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Socialismo para o Brasil contemporâneo

Sérgio C. Buarque - Abril 2016
 

No mundo contemporâneo, o socialismo deve ser compreendido como uma sociedade com qualidade de vida da população e, principalmente, com igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Para garantir a qualidade de vida para a população com igualdade de oportunidades - objetivo último de uma sociedade socialista -, são necessárias duas grandes condições: a competitividade da economia, para criação de riqueza, geração de renda e de emprego, condição necessária mas não suficiente; e a conservação ambiental para garantir a sustentabilidade do desenvolvimento a longo prazo e a qualidade de vida da população. O socialismo hoje, portanto, coincide com o conceito de desenvolvimento sustentável baseado nos três pilares: qualidade de vida e equidade social, competitividade econômica e conservação ambiental.

A equidade social constante do desenvolvimento sustentável deve ser entendida como igualdade de oportunidades dos cidadãos. Ou seja, que todos tenham, desde o nascimento, as mesmas condições de acesso à educação e aos serviços sociais básicos de saneamento, saúde, habitação e transporte. A igualdade de oportunidades não significa igualdade de renda e sim igualdade de condições sociais que permitam explorar as capacidades para a formação como cidadão, o desenvolvimento dos talentos e vocações e a construção de uma vida digna e confortável.

A democracia é um fim e um meio para o socialismo democrático. A democracia é parte da qualidade de vida na sociedade, contemplando liberdade de opinião e manifestação e acesso à informação, assim como a participação dos cidadãos nos processos decisórios. Ao mesmo tempo, as instituições democráticas são o espaço para a disputa política (confronto de ideias e interesses) que leve à definição de estratégias e políticas públicas dos socialistas voltadas para a igualdade de oportunidades.

O socialismo democrático não deve se orientar pela falsa dicotomia Estado-mercado (o Estado máximo que ignora, enfrenta e distorce o mercado), a qual tem levado a experiências fracassadas de hipertrofia do Estado que ignora e busca sufocar o mercado. O resultado tem sido, quase sempre, uma enorme ineficiência econômica, a formação de mercado negro e a inibição da inovação e de iniciativas empreendedoras.

Nesta concepção, o socialismo deve conviver com e respeitar o mercado como o espaço de negociação de bens e serviços entre produtores e consumidores, cujo equilíbrio depende da igualdade de oportunidades dos cidadãos; esta sim promovida pelo Estado. O mercado sinaliza para alocação eficiente de recursos, evitando, portanto, a ineficiência, o compadrio e a corrupção de empresas estatais. Mas esta sinalização se concentra nos resultados internos ao setor produtivo e orienta para o curto prazo e não para a eficiência coletiva da sociedade, além de reproduzir desigualdades sociais.

O socialismo contemporâneo terá que ser construido pelo Estado, mas aceitando e orientando o funcionamento do mercado. O mercado não é justo, mas a concorrência entre produtores e vendedores orienta para a alocação mais eficiente de recursos e para a inovação. Ao Estado cabe impedir o uso de poder de monopólio no mercado, criar o ambiente favorável à inovação e ao investimento e orientar as decisões dos empreendedores na direção do desenvolvimento. Mas a justiça do Estado não se dá sobre o mercado ou obrigando este a ser justo, mas fora do mercado e de forma mais ampla na promoção da igualdade de oportunidades na sociedade.

Ao contrário do estatismo que predominou no socialismo de origem soviética, o socialismo contemporâneo não deve ser um sistema de produção estatal. A atividade produtiva deve ser de responsabilidade dos empreendedores privados sob a orientação e regulação estratégica do Estado. O Estado deve se concentrar no seu papel de provedor de serviços públicos aos cidadãos de forma igualitária, promotor das condições de competitividade (inovação e infraestrutura) e regulador da economia de mercado.

Da perspectiva do socialismo, o Estado deve ser justo mas não pode substituir o mercado na atividade produtiva em termos de eficiência e inovação. Por outro lado, o Estado não é justo em essência, na medida em que é a síntese de uma estrutura de poder na sociedade. De modo que a proposta socialista depende de uma disputa política para orientar o Estado na direção das mudanças sociais que promovem igualdade de oportunidades na sociedade. Entretanto, não se trata de uma "tomada de poder" que leva de um Estado injusto para o Estado justo, como a virada de uma insurreição, mas de um processo de reconstrução da hegemonia, que pode ser lento e incremental, embora tenha momentos de ruptura e salto dependendo das condições políticas e sociais. Este é o terreno da disputa política pelo socialismo democrático, que vai enfrentar dois poderosos tipos de obstáculos na reconstrução da hegemonia:

1 – A capacidade dos segmentos sociais privilegiados (não apenas os capitalistas) de formação da opinião pública e manutenção da hegemonia com grande poder financeiro e domínio das instâncias do Estado. O conservadorismo que expressa os interesses dos privilegiados impede a mudança da hegemonia na direção de um Estado justo.

2 – O populismo que explora as expectativas imediatistas da população vendendo falsas ilusões, passando ao largo das instituições e provocando desorganização na economia que levam à instabilidade econômica e política. O imediatismo conspira contra as transformações que preparam o futuro. Mas um país com tantas emergências e tanta pobreza encontra um terreno fértil para o populismo e o messianismo.

De alguma forma, o modo de produção capitalista, para utilizar um conceito marxista, continua dominante, mas declinante, na medida em que a revolução científica e tecnológica muda radicalmente as relações entre produtores e proprietários (a própria geração e apropriação de mais-valia) e o Estado disponibiliza igualmente a todos os cidadãos o principal ativo da nova economia, o conhecimento (educação e qualificação). Ao mesmo tempo, em países maduros (e este é o caso do Brasil hoje), a dinâmica demográfica, com baixo crescimento da população em idade ativa, leva ao declínio continuado do que Marx chamou de "exército industrial de reserva" que favorecia a apropriação de mais-valia absoluta. De modo que cresce o poder dos trabalhadores para aumentar sua participação direta no excedente, obrigando as empresas à inovação e ao aumento da produtividade, elevando a renda total da sociedade e o excedente econômico.

Para o socialismo, a democracia é um valor fundamental com ampla participação da sociedade nos processos decisórios e com acesso pleno a informação e conhecimento que estruturam o debate e as escolhas políticas. A participação da sociedade nos debates e decisões é parte da qualidade de vida, além de permitir o confronto e a negociação de interesses e visões de mundo. E para uma sociedade complexa e com mais de 200 milhões de habitantes, a democracia deve ser representativa. Mas deve se apoiar também na organização da sociedade civil nas suas diversas formas e grupos de interesse para participação política. E os avanços tecnológicos na informação e comunicação permitem combinar formas de participação direta da população pelas redes sociais. O acesso pleno e livre de informação requer liberdade de imprensa e dos meios de comunicação, que, entretanto, como concessão pública, devem se orientar por equilíbrio e equidade das informações, confiabilidade dos dados e informações, ética profissional do jornalismo (contraditório, direito de resposta e comprovação das informações) e respeito à vida privada dos cidadãos.

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Sérgio C. Buarque é economista e professor da UFPE.



Fonte: Revista Será?, abr. 2016.

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