõem Ficção e ensaio vêm para provar que outra via ainda é possível. Frutos de investigações profundas e instigantes, ancoradas num saber clássico, eles nos convidam à reflexão sobre as grandes questões de nossa literatura e de nosso processo histórico. Movendo-se com desenvoltura entre uma dimensão e outra, sem nunca perder de vistas as suas especificidades, os autores vão além do usual: valendo-se de uma abordagem harmonicamente transdisciplinar, que, orientada dialeticamente, nos oferecem abordagens e enfoques únicos.

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Rafael da Rocha Massuia é mestrando junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da FCL/Unesp, campus Araraquara.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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