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A história de três mulheres valentes

Elio Gaspari - Fevereiro 2016
 

Maria Ciavatta (coord.). Luta e memória. A preservação da memória histórica do Brasil e o resgate de pessoas e de documentos das garras da ditadura. Rio de Janeiro: Revan, 2015. 248p.

Está chegando às livrarias Luta e memória, organizado pela professora Maria Ciavatta. Nele está contada a história de três mulheres que nos anos 1970 salvaram o arquivo de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Marly Vianna, Zuleide Faria de Melo e Dora Henrique da Costa montaram aparelhos clandestinos no Rio e em São Paulo para preservar o acervo guardado em 47 caixotes e conseguiram mandá-lo para a Itália, onde ele ficou até 1992, quando voltou ao Brasil. É uma história à espera de um filme.

Aos 73 anos, em 1964, Astrojildo Pereira passou três meses na cadeia e morreu pouco depois. Seu arquivo, com parte da história do movimento operário brasileiro, foi guardado pelo Partido Comunista. O maior interesse de Astrojildo era a literatura, e ele foi o "adolescente de 16 ou 18 anos" que Euclides da Cunha viu chegar à casa de Machado de Assis na noite em que o "Bruxo" agonizava. Beijou-lhe a mão e foi-se embora.

Em 1971, a direção do partido temeu pela segurança do acervo e pediu à professora Marly Vianna que conseguisse um novo abrigo, em São Paulo. Os caixotes foram para um pequeno apartamento.

Estava tudo bem até que em março de 1974 a ditadura resolveu cair em cima do Partidão. Favorecidos pelas regras de segurança frouxas dos comunistas, em poucos meses capturaram quase toda a sua direção, matando 12 pessoas. Num lance, José Salles, o marido de Marly, com outros dois capas-pretas a bordo de sua Variant, viu que estava sendo seguido. Desvencilhou-se, mas restava um problema: o carro havia sido comprado numa oficina mecânica próxima ao apartamento onde estava o arquivo.

Em agosto, "fiscais do Detran" chegaram ao apartamento. Era a polícia. (A essa altura mais três dirigentes do PCB haviam desaparecido, para nunca mais serem vistos. As casas de outros dois haviam sido visitadas por estranhos.) Avisada, em três dias Marly transferiu o arquivo, e, quando a polícia voltou, o apartamento estava limpo. Vinte caixas com o acervo político foram para o Rio e ficaram sob a guarda de Zuleide Faria de Mello.

Cinco anos depois da chegada das caixas ao Rio, Dora Henrique da Costa, que vivia na França, veio ao Brasil para cuidar da viagem da papelada para a Itália, onde ela seria preservada na Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão. Os baús viajaram de navio e o acervo só voltou ao Brasil em 1992.

Hoje, o Arquivo Astrojildo Pereira está bem guardado e acessível, na Universidade Estadual Paulista.

Dora e o resgate do secretário Giocondo

Antes de embarcar os baús de Astrojildo Pereira, Dora Henrique da Costa participou de um resgate bem mais arriscado. Em 1976, a "tigrada" já havia decapitado o Partido Comunista, mas não conseguira pegar seu secretário-geral, o baiano Giocondo Dias. Dois anos antes, quando sua casa foi visitada por "ladrões", ele sumiu de todos, tanto da polícia como do PCB, perigosamente infiltrado.

Dora vivia na França e lá, com Marly e José Salles, montou-se um plano para tirar Giocondo do Brasil. Onde ele estava? Não sabiam. Dora chegou a uma militante que trabalhava no consultório da psicanalista Helena Besserman Viana (a mãe do Bussunda). O tiro foi certeiro. Giocondo deveria ir a um ponto, sem nada nas mãos. Dora passou de carro, abriu a porta e ele entrou. Com um passaporte argentino falso, atravessou a fronteira, e, de Buenos Aires, tomou um avião para Genebra, onde Dora o esperava. (A história é bem mais complicada, mas está contada no livro.)

Giocondo voltou ao Brasil com a anistia de 1979 e morreu em 1987, aos 73 anos. Dora, Marly e Zuleide estão aí e contaram suas histórias.

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Elio Gaspari é jornalista.

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Fonte: O Globo, 22 nov. 2015.

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