Há um clima de fim de ciclo no PaÃs: o dos governos do PT e da "hegemonia" petista na polÃtica nacional. Fala-se disso na situação e na oposição e os diferentes partidos parecem convencidos de que o futuro nascerá de um movimento de superação. Gostaria de problematizar a ideia.
É melhor ver o esgotamento do ciclo petista - que é real - como parte do esgotamento de um ciclo maior, que deita raÃzes na redemocratização e no movimento que culminou na Constituição de 1988. Entre 1995 e os dias atuais, este ciclo ganhou força, produziu resultados importantes, chegou ao apogeu e está agora, ao que tudo indica, conhecendo sua desconstrução.
Tivemos no Brasil, durante esse perÃodo, um ciclo social-democrata imperfeito. Seu componente social-democrata associa-se à afirmação progressiva de uma grande democracia de massas, de caráter inclusivo e popular. Mas também à implantação do que se tem hoje no PaÃs de "Estado de bem-estar", com polÃticas sociais importantes, reconhecimento explÃcito de direitos e uma orientação oficial largamente favorável à melhoria na distribuição de renda e à redução das desigualdades sociais. Associa-se tanto à s polÃticas de estabilização monetária e responsabilização fiscal dos anos FHC quanto à s polÃticas assistencialistas e de renda dos anos Lula; tanto ao esforço de redimensionamento e racionalização do Estado e da administração pública quanto à busca de novas formas de inserção internacional do PaÃs.
Tal ciclo, porém, não conseguiu atingir a "perfeição", ou seja, tornar-se sustentável. Nem sequer chegou a ganhar plena coerência, a sintonizar seus termos e componentes ou a ser assimilado pela população e pela opinião pública a ponto de se converter em ideia-força, cultura polÃtica e convicção cÃvica.
A imperfeição do ciclo está estampada em algumas de suas caracterÃsticas mais relevantes.
Antes de tudo, o ciclo não foi assumido como tal: jamais se fixou, na vida nacional, o reconhecimento explÃcito de que estávamos a conhecer, de modo tardio, uma "onda" social-democrata. A arena polÃtica não foi contagiada por essa ideia. Ora o vetor discursivo predominante se apoiou na tese de que se estava a viver a "continuidade da redemocratização", ora que se tratava de trazer para o PaÃs o ideário "neoliberal" e ora que se iniciava entre nós uma fase de "redenção nacional". Não se compreendeu que uma social-democracia estava em marcha.
Em decorrência, os partidos polÃticos e movimentos que protagonizaram o ciclo deixaram de cooperar entre si: optaram por abrir guerras e litÃgios uns com os outros, investindo energia irracional na disputa eleitoral. Preferiram processar suas diferenças à s cegas, ou melhor, privilegiando tão somente a conquista de governos e posições de força no sistema polÃtico.
Uma terceira imperfeição deriva deste ponto. Convertidos em máquinas eleitorais, os partidos não se reproduziram de modo adequado, não funcionaram como "escolas de quadros" e não renovaram seus quadros de direção. Transmitiram assim, para o conjunto do Estado, um notável fracasso em termos de formação de lideranças e de oxigenação da elite polÃtica.
Soterraram, sem pena nem glória, figuras polÃticas da estatura de Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, Paulo Brossard, Miguel Arraes, Tancredo Neves, Itamar Franco, entre outros, que haviam definido o perfil da elite polÃtica que emergiu durante os anos de luta pela democracia. Mesmo lideranças como Fernando Henrique Cardoso e Lula não foram preservadas e engrandecidas da forma devida. A elite polÃtica, com isso, perdeu densidade e chega aos dias de hoje reduzida a nÃveis inimagináveis de ruindade e primitivismo: não há mais estadistas, os lÃderes nada lideram, o discurso polÃtico é tosco e grosseiro, falta cultura aos polÃticos.
Apoia-se no entrelaçamento destas três "imperfeições" o fator principal da imperfeição social-democrata a que me refiro: seus partidos principais, o PSDB e o PT, mas também parte do PMDB, o PSB, o PPS, o PSol e os movimentos sociais mais fortes, como o MST, nunca conseguiram erguer um projeto claro de sociedade. Jamais responderam à questão de saber quem somos e para onde queremos ir. Em decorrência, não educaram a cidadania, não promoveram reformas estruturais profundas e não construÃram uma hegemonia digna do nome, ou seja, uma cultura capaz de cimentar e dar sentido à s posições de força que se conquistavam no sistema polÃtico e no aparelho de Estado. Houve muita ocupação de espaços e muito uso dos mecanismos estatais, mas poucas ideias e pouca articulação. As próprias polÃticas públicas mais afeitas à social-democracia - saúde, educação, previdência, renda e trabalho - ficaram soltas, sem se completar.
A globalização, a revolução tecnológica, a conectividade em rede, a individualização foram reconfigurando a sociedade, mas o sistema polÃtico permaneceu parado, digerindo suas próprias entranhas.
O resultado disso está exposto à luz do dia: a bola de neve da corrupção, a miséria intelectual da polÃtica, uma sociedade civil exasperada e mal estruturada, a demonstração cabal de que cargos e vitórias eleitorais não dão sustentação confiável aos governantes e sobretudo uma estrondosa e profunda separação entre sociedade e Estado. A crise polÃtica atual reflete isso, ainda que também possa ser lida pela chave da inoperância presidencial. O povo distanciou-se dos governos, em especial do governo federal, principal peão de um sistema presidencialista. Não convidado, ao longo dos anos, a discutir seriamente a relação com os governos, o povo optou por romper relações com eles.
Deu no que deu. O que virá pela frente é uma incógnita, mas dá para dizer que um novo ciclo já está brotando e que avançará em diálogo com a social-democracia imperfeita do ciclo que hoje se esgota. Isso pode significar que a ideia social-democrata permanecerá a disputar hegemonia na vida nacional. Se conseguirá sucesso nisso é algo a ser respondido mais à frente.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria PolÃtica da Unesp.