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Robôs, personagens do capítulo inicial de uma era de transformação

Ricardo Abramovay - Janeiro 2016
 

Martin Ford. Rise of Robots – Technology and the Threat of a Jobless Future. New York: Perseus, 2015.

O fim do trabalho já foi anunciado tantas vezes e há tanto tempo que novas previsões inspiram desconfiança. Em 1958, Hannah Arendt, em seu clássico, "A Condição Humana", temia uma "sociedade de trabalhadores prestes a se libertar dos grilhões do trabalho", uma vez que "esta sociedade nada sabe das atividades mais enriquecedoras em função das quais valeria a pena ganhar esta liberdade". Poucos anos depois, em 1964, a Comissão Ad Hoc sobre a Tríplice Revolução, composta por um time de cientistas do calibre dos prêmios Nobel Linus Pauling e Gunnar Myrdal, entregava ao presidente Lyndon Johnson, ao Ministro do Trabalho e a lideranças do Congresso dos EUA um relatório segundo o qual a automação iria resultar numa economia onde "o produto potencialmente ilimitado poderá ser obtido por sistemas de máquinas que requerem pouca cooperação de seres humanos". Antes disso, em 1949, Norbert Wiener, um dos mais importantes criadores das ciências da computação, revelava seu temor de "uma revolução absolutamente cruel" levada adiante por máquinas capazes de "reduzir o valor econômico do empregado fabril habitual a um ponto em que ele não poderá ser contratado por nenhum preço".

Os fundamentos teóricos da profecia vêm de longe e se encontram nos clássicos do pensamento social, a começar por Marx, para quem o capital teria capacidade decrescente em absorver trabalho humano em função do próprio aumento da produtividade. Mas o fato é que, até o final do Século XX, a inovação tecnológica, por mais que tenha destruído empregos em determinados setores, sempre conduziu à criação de novos postos de trabalho. O exemplo mais emblemático é o da agricultura dos países desenvolvidos, cujos empregos, eliminados ao longo da primeira metade do Século XX, foram transferidos para a indústria e os serviços.

Desta vez, é diferente, afirma Martin Ford. Seu argumento é tão poderoso e empiricamente fundamentado que ele acaba de receber o prêmio (£30 mil) de melhor livro de negócios do ano, atribuído pelo Financial Times e pela McKinsey. Fundador de uma empresa de desenvolvimento de softwares no Vale do Silício, Ford não faz parte do time de estudiosos (entre os quais se destacam Ray Kurzweil e os especialistas da Singularidade) que enxergam na vertigem tecnológica pela qual passa o mundo atual o caminho para a solução de seus mais importantes problemas. Ao mesmo tempo, como membro da elite empresarial e intelectual do Vale do Silício, Ford sabe que a humanidade está vivendo apenas o início de uma era de transformação qualitativamente distinta de tudo o que a economia contemporânea já conheceu, desde a Revolução Industrial.

Rise of the Robots, este seu segundo livro (ele também escreveu The Lights in the Tunnel: Automation, Accelerating Technology and the Economy of the Future), dá lugar à radical e inédita dissociação entre o aumento da riqueza e os ganhos sociais a que o crescimento econômico esteve ligado desde a Revolução Industrial. De 1950 a 2010 a produtividade do trabalho nos EUA aumenta 254%, e os salários (excetuando os de direção) apenas 113%. O fosso entre as duas curvas começa em 1973 e não se interrompe mais.

Essa distância entre salários e produtividade se torna mais grave quando se constata que a economia americana do Século XXI praticamente não criou novos empregos, contrariando a tendência, desde a crise de 1929, de aumento em 20% da ocupação assalariada a cada década. Como cerca de um milhão de pessoas entram no mercado de trabalho anualmente, a década perdida do início do Século XXI significou dez milhões de empregos faltantes na economia norte-americana. Em 2013 o setor privado norte-americanos consumiu o mesmo número de horas trabalhadas que em 1998, apesar de a riqueza ter aumentado 42% e a população 40%.

Esta dissociação entre abundância e sua distribuição social está na raiz do avanço da desigualdade de renda que, nos EUA, voltou ao nível anterior ao da crise de 1929. O que está em jogo é nada menos que o próprio contrato social que envolveu a emergência das mais importantes democracias no mundo. Claro que para este processo foi grande a influência das políticas econômicas que privilegiaram os ganhos de capital ou o aniquilamento do movimento sindical americano, que abrigava um terço dos trabalhadores em 1950 e hoje não reúne mais que 7% desta força de trabalho declinante.

Mas o fundamental para entender a economia do Século XXI é que a ascensão dos robôs é o vetor mais importante do que Ford chama de futuro sem emprego. Desde que foi inventado, em 1958, o poder computacional do circuito integrado dobrou 27 vezes. Com isso as máquinas e os algoritmos não substituem apenas as tarefas repetitivas, mas ganham uma capacidade interpretativa que já lhes permite redigir textos e operar de forma precisa na organização de estoques ou na preparação de refeições em restaurantes de fast-food, que estão entre os segmentos de maior expectativa quanto à criação de empregos nos Estados Unidos.

Com o barateamento dos robôs e, mais que isso, com a ampliação do acesso a seus softwares, muitos dos quais estão disponíveis gratuitamente nas "nuvens" da internet, sua generalização será muito mais rápida do que habitualmente se imagina. Só o McDonald’s emprega 1,8 milhão de pessoas em 34 mil lojas ao redor do mundo. Não é difícil vislumbrar os impactos devastadores da robotização de suas atividades. Luxo de país desenvolvido? O maior usuário de robôs no mundo é a China, com 25% dos quase 230 mil robôs vendidos no mundo só em 2014. Aliás, um dos trabalhos citados no livro de Ford mostra que a dissociação entre os imensos ganhos na produtividade e a remuneração dos trabalhadores é até mais acentuada hoje na China que nos Estados Unidos.

Ford é cético com relação às chances de que a educação consiga reverter esta tendência e estimule o aumento do emprego na era digital. Seu livro é fascinante, não só pela força da demonstração e dos dados, mas também pela proposta em torno da qual, na sua opinião, se pode refazer o pacto social das sociedades contemporâneas: só a garantia de renda a todos os cidadãos, que terão cada vez mais dificuldade em buscar seus meios de vida no mercado de trabalho, poderá manter a coesão de sociedades onde a riqueza se concentra cada vez mais e a própria sobrevivência está permanentemente ameaçada.

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Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de Beyond the Green Economy (Routledge, 2016).

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Fonte: Valor, 22 jan. 2016.

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