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Nota sobre a barbárie brasileira

César Benjamin - Agosto 2015
 

Alguns amigos pedem que eu explique por que postei mais cedo um trecho de um artigo que escrevi. Consideram-no hermético. Para quem não leu, republico-o mais abaixo. Para quem não entendeu, explicito por que me lembrei dele.

A principal informação política que recebi na semana passada não veio de Brasília e nem da insuportável disputa entre "coxinhas" e "petralhas". Veio de uma curta entrevista feita com a mãe de um dos rapazes assassinados nos últimos dias em Osasco, aparentemente pela polícia. Cito de cabeça: "Eu vou seguir com os meus ‘corres’. Tenho mais dois filhos e sei que ninguém vai nos ajudar." Ela, nitidamente, estava sofrendo muito. Outra senhora, ouvida em seguida na mesma reportagem, disse apenas que lá onde mora, em plena Grande São Paulo, "todo mundo se tranca em casa depois das nove da noite".

Se esse é o estado de espírito que se espalha nas extensas periferias urbanas brasileiras - ou seja, se as pessoas perderam o contato com as instituições do Estado e da sociedade civil -, a crise brasileira é muito mais grave do que vocês pensam. Anos atrás, até mesmo na ditadura, em situações assim as mães dirigiam-se às instituições, exigindo providências. Se essa esperança acabou, não sabemos o que está por vir.

A luta política brasileira permanece circunscrita a setores muito restritos. Todos são "coxinhas". Paira sobre ela o silêncio ensurdecedor de grande parte da população, que não acredita mais no PT - talvez menos pela corrupção do que pelo puro e simples abandono -, mas também não se identifica com passeatas nas avenidas Paulista ou Atlântica.

Como essas milhões de pessoas que agora sabem que "ninguém vai nos ajudar" se comportarão? É uma incógnita. Podem afundar na barbárie do cotidiano, cuja expressão mais chocante é o moinho satânico da violência, ou podem resolver protestar. Neste último caso, não será com passeatas bem-comportadas.

Elas são extremamente sensíveis a oscilações de emprego e de renda, pois vivem perto da extrema pobreza. O ajuste para baixo nessas variáveis mal começou. Pensando naquela senhora de Osasco é que resolvi publicar o trecho abaixo, que é apenas parte de um artigo maior. Não sei se, agora, ele fica mais claro.

* * *

Eis o trecho em questão:

[...] Silenciosamente, o Brasil pode estar transitando para além disso tudo, embora nos faltem os conceitos para expressar esse passo. Talvez a sociedade, em algum momento, busque socorro em possibilidades mais amplas, forçando os limites do que hoje se considera pensável. Talvez se canse da mentira e procure reencontrar uma verdade sua. Não será, certamente, a verdade dos políticos ou a dos letrados.

Como será?

Os antigos persas usavam uma palavra que é traduzida como verdade: "rta". Mas "rta", para eles, também significava a potência que assegura que o Sol nasça a cada manhã, os princípios ordenadores que mantêm o Universo funcionando, o conjunto de valores que liga pessoas e gerações, e outras verdades não passíveis de prova, sem as quais, porém, a existência é impossível.

Na vida real, as verdades que resultam da experimentação científica, a qual serve de modelo para o nosso sistema jurídico, convivem com muitos outros tipos de verdade, entre as quais se destacam a tradição, a evidência e o bom senso. Ninguém pode provar que o Sol nascerá amanhã - como mostrou Poincaré, não se pode provar a estabilidade do sistema solar -, mas se não acreditarmos nisso a vida se torna inviável.

As verdades que podem ser provadas são apenas uma pequena parcela das verdades de que necessitamos para viver. Isso vale também para a sociedade. Se as instituições em vigor, com seus procedimentos formais, não forem capazes de favorecer um ambiente propício à vida em comum, se as únicas verdades que conseguem encontrar e aceitar são aquelas que as conduzem à impotência diante da grande crise, a sociedade poderá apelar à "rta" - aquela verdade-evidência que se impõe por seu peso e clareza -, baseando nela as suas decisões e ações. Foi o que os argentinos fizeram quando gritaram: "que se vayan todos!".

Se quisermos sair de uma crise civilizatória tão profunda, precisamos redescobrir urgentemente os significados mais amplos de conceitos fundamentais, como ética, liberdade e verdade.

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César Benjamin é economista e editor.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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