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Campanha negativa & Realidade e choque na realidade

Marco Aurélio Nogueira - Setembro 2014
 

1. A campanha negativa em política 

Grosserias, mentiras e ataques fazem parte da natureza da política, sobretudo em campanhas eleitorais. Acontecem sempre e em todos os lugares, contaminando as mais diversas posições políticas e ideológicas. Quanto mais a política passou a ser midiática, mais isso foi acontecendo. O lugar de destaque que marqueteiros têm nas campanhas comprova bem o fato.

Ninguém pode dizer que dessa água não beberá.

É uma visão poética, romântica, dizer que a esquerda é mais limpa que a direita. Em tese é, e sempre pretendeu ser. É um de seus orgulhos. Mas no chão duro das competições políticas midiáticas, nem sempre. Stalin, por exemplo, radicalizou e elevou ao absurdo a tática de mentir e intimidar adversários, a maioria dos quais integrantes do próprio Partido Comunista. Converteu Trotski em agente do imperialismo. Mandou assassiná-lo depois que o processo de desconstrução não deu conta do recado. A ultraesquerda, por sua vez, nunca deixou de apresentar a socialdemocracia e os comunistas democráticos como colaboradores insanos do capitalismo, passando por cima de programas e posições políticas concretas. Forçam aproximações e cancelam diferenças importantes para fazer isso.

Hoje em dia, em plena época de desestruturação dos partidos e de crise ideológica, a esquerda deixou de ser diferente e de ter outra ética. Usa e abusa das mesmas táticas de desconstrução empregadas por qualquer outra posição política. Deixou de debater para se entregar à mesma espécie de "tribunalização" da política que antes deplorava em seus adversários.

Mesmo assim, continua cabendo às esquerdas e aos democratas (socialistas, liberal-socialistas, socialdemocratas, comunistas, libertários, ecologistas, ambientalistas, feministas) uma responsabilidade grande na criação de um padrão ético consensual, de um senso comum cívico e democrático. Sem este foco, a luta deles não fará muito sentido. Em sociedades desiguais, submetidas a poderes fáticos perversos, a falta de paridade nos embates materiais pode ser compensada com valores e ideias.

É enorme a dificuldade para que se construa um senso cívico democrático. Ninguém sabe como fazer isso. Hoje mais ainda, porque a sociedade está meio "fora de controle". Mas esta continua a ser a missão das esquerdas e dos democratas. Ou eles fazem política de outro modo, ou nada sairá do lugar.

Manobras táticas

Há outro problema a se considerar. Mais realista. A campanha suja, a campanha negativa, funciona? Ela tem sido insistentemente empregada por Dilma e Aécio.

Se tomarmos a evolução das pesquisas nas três últimas semanas no Brasil, parece que sim, ainda que nem tanto. Na primeira sondagem depois do início dos ataques frontais (Ibope, 12/9) Dilma cresceu na medida em que bateu. Marina caiu na medida em que apanhou. Dois pontos para cima uma, dois para baixo a outra. Aécio empacou. Na segunda sondagem (Ibope, 16/9), Dilma decaiu 3 pontos, Marina 1 e Aécio subiu 4 pontos.

Invariavelmente, os ataques, em vez de explorarem fragilidades, falhas e contradições das propostas adversárias, enveredaram pelo terrorismo, pela falsificação e pela mentira, a título de "forçar a discussão política". Dilma e Aécio dispararam flechas um contra o outro e ambos contra Marina. Foi tamanha a violência e a força do ataque que todos se surpreenderam com a capacidade de resistência de Marina.

A operação tem se assentado sobre alguns pontos, martelados com insistência pela propaganda. (a) Os adversários não são preparados para governar o país, ou porque não têm experiência, ou porque estão cercados por gente pouco confiável, ou porque não têm a devida estrutura política; (b) cancelarão benefícios sociais generosamente concedidos pelo governo; (c) vão suprimir verbas da saúde e da educação e levar fome e desemprego às famílias; (d) são campeões da corrupção; (e) estão a serviço de empresários e banqueiros.

Para sustentar as acusações, os que atacam empregam táticas de deformação e distorção de frases pescadas nas falas e nos programas dos adversários. O fato de haver somente uma linha escrita sobre o pré-sal é convertido em confissão de que "se acabará com o pré-sal". Autonomia e independência do Banco Central é traduzido como proposta dedicada a "colocar a raposa no galinheiro". Há, além disso, imputações de todo tipo, que não respeitam nem o que está efetivamente escrito, nem muito menos a lógica política e o bom senso. Até em "golpe" chegam a falar, com o intuito de assustar os eleitores.

Os marqueteiros orientam tudo, sedentos da obtenção de melhores índices nas pesquisas. Mas os candidatos - Dilma sobretudo, ajudada por Lula, mas não somente ela - vestem os figurinos e vão descendo ladeira abaixo. Mobilizam tropas de choque para potencializar os ataques. Empregam táticas de sufocamento e pressão. Trafegam à margem do debate público democrático: não querem esclarecer, somente intimidar. Dizem que, ao fazer isso, mostram que o candidato que quiser mesmo ser Presidente tem de provar que "suporta críticas e pressões".

Efeitos e resultados

Mas e se projetarmos isso no tempo, pensarmos nas próximas três semanas? O medo criado no eleitor conseguirá superar a esperança que outras campanhas buscam criar nele? Não poderá ser confundido com desespero? Não poderá sofrer um efeito-bumerangue e voltar-se contra seu criador? As campanhas negativas não podem chegar a um ponto de saturação e deixar de produzir efeitos?

Há muita literatura, no mundo todo, dizendo que campanhas negativas funcionam no curto prazo, mas negam fogo no longo. Não conseguem se sustentar e produzir resultados depois dos primeiros ataques

Ninguém pode saber com precisão. O medo é uma boa arma, assim como a esperança ou a confiança no futuro. Uma sangra e pressiona, a outra conclama à confiança e a um futuro melhor. Assustar as pessoas com o risco de uma volta ao passado funesto pode produzir efeitos mobilizadores, mas também pode gerar depressão e tanto medo que as pessoas tentarão se refugiar em ambientes ou propostas mais arejadas. O excesso de esperança, por sua vez, nem sempre produz determinação: pode levar à dispersão e ao imobilismo.

Os marqueteiros são especialistas em decifrar este enigma. E em dosar o quantum de medo e de esperança haverá em cada campanha. Mas sempre terão de considerar o risco de que a montanha, ao fim e ao cabo, acabe por parir um rato. As urnas dirão se suas escolhas deram certo.

Não há blocos monolíticos em política. Nem em campanhas ou partidos. Partidos são entidades partidas: luta de correntes.

Na campanha do PSDB, por exemplo, há dúvidas sobre em quem Aécio deve "bater" e como deve fazer isso. FHC, por exemplo, acha natural que seu candidato "dê uma ou outra cutucada na Marina", mas pensa que "o chumbo grosso deve se concentrar no PT e, portanto, na Dilma". 

Não são todos os petistas, por sua vez, que aplaudem a campanha difamatória contra Marina. A blitz comandada por João Santana não é consenso no PT. "Não se pode tratar a Marina assim", afirmou o ex-deputado petista Paulo Delgado. "A Dilma se esquece de que a Carta ao Povo Brasileiro foi escrita a pedido de Olavo Setubal, do Itaú", emendou, em referência ao documento divulgado em 2002, na vitoriosa campanha de Lula, para acalmar o mercado. "Devemos falar de nossas propostas, e não atacar Marina", disse o senador Eduardo Suplicy.

A campanha de Dilma tem um viés esquizofrênico, que aumenta na medida em que vai se mostrando bem sucedida. No papo com as elites e grande burguesia (sim, o PT conversa com ela), Marina é apresentada como uma radical antimercado e contra o agronegócio, que irá facilitar a introdução do caos econômico. Para a população em geral, as bases petistas e o sindicalismo próximo do partido, Marina é um demônio ultraliberal, traidora do passado petista, serviçal dos bancos privados, inimiga das conquistas sociais e dos vários programas assistencialistas. Chegam mesmo a dizer que ela estaria à direita do PSDB, o que significa passar um filme de terror para os cativos do maniqueísmo.

A polarização está reposta. Sempre esteve. Política eleitoral é polarização, governo x oposição. A "onda Marina" veio forte, desorganizou o jogo e criou outra dinâmica. Arrefeceu um pouco, depois. Voltou-se à normalidade relativa, onde o que pesa mais são as estruturas de poder e a força das campanhas. O dique contra ela existiria de qualquer modo, mesmo que a campanha fosse limpa. Sua única chance é se a sociedade e a opinião pública, que escapam das estruturas formais, aceitarem suas proposições.

2. Realidade e choque na realidade

A ascensão de Marina Silva e a possibilidade concreta de que sua candidatura chegue ao segundo turno e vença as eleições presidenciais tornaram mais rica a agenda política do país e introduziram novos elementos para a análise política.

Um deles tem a ver com a força política de sua campanha e de um seu eventual governo. O tema deverá ocupar maior espaço caso Marina avance ou se mantenha competitiva.

Trata-se de examinar que fatores fazem uma postulação política se tornar vitoriosa e podem ou não fornecer governança e governabilidade a uma situação de governo.

No caso de Marina, o raciocínio prevalecente se apoia numa causalidade que precisa ser demonstrada. A causalidade estabelece que se um candidato é fraco quando está em campanha (ou seja, quando está sustentado por uma coligação partidária fraca e uma estrutura política pouco expressiva) então seu governo será necessariamente frágil e oscilante. Ele terminaria por ser engolido pela realidade fria e dura dos fatos e seu governo ou enveredaria pela crise institucional, ou ficaria paralisado, inoperante.

Devemos examinar melhor este raciocínio.

É um fato que a coligação que sustenta a campanha de Marina é fraca. Tem hoje uma bancada de 32 deputados em um total de 513 e provavelmente não elevará expressivamente este número nas próximas eleições. O PMDB provavelmente continuará gordo, PT e PSDB tendem a perder alguns deputados e alguns partidos médios poderão crescer. O Congresso continuará fragmentado e a funcionar como fator de controle, chantagem e pressão sobre o Executivo, impondo-lhe o desafio da coalizão.

Nada de muito novo, portanto.

Serão estes indícios suficientes para que se conclua que um eventual governo Marina estará irremediavelmente condenado ou a fracassar ou a repetir a pasmaceira política atual para poder governar? Seu slogan - "governar com os melhores" - não passaria de retórica de campanha e deveria ser desde logo descartada das análises prospectivas? A realidade do "presidencialismo de coalizão" é assim tão poderosa a ponto de possibilitar que se cogite de outros caminhos?

A grande mídia e as campanhas de Dilma e Aécio estão dizendo que sim. Será mesmo?

Quatro cenários podem ser desenhados em caso de uma vitória da candidata do PSB.

1. Marina se recompõe com o PT e faz um governo de "união das esquerdas". Dado o calor dos embates eleitorais e as discrepâncias programáticas que neles afloram (especialmente no que diz respeito ao modo de fazer política, à sustentabilidade, aos direitos das minorias, à reforma agrária e à política econômica), trata-se de uma probabilidade remota.

2. Marina faz uma coligação com o PSDB e constrói uma base minoritária mas com bons quadros e alguma musculatura. É uma hipótese de alta probabilidade.

3. Alia-se ao PMDB. Poderá fazer isso de três maneiras. (a) entrega-lhe fatias protocolares de poder ministerial e alguns recursos de poder, sem condicionar isso a uma real influência nas decisões de governo, agindo tal como é feito hoje pelo governo Dilma; (b) estabelece compromissos programáticos com o PMDB e concede-lhe influência efetiva no governo; (c) busca atraí-lo topicamente, valendo-se da interlocução que já tem com alguns expoentes do partido (Pedro Simon, Jarbas Vasconcelos). Em suma, se é verdade que "não dá para governar sem o PMDB", como disse Beto Albuquerque, também é verdade que uma aproximação com o PMDB poderá ser intensa ou fraca, e funcionar bem ou mal. (O fato do partido der dado "governabilidade" a Lula e Dilma, por exemplo, não garantiu a estes governos êxito completo ou a paz permanente.)

4. Marina busca uma via alternativa (a "nova política"), assentada sobre duas pistas: (a) forma um governo suprapartidário, e (b) substitui a ideia de se ter uma ampla maioria disposta a votar fechado pela ideia de dar vida a várias maiorias ad hoc, flutuantes, compostas conforme as propostas em discussão.

O exercício sugerido pelo cenário 4 tem sua beleza e instiga a imaginação. Governos suprapartidários são sempre uma possibilidade. Têm seu fascínio e suas vantagens, mas são mais favorecidos quando há uma situação de crise aguda, o que não é o caso hoje no País. A ideia pode, porém, prosperar se se conseguir convencer a sociedade de que avanços mais consistentes rumo ao futuro dependem de uma união política que supere o particularismo dos distintos partidos.

A via tradicional do "presidencialismo de coalizão" sugere maior facilidade e dá maior iniciativa e poder de decisão ao Presidente, mas em troca cobra preço alto em termos de verbas, apoios e favores. A segunda via é mais complexa e exige esforço redobrado de articulação; tende, porém, a ser mais coerente. Nosso presidencialismo incentiva o primeiro método, e não é que tenhamos tido sempre boa governança e governabilidade. Poder-se-ia pensar nas vantagens que o segundo método traria.

Ele poderia, por exemplo, puxar um freio de arrumação e pôr um pouco mais de ordem na casa. Reformularia o peso relativo de certas variáveis na decisão política, reduzindo a centralidade que têm hoje as práticas tradicionais de obtenção de recursos políticos: cargos, aprovação de projetos, verbas, indicações políticas. Poderia coibir ainda mais a prática da "porteira fechada", com a qual os partidos loteiam os órgãos que dirigem. Forçaria os partidos a darem maior prioridade a seus programas e a levarem em maior consideração o interesse coletivo. Faria com que saltasse à luz do dia a indigência de alguns parlamentares e colocaria aos olhos da opinião pública o custo artificial de muitas operações políticas. Injetaria sangue novo, novos quadros, pessoas e ideias na gestão governamental, impulsionando uma certa "circulação das elites". Poderia produzir impacto salutar em alguns hábitos arraigados entre os políticos, forçando-os à renovação. Libertaria os ministérios da obrigação de seguir orientações partidárias unilaterais, articulando-os como governo e facilitando a adoção de maior transversalidade nas políticas públicas.

Apoio parlamentar é algo que se conquista. É prematuro dizer que este ou aquele candidato não tem "nenhuma perspectiva" de conquistá-lo. Há bons motivos para se preocupar com a fraqueza organizacional da coligação de Marina e com as dificuldades que enfrentará no Congresso, seja porque testará outro estilo de atuação, seja pelas resistências que encontrará caso apresente eventuais propostas radicais. Mas isso poderá ser contornado, caso haja flexibilidade, inteligência política e capacidade de articulação. Trata-se de uma construção.

Sociedades complexas como a nossa são dinâmicas e plurais e a rotatividade partidária na coordenação governamental não é um valor de menor importância. Ela pode ajudar a que se revitalize e se expanda a democracia. Por mais risco ou incerteza que isso possa trazer. Não há porque se ter receios prévios, sem saber como as coisas serão propostas e empreendidas. A não ser, claro, que se esteja somente a fazer campanha.

Os dados duros e frios da vida real são uma referência que não se pode perder. Mas eles não podem fazer com que os políticos dobrem a cabeça. O choque da realidade deve sempre se combinar com um choque na realidade.

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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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