O exemplo não será de todo adequado, pois gira em torno de personagens da alta cultura, a saber, o romancista russo Alexander Soljenitsin e o filósofo húngaro Georg Lukács. O primeiro, como se sabe, prêmio Nobel de Literatura em 1970, foi um famoso "dissidente" no próprio paÃs - a originária "pátria do socialismo" -, com dimensão simbólica internacional semelhante à do fÃsico Andrei Sakharov. Cabe dizer que, como tantos outros oposicionistas do então bloco socialista do Leste europeu, figuras assim eram vistas como embaraço por boa parte da esquerda ocidental, ao se erguerem internamente contra as estruturas do socialismo realmente existente em nome da democracia e dos direitos humanos.
Georg Lukács, filósofo comunista de cepa irretocável, nunca foi um grande pensador da polÃtica: seu leninismo, mesmo em época bastante tardia, levou-o a imaginar um improvável retorno da URSS, já definitivamente enrijecida, aos tempos fervilhantes da revolução e da democracia direta. O filósofo, no entanto, teve a coragem de romper uma barreira espiritual quase intransponÃvel, ao analisar e saudar, na década de 1960, o sopro de renovação trazido pelas narrativas de Soljenitsin, especialmente Um dia na vida de Ivan Denisovitch, Primeiro cÃrculo e Pavilhão dos cancerosos. Obras-primas da literatura e denúncias fundamentais do stalinismo.
Talvez sejam exemplos solenes demais para o caso de Yoani Sánchez, uma mulher deste nosso admirável mundo novo das redes sociais, que, tanto quanto se sabe, reporta com vivacidade, em blog, o cotidiano de Cuba, esta outra "pátria socialista", agora em dimensão mais propriamente latino-americana. Yoani, retratando o dia a dia dos cubanos, ou de uma parte deles, por certo não escreveu nada parecido com a saga do Ivan Denisovitch num gulag soviético, mas, tal como Soljenitsin, é uma dissidente. E tantos anos depois este tipo de personagem ainda é encarado como estorvo ou mesmo como presença a ser rejeitada, no Brasil redemocratizado da Constituição de 1988 e com a presidência legalmente posta nas mãos de um partido de esquerda - de resto, fato inédito e digno de comemoração cÃvica.
Se Yoani, com o respeito que se deve a quem vive em condições adversas por causa das suas ideias, não é o Soljenitisin daqueles romances mencionados, seus detratores brasileiros ostentam credenciais que merecem também ser examinadas com o mesmo ou até maior rigor. Foram além de vaiar ou se manifestarem dos mais variados meios legÃtimos contra a presença da cubana, sem lhe ameaçar a integridade fÃsica. Fizeram algo muito diferente de, valendo-se dos recursos que a democracia a todos permite, reunirem-se em defesa da causa de Cuba - de uma determinada visão de Cuba - ou de, para dar um exemplo quase automático, protestarem contra o anacrônico bloqueio americano. Foram muito além disso tudo, e cabe examinar brevemente por que foram.
A visão de que o mundo se reparte em mocinhos e bandidos conheceu - exatamente com a consolidação do poder de Stalin, há quase 100 anos! - uma inusitada expansão para as relações interestatais. Várias gerações de comunistas, que no Ocidente e fora do poder, em geral combatiam boas causas em defesa dos subalternos, passaram a entender o mundo como o conflito irreconciliável entre um paÃs que "encarnava" o socialismo e seus oponentes capitalistas ou imperialistas. Na falta de uma articulação democrática interna da pátria socialista, quem dissentia era literal e metaforicamente demonizado: não faltou quem chamasse Trotski, derrotado na luta interna, de "puta do fascismo" (o que, diga-se de passagem, não quer dizer que Trotski fosse garantir sorte melhor aos seus adversários, caso tivesse vencido). Bukharin, artÃfice de uma relação menos tensa com o imenso mundo camponês à s vésperas coletivização forçada, em 1928, apareceria alguns depois, humanamente arrasado, num dos infames processos de Moscou, na época do Grande Terror. Como se sabe, seria eliminado como "inimigo do povo". E, sem terminar o rol da intolerância, no auge do sectarismo comunista os social-democratas eram, pura e simplesmente, "social-fascistas" - piores até do que os fascistas e os nazistas.
O hábito de designar religiosamente - no mau sentido da palavra, um sentido que a aproxima do fanatismo e do espÃrito inquisitorial - um paÃs como a "pátria do socialismo" não se limitou à antiga URSS. O fascÃnio ideológico podia se deslocar para outros altares, como aconteceu com a China do maoÃsmo e da revolução cultural e, em momento sucessivo, até mesmo a Albânia do camarada Enver Hodja, tida numa certa época, inclusive por corrente polÃtica hoje participante da coalização governista no Brasil, como o "verdadeiro farol do socialismo". Paciência, aqui já estamos naquilo que o saudoso Stanislaw Ponte Preta chamava de "o perigoso terreno da galhofa"...
Este tipo de representação do mundo, de matriz stalinista, não é inocente. Quem forma a própria cabeça e a alma neste catecismo elementar incapacita-se, necessariamente, para o exercÃcio da análise crÃtica, diferenciada. No paraÃso que imagina, não consegue supor a existência de pessoas e grupos polÃticos e sociais que divirjam, que pensem diferente, que tenham outras visões das coisas e do próprio paÃs. No inferno que esquematiza - no caso, a matriz ianque do imperialismo -, não consegue visualizar a rica cultura polÃtica fundadora, sua própria origem revolucionária, a dinâmica social e econômica multissecular que atraiu pensadores como Gramsci, bem como a inovação "epocal" representada pelo reformismo rooseveltiano ou pela batalha dos direitos civis de Luther King.
Ao contrário de tudo isso, o mundo, tal como ensinado por Stalin, divide-se em Disneylândias opostas, uma de tipo consumista, outra de tipo ideológica. E ambas falsas e ilusórias, a fanatizar, estreitar e limitar os espÃritos. E, também, a limitar o horizonte polÃtico e cultural da própria esquerda, que teria a obrigação de defender as liberdades sempre e em toda parte, muito especialmente, como queriam o liberal Voltaire e a revolucionária Rosa, a liberdade de quem pensa de modo diferente.
Yoani, depois de várias tentativas, conseguiu exercer o direito elementar de sair de Cuba e enfim, entre nós, prestar um testemunho subjetivo e, por certo, parcial, sobre as coisas, as pessoas e as instituições que vivencia e com que se defronta e confronta todos os dias. A ilha, por seu turno, não está imobilizada no tempo: tem conhecido ultimamente reformas econômicas que, pelo menos na teoria, privilegiam a iniciativa dos indivÃduos e limitam a paralisia asfixiante que parece caracterÃstica irremovÃvel dos regimes extremamente centralizados e "estatólatras".
Tudo isso é positivo, mas não basta. Além do dinamismo econômico, a transição cubana, que só os voluntariamente cegos não veem já estar em pleno curso, precisaria assentar numa sociedade civil viva, feita de uma multiplicidade de indivÃduos livres e capazes de pensar por si mesmos, como a própria Yoani. E feita também, evidentemente, de um tecido associativo que a resguarde de restaurações mafiosas, tal como a que, aliás, aconteceu na antiga matriz soviética, e dê alento a uma nova esquerda capaz de se movimentar no ambiente liberado das travas (e das trevas) do partido-Estado - ambiente que, não tenhamos dúvida, mais cedo ou mais tarde virá.
Ao falar deste tipo de questão, estamos falando também de nós, do tipo de esquerda que temos (pelo menos em parte) e das suas estruturas mentais forjadas, como o enferrujado aço stalinista, no tempo da guerra fria. A propósito, não custa nada tirar da prateleira ou xeretar nos sebos o Ivan Denisovitch e os ensaios lukacsianos que acolheram este Soljenitsin. Podiam ser um bom começo de conversa.
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Luiz Sérgio Henriques é o editor de Gramsci e o Brasil.
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