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A greve nas universidades. Voltar a ter siso

Mércio P. Gomes - Outubro 2015
 

Há um século, antes da Revolução Soviética de 1917, discutia-se muito o poder das greves para agregar e unir os trabalhadores, inclusive camponeses, para dar-lhes consciência política em sua diversidade de vida, tendo como fim último solapar o capitalismo. Um francês ambíguo como um sapo, Georges Sorel, escrevia na época que, se todos se unissem e fizessem a Grande Greve Geral (GGG), a greve de todas as greves, o capitalismo cairia de uma só vez como um castelo de cartas. Sorel era famoso, dava-se ares de intelectual amigo de operários, dizia-se marxista, já se dissera monarquista, admirava a atitude do fazer diante da pasmaceira dos que só viviam para pensar e debater. Homem de ação, por isso influenciou sobremaneira a Benito Mussolini, nos tempos em que este se considerava socialista. Tempos confusos, tempos de transição, que só pela Revolução Soviética iriam se aclarar, para o bem ou para mal, conforme se queira ler a História.

A GGG nunca aconteceu, mas a ideia persistiu indulgentemente pelos desvãos dos movimentos anarcossindicalista e comunista, passando pelo trotskismo, às vezes emergindo como bandeira de ação, às vezes como simples tática de unificação. A greve pura e simples por melhorias trabalhistas continuou como catalisador de emoções, de verdades e de vontades. Soberana, ela dita o que as assembleias exigem e, por força de consequência, o que as massas querem. Como Sorel propusera, a greve vale acima de tudo como mito, como verdade que se impõe pela emoção, antes que pela racionalidade. Pois que, uma vez feita a revolução, ninguém faz mais greve.

Como nós, simples pequenos burgueses que somos, professores de universidades públicas (geridas por verbas vindas do povo, mediadas pelo Estado), com aspirações a dizer coisas sobre a vida e a realidade, a iluminar com um clarão ribombante os sertões da nossa existência, não nos curvarmos a esse poder inefável, porém fascinante e comandante, que é a greve com toda a sua mística?! Esta mística aumenta ainda mais pelo sentimento que faz unirmo-nos aos trabalhadores, sejam os especificamente de empresas privadas, sejam os funcionários públicos, sejam os trabalhadores em geral, lato sensu, generosamente falando, qualquer um que, de algum modo, trabalhe. Trabalho entendido sempre como o oposto do capital.

Não somos ingênuos, por certo, nem santos nem demônios, nem tampouco muito espertos. Há outros mais espertos em outros campos, bem o sabemos. Como professores, pesquisadores, intelectuais, enfim, trabalhadores da ciência, o máximo que almejamos é que a vida ou o destino se nos abra uma fresta pela qual possamos vê-la, tentemos analisá-la, medi-la, interpretá-la, dar-lhe algum sentido, temporário, por suposto, mas que contribua para alguma coisa. Nem que seja ao menos para algum benefício da nossa descendência não biológica, nossos alunos.

Não sabemos o tanto que se passa no nosso país. As teorias, as ideias, as proposições são diversas e por vezes confusas, aparentemente contraditórias. Por vezes as chamamos de ideologias, para desacreditá-las, às vezes nos abrimos a discutir essas ideias de boa-fé, ao redor de uma mesa ou pelos diversos meios de debates.

Há o fato ainda de que somos brasileiros, e isso nos traz outro conjunto de confusões. Nossa cultura não nos quer ingênuos, mas, sim, alertas ao que os outros dizem e fazem, pois, claramente, as palavras e os atos representam antes de tudo interesses (e o maldito poder), pace Foucault. Sabemo-nos grandes, quando olhamos os nossos vizinhos mais próximos, e pequenos, quase humildes rabugentos, quando deparamos com os de além-mar. E persistimos com o pensamento de que seremos grandes iguais.

Mas algo nos prende aos buracos negros de nossa cultura. Não conseguimos resolver nem mesmo os problemas que já detectamos há muito tempo: nossa rígida hierarquia social, o patrimonialismo, o preconceito racial, inda que qualificado por um sentimento de afeição ao outro, a violência interna, a culpabilização dos outros por nossos problemas, a burocracia, a corrupção pessoal e institucional, o criar dissenso pelo dissenso, enfim, a nossa mais que azeda, baixa autoestima coletiva.

Na desídia e no dissídio, perseveramos.

Como sermos economistas, antropólogos, cientistas políticos, filósofos, físicos, matemáticos, engenheiros, biólogos, médicos e artistas - os melhores do país - e não sabermos tomar conta de nossa casa, de nossa universidade? Como é que a deixamos se dilapidar e ser dilapidada, como é que não temos recursos para nossas pesquisas e divulgação, ao menos para manter uma mínima infraestrutura funcionando, se os que estão no poder vieram de nós, são do nosso métier, como alunos ou como colegas?

Não sabíamos que uma crise econômica estava por vir? Não lemos nossos comentaristas econômicos, os papers de nossos colegas, as declarações de nossos políticos bem eleitos?

Alguém nos enganou por sermos ingênuos ou nos enganamos por querermos ser mais espertos do que eles?

Temos algum direito específico para reclamar de tudo que nos acontece? Outros dos nossos conterrâneos, patrícios, também estão sofrendo ou só nós mesmos? Por que eles também não fazem a GGG?

Que Constituição é essa que não nos protege, que ministro é esse que não nos acode?

Eis por que lançamos mão do nosso mito da GGG e nos atiramos numa greve de três meses para, ao final, de mãos abanando, voltar a persistir em sermos espertos, lamentar as vicissitudes do Estado padrasto e planejar novas lutas, novas greves no futuro. Pelo visto, pelos comentários pós-greve, essa arrastada e desinfeliz greve não vai destruir as greves que faremos no futuro. A continuar nos caminhos e descaminhos de nossas vidas de trabalho, é só o quê, invariavelmente, nos restará fazer.

Unamo-nos aos trabalhadores de fábrica, aos lavradores dos nossos sertões, aos sem-terra e sem-teto, aos decaídos do crack que vivem ao nosso calcanhar, para nos identificarmos com os despossuídos da Terra e nos lamentarmos de nossos desígnios infelizes. Juntos venceremos, pero quanta mala suerte!

Quando, há três meses, os arautos da greve começaram a nos arrebanhar, a mística da greve bateu forte em muitos de nós, mas não em todos nós. Muitos já desconfiam desse caminho, embora não saibam o quê mais fazer. Muitos já fizeram greves e mais greves ao longo dos últimos 30 anos, algumas consideradas como tendo alcançado resultados positivos, a maioria parece que inútil. Desde os estertores finais da ditadura nós, os professores, nos alinhamos ao espírito e ao élan dos trabalhadores sindicalizados para fazer nossas reivindicações de classe - salários, condições de trabalho, posição na sociedade política - via sindicatos ou associações e por meio de greves. Se durante a ditadura se conversava até com militar, esperando que ele fosse um tanto esclarecido, no comando da educação, parece que hoje já não se pode esperar nada de conversas com aqueles dos nossos, vigentes no poder. Aduz-se que, quando no poder, não são mais nossos.

Nossos salários, desde a reforma universitária da época da ditadura militar, são bons ou ruins? A resposta depende da inflação, da defasagem entre o desejo e o poder de compra, do momento em que vivemos e da comparação com outras categorias de trabalho. Ou ganha alguma clareza se o compararmos com os americanos ou com os argentinos. Nosso salário é proporcionalmente bem maior do que o de um funcionário administrativo, e bem, bem menor do que os salários de um procurador, um juiz, um funcionário do Legislativo, um policial federal ou um político de qualquer instância, a não ser aqueles edis de algumas cidades paranaenses a quem o povo exasperado anda rebaixando. Populações jacobinas estão rebaixando os salários dos vereadores de suas cidades!! Pode isso? E, afinal, como iremos compatibilizar nossos salários e nossas condições de trabalho com os mesmos daqueles citados maioriais do serviço público? Mais diálogos, mais demonstrações de bons serviços ao público, ou mais greves?

Enfim, esqueçamos esta greve, ela não nos redimiu dos nossos afogos, pudera! Voltemos ao trabalho. Não precisamos baixar a cabeça nem pôr o rabo entre as pernas. Passamos mais um sufoco, vamos agora para outro, dar aulas por todo o verão carioca. Mas sejamos alegres e fieis ao nosso destino, por nós unicamente escolhido, jamais imposto.

Em nossa função de professores, pesquisadores, intelectuais, formadores de opinião, saibamos que o destino do Brasil somos nós que devemos, se não dirigir, por inapetência, ao menos dar-lhe sentido. Está nas nossas mãos e nas nossas consciências, ou nas dos nossos alunos. Não são os burgueses capitalistas, os banqueiros, operários, camponeses, nem os fazendeiros e os que se arvoram mais próximos de Deus que têm a prioridade de prover régua e compasso para o Brasil. Devemos ser nós que temos as ferramentas do conhecimento e a visão da história. O Brasil exige de nós autoestima alta, responsabilidade e engajamento. Por isso, temos novos caminhos a fazer. Não nos iludamos mais com sorelismos pré-soviéticos. Refaçamos nossos desígnios de professores por um novo modo.

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Mércio P. Gomes é antropólogo e professor da UFRJ.

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Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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