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Continuidades e mudanças da corrupção no Brasil

Antonio Silva Magalhães Ribeiro - Maio 2015
 

A corrupção sempre ocupou um lugar de destaque no cenário político nacional. Já influenciou no suicídio de um presidente da República, inspirou várias campanhas eleitorais vitoriosas, foi decisiva para a deposição do primeiro presidente eleito após a redemocratização do país e, na atualidade, levou à prisão toda a cúpula dirigente do partido governista, o PT.

Embora desprovidos de um projeto para o Brasil, os militares, em 1964, se uniram em torno de um binômio que demonstrava com clareza os objetivos do golpe de Estado: derrotar o comunismo e combater a corrupção.

Contrariando o discurso oficial, a desenvoltura com que se praticou a corrupção nas entranhas da ditadura militar não chegou a surpreender; afinal, se enquadrava na mesma lógica da corrupção dos direitos, dos valores e da dignidade humana presente nas sessões de tortura e nas mais torpes perseguições aos que se opunham à tirania. Trata-se da lógica do arbítrio, do não reconhecimento de qualquer norma que se afigure contraditória com a natureza e as premissas do autoritarismo. Coerente, enfim, com a corrupção-mãe, aquela que, através da violência, impôs um regime que só pode se afirmar através da destruição das instituições que dão significado à democracia.

Em uma estrutura de poder onde o desprezo pela legalidade guia os movimentos da política e dos modelos econômicos impostos, o público e o privado se confundem e o arbítrio é radicalizado pelo caráter centralizador das decisões, elevando substancialmente a propensão à corrupção, particularmente em um ambiente desprovido de controles independentes.

E foi exatamente o modelo econômico adotado no governo Geisel, numa tentativa de repetir o êxito alcançado pelo "milagre brasileiro", que a corrupção alcançou sua maior notoriedade, associada, predominantemente, a dois mecanismos: (1) a distribuição de financiamentos, subsídios e incentivos fiscais pelo tesouro nacional, BNDES, BB e o BNH, em benefício das instituições do mercado financeiro e de capitais; e (2) concessão de autonomia ilimitada e aportes milionários para as empresas estatais, justificados pela crença oficial do decisivo papel a elas reservado enquanto indutoras do crescimento econômico. A "nobreza" da missão salvacionista não permitia que os orçamentos das estatais se subordinassem ao controle do legislativo, estímulo adicional às oportunidades e incentivos à corrupção em larga escala.

Em última instância, a economia - por meio do modelo econômico imposto - foi o fator determinante da corrupção no regime que apostava alcançar a legitimidade através do sucesso econômico que não se concretizou. No governo seguinte, com o regime já em franca decadência moral e política - derrotado nas eleições de 1974 e pressionado pela extrema-direita -, novas condicionantes políticas são introduzidas em um cenário de desagregação, revelando casos de corrupção que culminaram inclusive em outros crimes, a exemplo do "escândalo Capemi-Baumgartem" e do "escândalo da Mandioca", que resultaram no assassinato de Alexandre von Baumgartem e de Pedro Jorge de Melo e Silva, respectivamente.

O primeiro, um empresário membro do serviço de informações que sabia demais e ameaçava personalidades do alto comando militar; o segundo, um procurador da república que apurava um esquema de desvio de verbas - destinadas às atividades agrícolas -, operacionalizado por agentes do Banco do Brasil, de um lado, e fazendeiros e políticos do interior do país, do outro.

Era o retrato mais contundente da decadência do regime cuja perda de apoios, aliada à disputa pelo poder, configuraram um cenário de degeneração que possibilitou o surgimento de tipos de corrupção ainda não percebidos, até então.

Se a centralização das decisões, a falta de transparência dos atos públicos e a inexistência de controles independentes, fornecem as estruturas de oportunidades que alimentam a corrupção nas ditaduras, nas democracias é o desenho institucional - sem prejuízo de outras variáveis - de cada país que oferece elementos definidores das práticas ilegais.

A forma de governo, a descentralização política e administrativa, a legislação eleitoral e os financiamentos de campanha despontam como os elementos mais marcantes que contribuem para o alargamento do terreno em que o fenômeno da corrupção de manifesta, nos regimes democráticos.

No caso específico do Brasil, a sua forma de governo já denominada de presidencialismo de coalizão - em razão das relações entre os poderes executivo e legislativo, fundadas na união entre o elemento presidencialista e as coalizões firmadas com os partidos políticos - incentiva relações de trocas entre parlamentares e a presidência da república, traduzidas na concessão de cargos públicos e benefícios materiais em troca de apoio na casa legislativa. Ademais, a ampliação dos processos eleitorais em todo o país exigem elevadas somas de recursos para as campanhas, fomentando financiamentos ilegais para as mesmas.

Além desses aspectos, importa ainda ressaltar a ênfase conferida por alguns estudiosos ao papel dos atores políticos, particularmente Weyland (1998), quando vincula o crescimento da corrupção em alguns países da América Latina - após a redemocratização - ao surgimento de lideranças personalistas ou carismáticas que assumiram a presidência da república em alguns países, através dos recursos da mobilização de massas e do uso dos meios de comunicação.

Nesta mesma linha de raciocínio, o professor Filgueiras (2013) avalia:

[...] a análise da corrupção deve estar relacionada ao modo como o desenho institucional da política brasileira opera um contexto favorável às práticas de corrupção, uma vez que eleva o personalismo acima dos valores e normas republicanas (p. 2).

Os mais notórios casos de corrupção ocorridos nos anos que se seguiram à redemocratização no Brasil não guardaram semelhanças entre si, além do fato de terem sido de inspiração individual. Foram dispersos quanto à modalidade, o modus operandi e os favorecidos pelos ilícitos. Não se constatou corrupção de governo e sim de pessoas.

A partir de 2003, no entanto, para além da continuidade de certos tipos de ilícitos praticados anteriormente, de cunho individual, assistimos à crescente institucionalização da corrupção e mudanças quanto aos métodos, instituições e atores envolvidos, tanto no âmbito da administração pública quanto da iniciativa privada, além de organizações não governamentais.

Enquanto meios para viabilizar os ilícitos, chamam a atenção: (1) a radicalização do aparelhamento da máquina administrativa do Estado; (2) a compra de apoio de parlamentares para aprovação de projetos no Congresso Nacional e apoio nos processos eleitorais; (3) a utilização de organizações não governamentais como instrumentos de desvio de recursos; (4) as fraudes milionárias nas empresas estatais; e (5) a associação com outras atividades ilegais para a viabilização de operações fraudulentas.

Essas práticas serviriam à arquitetura de um projeto de manutenção do poder em curso, cuja execução implica o desvirtuamento do papel do Estado e da administração pública como instrumento de realização de programas governamentais.

A nova configuração da corrupção inaugurada pelo Partido dos Trabalhadores foi brilhantemente explicitada em alguns trechos do voto do ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ação penal conhecida como Mensalão:

Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais e de desígnios pessoais.

Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar, profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais, com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e rigor das leis desta República.

Desmascarada a farsa, o cinismo oficial justifica a disseminação da corrupção com o argumento de que ela não cresceu no Brasil, apenas se tornou mais transparente, em razão da disposição do governo de apurar os fatos. As evidências, porém, são outras.

Primeiro, porque o aprimoramento dos trabalhos desenvolvidos pelo Ministério Público e pela Polícia Federal foi possível graça aos arranjos institucionais assegurados na Constituição de 1988, conforme se constata nos artigos 127 (Ministério Público) e o 144 (Polícia Federal), da Carta Magna.

Em segundo lugar, porque, recorrentemente, é constatado o envolvimento da cúpula governamental e do partido do governo em casos de corrupção. Afinal - há de se perguntar -, o governo envolvido nas irregularidades é o mesmo que supostamente se preocupa em combatê-las?

Em terceiro lugar, contrariando o discurso oficial de transparência, os parlamentares governistas insistem em obstruir investigações das Comissões Parlamentares de Inquéritos que visam investigar casos de corrupção envolvendo o PT e seus aliados.

Chama ainda a atenção que o Ministério Público tenha aberto inquérito civil (Fabrini, 2014) para apurar a redução, no governo da presidente Dilma, do número de fiscalizações da Controladoria Geral da União-CGU em municípios que recebem verbas federais.

Em 2004, a CGU fiscalizou 400 municípios, número reduzido para 180 em 2010. Em 2011, foram 120 os municípios fiscalizados e, no ano seguinte, 84. Em 2013, houve uma redução para 60 municípios, o equivalente a apenas 15% do número de fiscalizações em 2004.

Por outro lado, o gigantesco desvio de recursos públicos por ONGs foi explicado pela diretora executiva da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong), Vera Masagão, através do seguinte depoimento: "A corrupção está nas ONGs de amigos e apoiadores do governo. São entidades ligadas a grupos políticos que participam da máquina e dão sustentação ao governo. As entidades sérias querem uma relação transparente com o estado, mas estão sendo criminalizadas".

Extrapolando as práticas já conhecidas, nos últimos dez anos a corrupção já se instalou em ministérios, empresas estatais, bancos sob controle do governo, fundos de pensão de servidores públicos, aeroportos, cooperativa de crédito habitacional, agências reguladoras, etc. Para operacionalizar os ilícitos, utiliza casas de câmbio, jogos ilegais, agências de publicidade, companhias telefônicas, empresas fantasmas e até ativos nacionais sediados em outros países, a exemplo de refinarias na Argentina e nos Estados Unidos.

Se nos debruçarmos sobre as relações causais que contribuíram para a disseminação e diversificação da corrupção no Brasil, nos últimos anos, encontraremos fortes evidências de que o atual estado de anarquia moral está intimamente ligado a um projeto de manutenção do poder de um partido que não reconhece limites de qualquer natureza à sua pretensão continuista.

Se foram muitas as mudanças ocorridas na corrupção desde a ditadura, o mesmo pode ser dito quanto às semelhanças. E embora estas tragam a marca comum da utilização das empresas estatais e bancos oficiais como instrumentos do crime, é a subestimação e desprezo às instituições de controle e de representação - presentes tanto na ditadura quanto nos governos do PT - que traduzem os elementos de continuidade mais preocupantes, porquanto revelam com muita clareza o desapreço ao conteúdo democrático que elas representam. Realidade proporcionada, conforme Weyland, pela presença de lideranças personalistas e carismáticas que facilitam o comportamento corrupto. É esse sentimento autoritário presente nos dois momentos políticos que conduz a um estado de exacerbação e descontrole das práticas corruptas, que se aproximam de um deboche para com a sociedade.

Neste ambiente, longe de representar os interesses mais amplos, dirigentes políticos e burocratas praticam arbitrariedades de toda ordem, com a convicção de que estão imunes aos controles, quer oficiais quer oriundos da sociedade. Esta é a realidade tanto no ciclo autoritário militar quanto nos dias atuais. No presente, no entanto, o centro do tráfico de influência que articula as irregularidades nefastas aos recursos nacionais não é mais representado por membros das forças armadas, e sim pela cúpula de um partido que assumiu o poder com o discurso da democracia e da ética pública.

Diante deste quadro, faz-se necessário o entendimento de que a superação da desordem institucional vigente não deve se dar com a troca de práticas autoritárias disfarçadas por outras ostensivas, como pregam alguns. Ao contrário, deve resultar do avanço desta democracia de cunho eminentemente eleitoral para uma democracia moderna, substancial, na qual: a) a administração pública seja posta a serviço da sociedade e não dos partidos políticos; b) a constituição seja protegida; c) se restabeleça a autonomia da sociedade civil, desatrelando-a dos vínculos financeiros que a subordinam ao poder governamental; e d) os membros das altas cortes de justiça sejam nomeados por mérito, de modo a não deverem retribuições às autoridades que os apadrinharam, situação que nega o princípio da independência dos poderes - base legal do Estado de direito democrático.

Urge combater as práticas autoritárias, a anarquia administrativa e moral, a sangria dos recursos públicos, a manipulação do povo humilde e o desrespeito à consciência nacional. Afinal, nas atuais circunstâncias, não soa exagerado afirmar que o combate vigoroso e sistemático à corrupção é uma exigência inerente à própria defesa da democracia.

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Antonio Silva Magalhães Ribeiro é Mestre em Administração/UFBA e Doutorando em Sociologia Econômica/Universidade de Lisboa.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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