A composição dos palanques eleitorais nos estados trouxe um quadro bem diversificado de coligações, candidaturas a governador e vice-governador, parlamentares e alinhamentos na disputa presidencial. O fato de não poucos destes apoios serem contraditórios não obscurece a existência dos partidos e grupos eleitorais nos estados. E, por meio de muitas articulações, várias correntes partidárias se deslocaram para Aécio Neves, candidato que vem reunindo boa parte do mundo polÃtico realmente existente no paÃs, movimento ora mal visto como reprodução da velha polÃtica e aliança com o atraso conservador.
Até as convenções, a eleição presidencial estava delineada pelas candidaturas de Dilma, Aécio e Eduardo Campos, e se resolveria no horário gratuito. Devido ao fato de seu tempo de TV e rádio ser quase o dobro do que dispõem os principais adversários, ainda não estava excluÃda a possibilidade de a presidente Dilma ganhar no primeiro turno. Mesmo com a terceira via da coligação PSB-REDE-PPS na marca dos 8% dos votos e os partidos pequenos ultrapassando os 6%, a polarização do "nós" e "eles" continuava sendo a aposta afortunada do establishment PT-governo e do ex-presidente Lula. Esse seria o cenário, a não ser que de um céu azul fatos novos viessem complicar a ordem das coisas.
A incongruência dos palanques estaduais não surpreende, pois estes se compõem de uma grande variedade de interesses, inclusive de descontentes com o querer dominar tudo do PT. A ideologia com que o PT e Lula reclamam para si missão histórica é estranha às referências ao conjuntural com que opera o pluralizado mundo partidário brasileiro.
A ativação eleitoral nesse terreno efetivo contribui para quebrar a linha imaginária da polarização PT vs. PSDB e favorece a diferenciação polÃtica entre o campo oposicionista e o bloco da candidatura de Dilma Rousseff sob domÃnio do PT, mesmo que da aliança participe um partido de grande tamanho e trajetória de luta pelas liberdades democráticas, como o PMDB.
Os principais lÃderes da parte do mundo polÃtico que hoje apoia a candidatura de Aécio Neves valorizam a democracia representativa e o Estado democrático de direito. No outro campo, o ex-presidente Lula, o PT e a presidente da República não aceitam, ao contrário de todo partido de esquerda democrática, o Estado democrático de direito sem reservas.
A pregação de Lula sobre a divisão da sociedade ao meio há anos estimula um clima de águas turvas e agora acelera a radicalização da propaganda eleitoral, a que serve o decreto sobre os conselhos da presidente Dilma. Este decreto será usado como material de campanha, visando colocar as oposições no outro lado, entre os "eles" contrários à participação popular. Entrementes, cada vez mais se revela a visão intelectual anacrônica e simplificadora da nossa formação social, de elevada diversificação e vida polÃtica complexa - a visão com que Lula e o PT se apresentam como demiurgos das mudanças no paÃs acima da vida partidária e polÃtica (o "nunca antes neste paÃs", do ex-presidente Lula).
O tema da democracia representativa como meio para as mudanças e o aperfeiçoamento da sociedade, sob constante dúvida durante toda a Era Lula, permeia estas eleições, esperando vir à superfÃcie da campanha eleitoral com mais nitidez. Teria de ser trazido pelas candidaturas oposicionistas e seus partidos coligados, principalmente se a candidatura de Aécio decidir desencadear discussão sobre esta questão incontornável. Diante da possibilidade, ainda real, de mais um governo hegemonizado pelo PT e pelo ex-presidente Lula, que não têm compromisso com a democracia politica e mostram resistência à alternância na Presidência da República, a defesa da democracia representativa em si passa ao primeiro plano, como já ocorreu em nossa história politica, especialmente na circunstância do pós-64.
Aliás, o regime de 1964 não acreditava que a resistência na esfera polÃtica, na cultural, na social e em outros nÃveis da vida nacional pudesse derrotá-lo por meios pacÃficos, dando passagem a uma transição que iria ter seu ponto alto na Constituição de 1988, que, como já se disse, concretiza a revolução democrática no Brasil.
Um grande número de analistas observa que o processo eleitoral transcorre paralelamente aos movimentos mais profundos da sociedade registrados pelos protestos de junho do ano passado. Os jovens questionaram os onze anos da Era Lula (qualidade dos serviços públicos, corrupção, cooptação), puseram em grande relevo a crise do Congresso e o distanciamento em que os partidos se encontram dos processos não institucionalizados de formação de opinião polÃtica.
Esse diagnóstico juvenil das questões centrais da circunstância - demandas sociais, melhoria da atividade parlamentar e dos partidos -, mais a questão econômica trouxeram tanto a questão da natureza conjuntural e sustentável das soluções, como a discussão sobre o exercÃcio da polÃtica com a missão que lhe reconhece Jürgen Habermas ("A polÃtica [...], e não o capitalismo, é responsável pela orientação do bem comum"; cf. Sobre a constituição da Europa, São Paulo, Unesp, 2012), como é próprio das sociedades complexas e democráticas.
É do mesmo filósofo alemão a tentativa convincente de reconstrução do projeto polÃtico democrático para o nosso tempo. Trata-se, assim explica Juan Carlos Velasco Arroyo ao comentar sua teoria da democracia deliberativa, de um projeto concebido "no e desde o horizonte ineliminável da única democracia realmente existente: a democracia liberal", no qual Habermas ambiciona "harmonizar o elemento democrático e o liberal da modernidade polÃtica" (cf. "Orientar la acción. La significación polÃtica de la obra de Habermas", introdução a J. Habermas, La inclusión del otro. Estudios de teoria politica, Barcelona/Buenos Aires, Paidós, 1999).
Anota ainda Velasco Arroyo que do modelo habermasiano de polÃtica deliberativa ("possÃvel tradução no âmbito da polÃtica da teoria da ação comunicativa") "deriva um horizonte politico de caráter reformista que responde à necessidade de ampliar o marco formal da democracia representativa: se trataria tanto de aprofundar os elementos de participação cidadã já existentes por meio do fomento de uma cultura polÃtica ativa, como de assegurar conteúdos materiais de caráter distributivo estabelecidos pelo estado de bem-estar com o fim de neutralizar as indesejáveis consequências não igualitárias da economia de mercado" (ibid., p. 16-7).
Considerando tudo isso, entre nós o processo eleitoral segue sem que o sentido polÃtico programático do próximo governo proposto pelos principais candidatos da oposição tenha visibilidade. Mas não está excluÃda a possibilidade de a eleição presidencial se configurar aos olhos do eleitor como momento disponÃvel para a transição da Era Lula a um difÃcil tempo novo. E que o candidato oposicionista que passe ao segundo turno venha a mostrar perfil comprometido com encaminhamentos democrático-institucionais dos problemas nacionais e habilidade para a conciliação no campo da polÃtica e o exercÃcio de função pacificadora das tensões e conflitos crescentes em razão do esgarçamento da vida nacional em curso. O pressuposto seguro de um governo desse tipo se encontra na democracia representativa.
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Raimundo Santos é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.