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Gramsci prisioneiro e suas frágeis esperanças

Roberto Roscani - Novembro 2015
 


Um livro lança nova luz sobre as intrincadas vicissitudes das tentativas de libertar o chefe do PCI através de uma tratativa diplomática

A história, a investigação histórica muitas vezes é a montagem de um quebra-cabeça. As peças existem, mas nem sempre no mesmo tabuleiro. Ademais, podem ser arranjadas de modo nem sempre linear. Algumas peças não são encontradas porque estão fora de lugar (em algum arquivo não pesquisado), outras são esquecidas ou não compreendidas, algumas vezes também extraviadas de propósito porque põem em risco toda a construção. As vicissitudes certamente complexas da tentativa (ou melhor, das tentativas) de obter a liberdade de Antonio Gramsci do cárcere fascista se tornaram quase um lugar de debate e disputa entre historiadores: muitos delas se ocuparam - todos com os devidos títulos, começando por Paolo Spriano - com resultados diferentes e com reconstruções às vezes marcadas por uma polêmica política ainda viva.

O núcleo é saber se houve real vontade de libertar Gramsci e se houve responsabilidade política pela malograda troca que levou o chefe comunista à morte na clínica romana Quisisana, no bairro de Parioli, depois de longos anos nos duros cárceres italianos. Giorgio Fabre, com seu livro Lo scambio. Come Gramsci non fu liberato (Ed. Selerio, 536 páginas), parece concluir esta investigação recolhendo muitos documentos novos e oferecendo uma leitura de todos os acontecimentos que ilumina muitos elementos até agora um pouco silenciados, bem como redistribuindo a responsabilidade pelo malogro graças também à distância histórica daqueles fatos e ao esmaecimento dos elementos de polêmica política.

1. Estranhos papéis

Gramsci morreu há mais de 80 anos, o PCI não existe mais há um quarto de século e, no entanto, a emergência das vicissitudes ligadas a seu desencarceramento circundou uma longa e complexa revisão histórico-política ligada ao PCI, às figuras de seus líderes que desde os anos de clandestinidade chegaram à República e que pertenciam à geração de quem, com Gramsci, não só fundara o PCI, mas também o transformara no partido novo e, por fim, o conduzira plenamente ao quadro das instituições. Agora também aquelas gerações estão se distanciando da cena política; erros e hesitações, lutas internas e embates políticos estão plenamente relegados à história, para não dizer ao passado.

Giorgio Fabre parte do capítulo menos conhecido, ainda que seja o originário, desta longa peripécia. Falamos da tentativa de troca de 1927 conduzida pela URSS, tentando obter uma mediação do Vaticano. Sobre tais acontecimentos existem papéis que têm, eles mesmos, uma estranha história: pela primeira vez se soube daquela tentativa a partir de papéis soviéticos entregues por Mikhail Gorbachev ao secretário do PCI, Alessandro Natta, durante uma viagem deste a Moscou. Era uma espécie de homenagem a um partido amigo que encorajara a perestroika e também o sinal da vontade de trazer à luz alguns dos segredos conservados nos impenetráveis arquivos soviéticos.

Tais papéis testemunhavam uma negociação entre PCUS (estamos numa fase em que não se afirmara ainda o domínio staliniano e as diferentes almas convivem em complicada e muitas vezes venenosa fase subsequente à morte de Lenin) e Vaticano, para pôr de pé uma troca entre dois presos comunistas italianos, Gramsci e Terracini, por dois bispos católicos russos presos. O inspirador da ideia fora o próprio Gramsci, que, no cárcere de San Vittore (Milão), havia iniciado por sua vez uma espécie de tratativa com o capelão da penitenciária, pessoa considerada influente e sabedora das coisas do Vaticano, convencendo-se também de algum interesse fascista na questão. O PCI (clandestino na Itália e dividido entre uma representação moscovita, ligada à Internacional, e um centro externo situado em Paris) apoiou esta iniciativa soviética, sem, no entanto, parecer inteiramente convencido da viabilidade da troca.

Por que falava de papéis estranhos? Porque Natta mandou traduzi-los (não sabemos quem, arriscamos que pode ter sido Enzo Roggi, jornalista de L’Unità, estreito colaborador do secretário do PCI e bom conhecedor de russo) e os entregou a Paolo Spriano (autor da monumental história do PCI editada pela Einaudi e todo imerso na lógica de partido, do qual era respeitado dirigente) com alguns cortes, algumas omissões, algumas variantes. De modo ainda mais curioso, Spriano, depois de tê-los usado num livreto [L’ultima ricerca di Paolo Spriano. Dagli archivi dell’Urss i documenti segreti sui tentativi per salvare Antonio Gramsci, Roma, L’Unità, 1988], enviou-os a Giulio Andreotti. O historiador comunista e o dirigente democrata-cristão (com grande paixão por arquivos e grande acesso ao Vaticano) deles haviam falado por carta por meio de outro dirigente do PCI, Paolo Bufalini, e Andreotti tinha a possibilidade de cotejar com papéis conservados nos arquivos da Igreja. Curiosamente, o ensaio que daí surgiu, publicado numa respeitada revista dos círculos vaticanos, foi praticamente ignorado pela historiografia italiana.

2. A "necessidade" da Libertação

O que diziam os papéis vaticanos? Que a troca foi logo interrompida por dois motivos: a Igreja não tinha nenhum interesse numa tratativa que trazia o risco de travar, e não favorecer, a negociação aberta com a URSS sobre temas de liberdade religiosa; o fascismo - Mussolini - não tinha nenhum interesse numa tratativa que, de seu ponto de vista, não acarretaria nenhum benefício ao regime e, ao contrário, restituiria a liberdade a um detento de que não queria abrir mão. Quando Mussolini dizia: "este cérebro não deve funcionar", não estava brincando.

Mas existe outro elemento que emerge da reconstrução deste episódio, bem como daqueles que se seguiram até 1934. A insistência de Gramsci na "necessidade" de sua libertação. Num PCI que se ergueria em torno da Resistência e do mito que dela se construiu no pós-guerra, esta ideia de um líder que se recusa a ser deixado no cárcere pode se mostrar incômoda. E talvez também por isso os papéis (a correspondência infinita com a família, com Sraffa, com Tania) que tanto pressionavam nesta direção foram sempre olhadas com suspeição. Este traço de Gramsci é o que poderíamos definir como psicopolítico: não era (pelo menos não só) a humaníssima vontade de deixar um ambiente de coerção e privações que o afetariam a ponto de levá-lo à morte. Não, nele havia também a consciência de ser um chefe (não usava a palavra "dirigente" e não apreciaria nem mesmo a expressão "líder"), um chefe na acepção leniniana da palavra. Um elemento indispensável ao partido.

No entanto, este impulso, esta insistência para pôr fim à detenção foram tão fortes que ofuscaram, pelo menos em parte, a consciência da situação. De fato, como também explicar a tentativa de redimensionar sua posição processual, buscando "confundir-se" com os quadros intermediários do PCI (que sofreram condenações muito mais leves), bem como a imensa irritação experimentada diante da já célebre carta de Ruggiero Grieco que o descrevia, junto com Terracini, como chefe do movimento operário italiano? Por certo, a iniciativa de Grieco foi um lance grave, mas o regime fascista tinha todos os elementos para compreender quem era o prisioneiro Antonio Gramsci. Para Mussolini, nesse momento e nos anos anos sucessivos, a tratativa podia no máximo ser uma isca para lançar a Gramsci possivelmente para aumentar seu sentimento de abandono e de fracasso diante dos contínuos tropeços e dos movimentos - desastrados, quando não culpáveis - realizados pelo PCI.

Da reconstrução de Fabri surge a imagem de um PCI (que em suas articulações moscovitas e parisienses vive uma fase, junto com todo o movimento comunista, de explícita e duríssima luta que levou, primeiro, à eliminação do componente trotskista e, depois, à do bukhariniano) que experimenta de modo incerto e às vezes contraproducente a tentativa de encetar uma tratativa que Gramsci, ao contrário, via como próxima e possível. Enquanto o PCUS (mesmo nos momentos mais difíceis, quando as posições de Gramsci pareciam não alinhadas) a perseguiu com discreta coerência, ainda que sem lampejos de inteligência e às vezes com erros na busca de soluções, o PCI, ao contrário, vivia estas mesmas tentativas como um dever às vezes não exatamente cômodo e até perigoso ou, pelo menos, politicamente não recompensador.

3. A falsa notícia

Prova-o o episódio já conhecido, mas que Fabre analisa com materiais novos e completos, da publicação no jornal do PCI em Paris da falsa notícia da libertação de Gramsci, que trouxe o risco de tornar incertos os poucos benefícios obtidos com a transferência do cárcere para a clínica, os quais jamais se transformaram em exílio em Moscou, onde o esperava a família.

Por que publicar uma notícia falsa e perigosa? Para alinhar-se à posição soviética de luta pela libertação dos prisioneiros políticos comunistas nos vários países. Eram os anos do Socorro Vermelho. Eram também os anos em que a mobilização internacional forçou Hitler a soltar Dimitrov, acusado pelo incêndio do Reichstag e no centro de uma operação de propaganda política essencial para o nazismo ainda na fase de sua afirmação. A libertação de Dimitrov foi o sinal de que uma campanha de extrema politização podia ter sucesso. E teve em Berlim, ao contrário de Roma, onde Gramsci planejara todas as suas tentativas de troca com base na ideia de assumir um baixo perfil político. Infelizmente para o prisioneiro - que naqueles anos de cárcere dera vida à obra filosófico-política mais complexa e fascinante do século XX italiano com seus Cadernos - o perfil baixo nunca teria podido enganar Mussolini.




Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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