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Quem pôs Gramsci numa camisa de força?

Dario Corallo - Julho 2015
 

Um dos mais tradicionais jornais comunistas do Ocidente, L’Unità foi fundado em 1924 por Antonio Gramsci num tempo em que o PCI fazia parte do universo da chamada III Internacional. A trajetória do PCI teria forçosamente de refletir o impacto da história da Itália e do século XX: um pequeno partido clandestino sob o fascismo, protagonista na fundação da República italiana no segundo pós-guerra, promotor da "heresia" eurocomunista dentro do então movimento comunista internacional no último quartel do século.

Antes ainda da queda do Muro de Berlim, o PCI conheceu um complexo processo de transformação que implicou a tentativa de fusão das correntes reformistas do país: o próprio comunismo reformador, o reformismo cristão e o socialista. O partido mudou de nome sucessivas vezes: Partido Democrático da Esquerda (PDS), Democráticos de Esquerda (DS) e, desde 2007, PD (Partido Democrático).

A antiga imprensa comunista não podia deixar de registrar toda esta metamorfose. O jornal fundado por Gramsci, depois de sucessivas crises, teve de encerrar suas atividades há algum tempo, abrindo um imenso vazio simbólico. Agora volta às bancas e ao mundo digital, numa tentativa de se reerguer e contribuir para o crescimento de uma nova esquerda democrática, plural e europeísta.

Vozes mais à esquerda são reticentes ou hostis a esta nova fase do jornal: se não há como negar a legitimidade destas vozes críticas (essência da vida em democracia), nem por isso cabe silenciar quanto aos procedimentos mentais e culturais que as norteiam.

Este, o sentido do artigo que ora propomos aos leitores de Gramsci e o Brasil, na certeza de que não se trata de questão restrita à Itália, mas sim relativa ao sentido mais profundo de ser ou se considerar esquerda.

Há alguns dias circula pela internet uma petição de Change.org com o título "Retiremos o nome de Antonio Gramsci do cotidiano L’Unità". As razões aduzidas por aqueles que propuseram a petição são claras: depois da manchete de L’Unità sobre o referendo grego ["Agora reconstruamos a nova Europa"], consideram ter acontecido uma modificação genética no jornal, como já acontecera com o Partido Democrático.

Torci o nariz, mas logo consegui identificar por que esta campanha me pareceu uma estupidez. Em seguida, refletindo, compreendi que esta é a enésima batalha sobre a propriedade da esquerda. A quem pertence o nome "esquerda"? Quem são os "companheiros"? De quem é Antonio Gramsci?

A coisa me fez sorrir muito porque acredito, como Engels, ser natural, depois do nascimento de uma nova "doutrina", que as pessoas que a ela aderem se dividam em correntes e pequenas correntes, todas convencidas de serem as verdadeiras detentoras da mensagem original. Exatamente como aconteceu ao cristianismo, o embate sobre quem merece o nome apaixona muitos. Que amargura. Vocês falam de Gramsci como os autores das parábolas falavam de Jesus: "É coisa nossa". Não é assim. Marx, Gramsci, Castoriadis, Engels, Lukács, Sorel são filósofos, e o pensamento deles é patrimônio da humanidade, não de uma parte.

O fato de que L’Unità tenha sido fundado por Antonio Gramsci é verdadeiro. O fato de que tenha ocorrido uma modificação genética é uma opinião. O partido não é o mesmo de há trinta anos? Óbvio. L’Unità não é o mesmo de há trinta anos? Igualmente óbvio.

O embate, no entanto, se travado neste plano, não tem nada de político. É um embate estético sobre quem é mais de esquerda, como se ser de esquerda fosse constituído de um conjunto de atributos que o militante deve ter e uma série de palavras que o militante deve usar.

O que falta a estes companheiros é uma visão do mundo autodeterminada. O que acontece é simples: sempre que há um acontecimento, muitos esperam que alguém, considerado respeitável, diga o que pensa a respeito para, em seguida, todos irem atrás. Se não existe este alguém, busca-se refúgio no passado e na mania barata das citações. Será esta a esquerda? Ser - cito textualmente - "defensores convictos na própria militância política do pensamento de Antonio Gramsci"? Segundo este raciocínio, deveria dizer que ser de esquerda significa ser ateu, materialista e internacionalista, mas vemos que não é assim. Usando as categorias gramscianas, acredito que ninguém mais do que vocês, caros companheiros, caiba na definição de senso comum. Vocês veem o socialismo como uma série de ritos, uma série de dogmas imodificáveis e imortais. Vocês transformaram o materialismo histórico no Evangelho segundo Gramsci.

Caros companheiros, não acredito que mudem de ideia sobre o partido e sobre L'Unità com este meu curto texto. E não acredito nem mesmo que possam admitir que são uma normal manifestação de divergência dentro de um pensamento, de uma doutrina que só tem 150 anos. Gostaria de que participassem ativamente do partido e de L’Unità com toda a sua inteligência, com toda a sua força e com todo o seu entusiasmo.

Não, caros companheiros, embora saiba que assim o sintam, de boa-fé, no mais fundo de si mesmos, vocês não são os proprietários da esquerda e, menos ainda, da verdade. Ninguém pode ser o dono da palavra "esquerda" porque, simplesmente, a esquerda não é algo já dado, algo fixo. Talvez sejam necessários alguns séculos para compreendê-lo, mas só quando tivermos compreendido isso poderemos fazer o que o companheiro Gramsci nos sugeriu: "Dizer a verdade, buscar juntos a verdade é ação comunista e revolucionária".



Fonte: L’Unità, 10 jul. 2015 & Gramsci e o Brasil.

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