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Geopolítica ambígua na crônica do capitalismo

José Eli da Veiga - Fevereiro 2015
 

José Luís Fiori. História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2015. 280p.

O melhor está nas 35 páginas do prefácio intitulado "Conjeturas e História", que, em abril do ano passado, pretendeu dar unidade e consistência a um conjunto de 71 artigos esparsos, publicados ao longo dos últimos sete anos, quase todos na coluna de opinião do Valor. Com o mesmo propósito, os curtos textos não foram organizados em ordem cronológica, mas sim em três pares de subtemas: "História e Desenvolvimento", "Conjuntura e Crise" e "Geopolítica e Estratégia".

É ambíguo, contudo, o produto de tão bem intencionada quanto arriscada operação. Por um lado, esclarece e divulga a evolução e o rumo que tende a tomar o trabalho investigativo sobre o sistema interestatal capitalista empreendido pelo grupo de pesquisa do CNPq "Poder Global e Geopolítica do Capitalismo", coordenado na UFRJ pelo autor, o cientista político José Luís Fiori. Seu alvo passou a ser cada vez mais a intersecção entre a Geopolítica e a Economia Política Internacional, duas das principais disciplinas dos cursos superiores de Relações Internacionais.

Muito além de um assumido "deslocamento" na orientação teórica, o mais impactante é a profunda ruptura com as anteriores interlocuções críticas que haviam privilegiado interpretações mais economicistas. Isto é, desde as estruturalistas até as keynesianas, passando pelas marxistas; quase todas as teorias da dependência; e ainda as derivadas abordagens do sistema–mundial moderno propostas por Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi.

Partindo de duas fortes evidências factuais - a) de que a formação dos estados territoriais precedeu a formação das economias nacionais na expansão vitoriosa do sistema de poder europeu que gerou o capitalismo; e b) de que nos posteriores desdobramentos os Estados nacionais, com suas moedas, sempre tiveram uma importância que seria até mesmo "insuperável" (página 17) -, o programa de pesquisa passou a procurar superar a anterior subestimação desse crucial predomínio da política sobre a economia. Uma reorientação autocrítica que ajuda a entender o contraste entre a excelência das análises orientadas pela abordagem que o grande Fernand Braudel (1902-1985) chamou de geo-história e a precariedade dos diagnósticos e cenários geopolíticos esboçados.

A proposição central explicitada no prefácio é que no desenvolvimento do capitalismo interagiram quatro subconjuntos de países, que talvez pudessem ser apelidados de líderes, satélites, rebeldes e marginais:

a) o dos que lideram a expansão sistêmica por terem visão estratégica e instrumental de suas economias nacionais, por competirem, disputarem e lutarem permanentemente para expandir seus territórios econômicos supranacionais, e por jamais abrirem mão do controle dos processos de inovação tecnológica e militar;

b) o dos países derrotados, submetidos, ou que livremente optam por adotar estratégias de integração ou subordinação direta a alguma das potências que forma o subconjunto líder ("a");

c) o dos que questionam essa hierarquia internacional de poder e procuram superar a lacuna tecnológica, industrial e financeira que os separa do grupo "a", mas cujos objetivos de longo prazo não são definidos a partir da economia, nem são submetidos aos ditames da política econômica, pois só poderão chegar a ser potência (regional ou global) se puderem superar as barreiras à entrada impostas pelas potências do grupo "a";

d) o dos países que, por não estarem em condições ou não se proporem a desafiar a ordem estabelecida, aceitam sua posição política subalterna e se assumem como "andar de baixo", pois nem chance parecem ter de sair dos amplos grotões do sistema.

O problema é que, no restante do livro, aparecem ao menos três respostas diferentes à decisiva pergunta sobre as chances de outros países poderem trilhar o caminho dos ganhadores. Na página 109 lê-se que tal caminho "não está aberto para todos os países", porque a energia que move esse sistema vem exatamente dessa luta contínua pela conquista de posições e de monopólios que são desiguais. Só que antes, na página 45, essas mesmas razões haviam sido adiantadas para responder que sim, esse caminho "está aberto para todos os países", embora "poucos serão os vencedores". E que lá adiante, na página 201, também se afirme que "terminou definitivamente o tempo dos pequenos países conquistadores".

Ainda mais perplexidade causa a comparação entre os fatos da atualidade com as previsões formuladas há seis anos sobre quais seriam as principais "disputas e conflitos geopolíticos crônicos" neste início do século XXI. Na página 125 lê-se que essas "fraturas" estariam em "vários pontos do Leste Europeu", em "alguns países da Ásia Central" e no "continente africano". Já na página 160 elas estariam na "faixa de terra que vai do Báltico até a China", na "África Negra", e até em "algumas áreas da América do Sul". Sem qualquer menção nessas passagens às conflagrações do Oriente Médio que acabaram por engendrar a atual necessidade de tão heteróclita - e até aqui impotente - coalizão contra o Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

Como se não bastasse, o fenômeno da União Europeia é qualificado de reles utopia. Na página 158 chega mesmo a ser liminarmente rebaixado a mero "armistício" do pós-Segunda Guerra Mundial. E sobram elogios ao Acordo Nuclear com o Irã e a Turquia, fato que "projetaria o Brasil, definitivamente, no cenário mundial" (p. 246).

Em suma, também salta aos olhos o lado infeliz da temerária operação que consistiu em republicar "ipsis litteris" artigos que envelheceram muito mal. Falha que até poderia virar uma grande virtude se um posfácio mais robusto tivesse revisitado tais artigos à luz da nova e promissora perspectiva exposta no prefácio. Sem isso, o livro mais parece ter fornecido uma involuntária demonstração de que é inviável acender uma vela para a lucidez de Braudel e outra para a bitolada geopolítica de Halford Mackinder (1861-1947), acidentalmente tratado de "Alfred" na página 160.

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José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) e autor de A desgovernança mundial da sustentabilidade (Editora 34, 2013).



Fonte: Valor, 3 fev. 2015.

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