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O impeachment de Collor – sociologia de uma crise

Fernando Henrique Cardoso - Julho 2015
 

Brasílio Sallum Jr. O impeachment de Fernando Collor. Sociologia de uma crise. São Paulo: Editora 34, 2015. 424p.

A leitura do livro de Brasilio Sallum Jr. é bem-vinda: a hora é mais do que oportuna para revermos as condições nas quais foi possível prosperar uma operação política tão delicada e de consequências tão imprevisíveis como a destituição de um presidente eleito pelo voto popular. O livro guarda as características dos trabalhos acadêmicos, de respeito às fontes, minúcia na descrição dos eventos e busca de confirmação das hipóteses interpretativas. Com a aparência de descrever um processo singular, o impeachment do presidente Fernando Collor, o Autor nos leva a pensar muito adiante dos fatos ocorridos.

De fato, a tese subjacente ao livro é que o episódio do impeachment de Collor faz parte do processo de consolidação de uma nova forma de relação política entre o Executivo e o Legislativo (sem desdenhar do Judiciário). Trata-se da superação da fórmula política que o Autor designou como o Estado Varguista, que começara a se desfazer nos anos oitenta. Por trás das idas e vindas do jogo político o que estaria em causa seria a estabilização de relações entre o Legislativo e o Executivo, levando este último a respeitar e incluir no processo governativo as demandas dos partidos. Mais ainda, estas demandas, para terem sucesso como mecanismos de consolidação política, teriam de incluir a redução da desigualdade e, portanto, medidas de política social que atendessem às maiorias.

Como bom sociólogo, Brasílio Sallum induz o leitor a chegar a estas conclusões. Não o faz, porém, pela apresentação de teses e contra teses, senão que pela descrição minuciosa do intrincado processo que envolveu movimentos populares, a mídia, organizações da sociedade civil, lideranças parlamentares, Forças Armadas, etc. Aliás, um dos louvores a que o livro faz jus é que obriga os leitores a rememorarem, passo a passo, como a crise politica se foi formando, como o governo reagiu em várias oportunidades e como, debaixo do que parecia ser pura efervescência, houve atores políticos organizados, com uma visão de futuro. Este conjunto de atores, se no início era disperso, foi-se articulando para permitir uma condução política que, finalmente, alcançou um resultado positivo. Toda esta trama é muito bem reconstituída pelas fontes utilizadas: jornais, documentos, decretos, entrevistas com os principais personagens.

Entre os muitos aspectos bem logrados do livro deve-se ressaltar que, subjacente ao desenrolar da trama política, está a discussão sobre o peso relativo que teve a crítica à condução de política econômica pelo governo Collor (superficialmente chamada de neoliberal na refrega partidária) em contraposição ao choque estritamente político. Neste último, a luta por mais espaços de ação que o Legislativo travou, diante de um Presidente que interpretava seus poderes constitucionais à moda de um presidencialismo plebiscitário, a ser exercido com voluntarismo. Basílio Sallum não nega a evidência: as lutas trabalhistas, o modo supressivo como foi proposto o fim da inflação (como um golpe de ippon) e o congelamento de bens monetários, bem como o excesso de medidas provisórias, envolviam tanto dimensões sociais como econômicas e políticas.

Ao fazer o balanço sobre quais destes fatores teriam influído mais no curso dos acontecimentos, Sallum ressalta algo que pode parecer banal, mas é essencial na vida politica: o momento. Ora uns, ora outros fatores teriam preponderado. Mas é inegável que no frigir dos ovos foram fatores estritamente políticos que deram os objetivos mais claros aos atores políticos para que agissem: quando os partido perceberam o quanto poderiam ganhar e até mesmo como o poderiam (coligando-se tendo em vista um futuro governo) os dias de Collor estavam contados.

Por fim, o livro mostra como os agentes da sociedade civil (CNBB, OAB, ABI, UNE, CUT e muitos outros mais) foram importantes na forma e no conteúdo das articulações que levaram à mobilização popular. Estas organizações, em consonância com os partidos que faziam oposição (PMDB, PT e PSDB) conduziram na prática o cerco popular do Presidente (diga-se, cerco formado por pessoas mais de classe média do que pelos originados dos segmentos de trabalhadores ou de setores socialmente marginalizados. E houve, o tempo todo, preocupação em dar um caráter moral à ação política (o Movimento pela Ética, MEP, foi relevante) e uma condução rigorosamente legal, dentro dos marcos da Constituição. Isso, somado à viabilidade, que foi construída politicamente, da sucessão por Itamar Franco liderando uma ampla coalisão partidária, evitou que o impeachment pudesse ser percebido como não democrático e como um passo para o desconhecido.

Daquele momento em diante se instaurou, com a aparência de estabilidade, o que veio a chamar-se de "presidencialismo de coalisão", que ora sofre seus percalços.

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Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e ex-presidente da República. Texto de apresentação ao livro.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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