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Dois Ruffatos e um Finetto: a viagem para dentro de si

Vivian Schlesinger - Novembro 2014
 

Luiz Ruffato. Flores artificiais. São Paulo: Cia. das Letras, 2014.

"Nada é mais burguês do que o medo da morte." Palavras do professor Ravelstein ao seu amigo, que ele encarregou de escrever sua biografia, no romance Ravelstein, de Saul Bellow. Na cercania da morte, somos todos burgueses. Temos a necessidade de deixar nossas pegadas na pedra; escritores, no papel. Dório Finetto é mais uma prova disto, ao "submeter suas memórias" a seu parente, Luiz Ruffato, "para quem sabe, aproveitar algum dos temas". Luiz Ruffato, personagem, escritor consagrado, é o narrador do romance Flores artificiais, de Luiz Ruffato.

Pela mão de Ruffato-autor, Ruffato-personagem leva o leitor por viagens "à terra alheia". Do Congo ao Quênia, pelo Uruguai e Cuba, Líbano e Timor, escutando relatos desses sempre estrangeiros em busca de raízes, todos carregando culpas que mal cabem nas páginas, o leitor é o confessor do colecionador de confissões. Não há julgamento, tampouco há perdão. Em nenhum momento o leitor é convidado, através da linguagem do narrador, a abraçar o personagem que conta sua história. O sofrimento é reconhecível, mas é do outro. Para um autor que é mestre em fazer o leitor sangrar quando um personagem se fere, não há dúvida que o distanciamento aqui é produto de oficina.

Tudo neste romance alude a um misto de roman à clef e autoficção, o que resulta em fina ironia mediante tentativas de desficcionalizar a ficção que é a vida. A arquitetura da obra, por exemplo, é exposta de forma frontal, desde a "Apresentação". Recheada de divertidas notas de rodapé, mescla, em aparente formalidade, pistas sobre sua verdadeira intenção, e dados que deliberadamente despistam o leitor. Em uma delas, "... a quase ausência de pronomes reflexivos" é oferecida como evidência do "falar mineiro" do "autor" Dório Finetto. Isso marca a separação entre os estilos de Finetto e Ruffato-personagem, esfumaçando a prova de que Finetto (finado?) é Ruffato, amanhã. 

Em outra nota, a Apresentação explica que o título Viagens à terra alheia "emula Viagens na minha terra, de Almeida Garrett." Ora, terra alheia pode sim referir-se às histórias de terceiros, mas se emulam viagens na minha terra, são viagens para dentro de mim, minhas memórias, de Finetto, confiadas a Ruffato. Ravelstein mineiro confia suas memórias disfarçadas de relatos alheios a um parente escritor. Fácil? Não seria Luiz Ruffato se fosse fácil.

Em um golpe, a pista que revela, simultaneamente, tratar-se de confissão e engodo: mediante "um distúrbio irremediável, o tom excessivamente relatorial", Ruffato-narrador expõe seu "diagnóstico - assunto demandando estilo - ..." (itálico meu). Estamos face a face com uma questão clínica, cujo remédio é literário. E quem é o sábio que pode salvar o paciente desse mal, que sabe fazer o tom relatorial redundar em boa literatura? Carlos Sussekind, autor de O Autor Mente Muito (Ed. Dantes, 2001), mestre da relativização dos limites que separam realidade e ficção! E onde você fica? Em um jardim de caminhos que se bifurcam, onde você será obrigado a trilhar ambos caminhos ao mesmo tempo. E ainda nem saiu da Apresentação. Antes dos relatos per se, há uma "Carta de Dório Finetto" escrita a Ruffato-narrador em 2010, onde Finetto descreve a noite da virada do milênio, a virada de sua vida - para a morte? Lembra-se que "quanto mais aproximava a meia-noite, mais angustiado ficava". Passa sua vida em revista, tentando definir o que havia feito com ela. "Parecia que naquela sala vazia estavam todos os meus fantasmas. Ouvi a contagem regressiva [...] de olhos abertos, mas não vendo nada. Os barulhos da rua aumentaram [...] depois foi tudo diminuindo [...] e podia até ouvir a conversa do porteiro lá embaixo." Do alto... do céu? E não é verdade que os mortos tudo ouvem? Finado Finetto viaja para dentro de si, e sob pseudônimos, trajando fantasias de mercenário no Congo, de prostituta em Havana, ou de guerrilheiro argentino, revive suas culpas, preso a uma órbita de sonhos ou memórias artificiais, que o arrastam ora ao presente, ora ao passado.

O que poderia ser trágico transforma-se em lírico; a ferramentaria é da melhor safra. Os temas, shakespearianos, surgem e ressurgem na boca de diferentes personagens, cada um com seus demônios: abandono, pertencimento, egocentrismo, violência. De forma recorrente, há pais prepotentes que abandonam seus filhos, mas inacessíveis ou decepcionantes, se encontrados (Deus?); mães submissas ou cruéis que enlouquecem e morrem precocemente; mulheres irresistíveis, mas indomáveis, de olhos azuis, verdes, ou violeta; todos acabam revelando a Ruffato através de Finetto, que a vida é assim, uma eterna vontade de atravessar o Rio Styx sem um óbolo para embarcar. Tempestades, furacões e inundações, assim como malária e feras, estão sempre, biblicamente, a rondar os cenários.

Bobby Clarke, mercenário inglês no Congo, que termina seus dias como matador de ratos (como o personagem central de Zero, de Ignácio de Loyola Brandão), carrega a culpa da matança de guerra, pensa redimir-se ao amar Alcina, mas repete o ciclo de violência que a leva a abandoná-lo. O próprio abandono já faz parte de um ciclo iniciado pelo pai de Clarke, e pela mãe, entregue à demência desde a infância do menino. Marianne, sua noiva, que o fita com o "desfiladeiro azul de seus olhos", o abandona ao ouvir dele sua triste história. Só resta, ao personagem, vingar-se, matando ratos. 

Marcelo Barresi é outra flor que aparece no buquê de Ruffato. Assim como Clarke, é alto, corpulento, e tem um passado violento, só que esse consegue gargalhar, desfruta com gosto dos prazeres da vida. Também carrega a culpa do abandono de sua mãe, que por sua vez o abandonara ao suicidar-se. Barresi também abdicou sem hesitação da causa da militância argentina, que quase o matou. Ruffato-autor, que defende o papel político da literatura, faz aqui um paralelo inusitado entre as marcas da destruição pela ditadura na Argentina e pela guerra no Líbano, sem, no entanto, mencionar que o Líbano foi de fato destruído, e destituído de sua frágil soberania, não por bombardeio israelense, como sugere, mas sim por sangrenta guerra civil entre sunitas, xiitas e cristãos. Beirute, como o próprio autor alude, poderia ser personagem dessa obra, com seu passado glorioso tragicamente prostituído na busca do presente absoluto. 

Dolores, cidade paraguaia com nome de mulher, é onde vive El Gordo, outro personagem masculino corpulento a repetir o ciclo de abandono pelo pai, a perda precoce da mãe submissa e a busca por esse pai que o leva a descaminhos e decepção. El Gordo, como Clarke e Barresi, tem uma ligação com o Brasil, mas como os outros, não é propriamente cidadão de lugar nenhum. Assim como nos outros relatos, os filhos desse personagem não refletem a linhagem paterna, o que os distancia também do leitor. 

De boné, amistoso e corpulento, surge um inominado personagem masculino, o texano, mais um veterano de guerra que conhece o Brasil, gosta de caipirinha, mas, confidencia, "...não achei no Brasil o que venho buscando... Não será o Brasil meu destino final..." O título desse relato já diz tudo: "O homem que não tinha onde cair morto". Decidiu que só vai morrer "depois que descobrir uma paragem aprazível para ser enterrado...", e lista as condições para isso. São tantas, porém, que reduz ao quase zero as possibilidades de encontrar esse lugar. Não quer morrer. Mediante o relato do texano, Finetto engata um fluxo de consciência: sussurra a Ruffato que aguarda a morte "paciente, conformado"; perambula entre a vida e a morte às margens do Rio Styx, sem ninguém para chorar sua perda.  

Os personagens femininos não são menos solitários. Apátridas, em busca de um homem ou fugindo de si, tenuemente ligadas ao Brasil, são todas de uma sensualidade inescapável. Uma mulher francesa de idade indefinível, mas não jovem, olhos claros como os de Marianne, "de misteriosa beleza que suscita em nós a urgente necessidade de largar tudo" relata a Finetto como abandonou sua vida confortável de professora de língua e cultura alemã na França, pela incerteza de um sonho irrefreável. Em uma cena com ecos claricianos, guiada por misterioso cavalheiro que encontra no Jardín Botánico, em Buenos Aires, chega a um previsível dançarino de tango, moreno, impetuoso, de nome nada previsível: Germán. A professora de cultura alemã havia finalmente encontrado seu Germán. O caso dura o tempo de uma dança. A senhora dos olhos irresistíveis retorna a seu país, reconstruída a partir de sua própria visão de mundo, em argila claramente clariciana - ou dostoievskiana. A França não é mais sua casa, porque ela não é mais a mesma. Só lhe resta voltar à Argentina, "tentar repetir aquela sensação de... de felicidade? [...] talvez a morte seja isso, uma espécie de presente absoluto."

Os nomes, sempre os nomes: em Havana, Nadia, "uma mulher nem feia nem bonita, cabelos e olhos castanhos", portanto quase indistinguível na multidão, Nadia-quase-nada atrai Finetto com um simples olhar. Tem um passado a contar. Foi "casada" com um brasileiro, a quem espera, mas não sem trabalhar, como atestam "a pele magoada, as marcas vermelhas e roxas de outros encontros". Nadia é o fundo do poço moral de Finetto; foge, ao deparar-se com sexo obrigatório em local ermo. Mas a memória do momento horrível fica, feito marca vermelha na pele de Finetto. A marca contagia Ruffato-personagem, que "transforma" essa passagem na mais íntima do livro. Apesar de aparentar empatia e ausência de julgamento com os outros personagens, revela-se enojado ao defrontar-se com a pele da prostituta, e, pior, cercado de sons de tosse e cheiro de urina. Restou-lhe pagar por aquilo que não consumiu, fugir, beber mojito com sofreguidão e correr para um "longo banho para me livrar daquela crosta grossa que se acumulava sobre minha pele." 

Mas a fila anda. Ou, nesse caso, desliza para um milagre de superação. Fugindo de Nadia, na página seguinte, Ruffato encontra-se na asséptica Norderstedt, Hamburgo, na pensão de Anka, "uma bonita mulher de sessenta e poucos anos, um metro e setenta talvez [...] pequenos e vivazes olhos azuis". Que alívio! No café da manhã, "sobre a alva toalha bordada com motivos florais [...] uma cestinha com três ou quatro variedades de pães e uma maçã." Nesse cenário, se Wagner não tivesse sido o invejoso sem escrúpulos que foi, colocaria, ele mesmo, a tocar, um delicado concerto para violino, de Mendelsohn. Mas Anka é digna de um lieder de Schubert: refugiada de guerra, órfã de pai (de novo o abandono) e vítima de uma mãe cruel, que como outras no livro, morre cedo. Uma sequela de trauma em sua perna esquerda obrigou Anka a usar muleta até os sete anos. Acidentalmente, em uma cena adocicada e de suspense ao mesmo tempo, onde a criança brinca sozinha à beira de um riacho, perdeu a muleta. Curou-a a surra da mãe. Ah, do que são capazes essas heroínas arianas! Em um arroubo literário, Anka, a manca, (quase) atinge o índice de perfeição da raça. Um deslize, mas de quem? De Finetto-Ruffato, ansioso por exorcisar a memória do encontro em Havana, ou de Ruffato-autor, necessitando arejar seu próprio otimismo?

Nem uma alternativa, nem outra, duram muito. A última personagem feminina importante no livro é Susana Sousa, beldade de olhos cor de violeta. Apartada dos pais, sempre à procura de um lugar onde sua beleza não fosse uma ameaça, Susana chegou ao Timor, e novamente a beleza a perseguiu. Apesar do amor de Alexandre, após ser atacada, estuprada, e abandonada para morrer à beira de uma estrada, não resistiu, e entregou-se ao mar e aos lafaeks (crocodilos). Seu pecado foi a beleza. Mas em um suicídio morrem ao menos dois, e sofre o que continua a viver. É ele, Alexandre, quem conta a Finetto-Ruffato a tragédia; são dele os silêncios e palpitações que ouvimos da boca do narrador. Ruffato conta a história de Finetto, que conta a história de Alexandre, que conta a de Susana. E apesar de tantas barreiras, o leitor se aproxima dela porque se aproxima de Alexandre. São visíveis as lágrimas nos olhos de Ruffato: "o tempo omitiu-se, envergonhado". Ruffato-autor silencia o tempo em respeito à passagem de uma lindíssima, tristíssima jovem de olhos cor de violeta.

Ruffato-narrador volta a Finetto no final, em mais um anúncio da arquitetura da obra: um "memorial descritivo", que, segundo o Colégio de Arquitetos do Brasil, é a descrição de todos os materiais necessários na construção de um projeto arquitetônico. O material mais importante na construção desse livro é o autor. É nesse capítulo que o romance mais se aproxima, ao menos na aparência, da biografia do autor. É irrelevante determinar quais, dos detalhes oferecidos, correspondem à realidade. O que importa é a frase final: "Quando despertou, o século xx morria..." Um ano depois, Ruffato-autor publicou seu primeiro romance, Eles eram muitos cavalos. É seguro dizer que apesar da literatura ter sido companheira de Ruffato desde a infância, como ele mesmo conta, foi a partir de 2001 que o mundo despertou para Ruffato. Flores artificiais é um retorno ao passado, real ou inventado, que permite ao leitor viajar na solidão do outro, aliviando, assim, sua própria miserável solidão.

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Vivian Schlesinger é tradutora e poeta (Papaya na madrugada, Dobra Editorial, 2011), além de mediadora de clubes de leitura e organizadora, através do Jardim Alheio – Grupo de Crítica Literária, de ciclos de crítica e oficinas na Casa das Rosas e no Clube Hebraica, em São Paulo.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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