A Operação Lava-Jato está dizimando a coalizão que domina o capitalismo brasileiro contemporâneo. Ao colocar a nu as relações promÃscuas entre diversas instâncias de representação e de poder polÃtico com os 24 partidos que constam da planilha da Odebrecht ela revela muito mais do que distorções de comportamento. O que está vindo à tona (mas é sistematicamente obscurecido pela fumaça do engajamento polarizado e pouco refletido) é a própria natureza da relação entre o eixo central da organização econômica do PaÃs e o poder polÃtico. Por mais traumáticas que sejam estas revelações, elas podem abrir caminho a um contrato social diferente daquele que caracteriza hoje a relação entre economia, sociedade e polÃtica no Brasil.
A ideia de coalizão dominante vem de um dos mais importantes livros do prêmio Nobel de Economia, Douglass North, com outros dois coautores. Neste livro (do qual pode-se ler uma resenha aqui) eles mostram que, até o final do Século XVIII, não existia, em parte alguma, o direito de formar livremente organizações, fossem elas polÃticas, caritativas ou econômicas. O acesso à iniciativa econômica e a atividades geradoras de renda restringia-se a pequenos e poderosos grupos que se apoiavam no uso (potencial ou real) da violência para dar estabilidade a uma ordem fechada. A essência desta ordem está no caráter personalizado da dominação e das relações sociais. As organizações ligam-se muito mais a pessoas que a regras universais de funcionamento.
Este é um tema clássico da sociologia brasileira e foi desenvolvido de maneira magistral na obra de Sérgio Buarque de Holanda, entre outros. O homem cordial, por exemplo, exprime justamente a força das relações pessoais (e não de leis universais) na maneira como o conjunto da sociedade opera. Daà derivam o clientelismo, o patrimonialismo e o controle (por meio da violência mais ou menos aberta) do próprio mercado. O comércio e a formação da concorrência são submetidos inteiramente a relações não econômicas, que envolvem a capacidade de controlar e obter renda do Estado.
Ao mesmo tempo, estas formas de dominação social excluem o que o grande economista austrÃaco, Joseph Schumpeter (1883-1950) chamou de destruição criativa. Os ganhos das elites, nas sociedades em que as atividades econômicas dependem dos vÃnculos pessoais com o Estado, não provêm de processos significativos de inovação. São rendas que decorrem, em última análise, de seu poder e não de sua eficiência competitiva.
Como foi possÃvel a transição desta ordem fechada para o que North e seus colaboradores chamam de sociedades de ordem aberta? Como se deu a emergência não só da liberdade de formar organizações, mas, sobretudo, de um conjunto de regras pelas quais a dominação social adquire caráter cada vez mais impessoal? Para responder a esta pergunta North e seus colaboradores não se debruçam tanto sobre os movimentos e as aspirações das massas e sim sobre os interesses e as articulações das próprias elites dominantes. O livro faz uma rica descrição mostrando os processos pelos quais é do interesse destas elites renunciar ao controle localizado que detinham sobre a violência e transferir este poder para o Estado. A dominação não se faz mais por meio de capangas, milÃcias e seguranças particulares, mas sim da força repressiva do Estado. Mas esta transição supõe mudança radical no relacionamento entre o Estado e as elites. A relação deixa de se apoiar nos vÃnculos entre pessoas, na clientela e no uso privado da violência e passa a reger-se por regras universais.
A vida econômica brasileira é dominada hoje por atividades e procedimentos que distanciam o paÃs da fronteira global da inovação. E, com imensa frequência, estas atividades passam não por destruição criativa, exposição à concorrência global e ruptura com padrões produtivos já existentes, mas ao contrário, por baixo teor de informação e escassez de conhecimentos novos na oferta de bens e serviços. É sintomático que logo no inÃcio da operação Lava-Jato, a narrativa de alguns dos que foram por ela atingidos passasse pela alegação de que se tratava de uma espécie de conspiração para destruir um setor (empreiteiras de obras de infraestrutura) em que o Brasil tem tanto destaque global, para permitir a entrada aqui de empresas estrangeiras.
Não se trata de imaginar que numa sociedade complexa possa existir independência e separação radical entre as atividades corporativas e o Estado. O que entretanto não é próprio de uma sociedade complexa moderna (o que North e seus colaboradores chamam de ordem social aberta) é que a possibilidade de fazer negócios venha, antes de tudo e fundamentalmente, da capacidade de os dirigentes empresariais estabelecerem vÃnculos particulares com o poder polÃtico, aà apoiando a obtenção de seus lucros.
A amplitude da operação Lava-Jato tanto no setor privado como no interior dos partidos e do Estado mostra muito mais que corrupção: é a face mais visÃvel de uma cultura empresarial. Esta cultura domina não o conjunto dos comportamentos empresariais, é claro, mas o núcleo central do que é o capitalismo brasileiro atual. Seus vÃnculos até aqui obscuros com o poder polÃtico oferecem o terreno fértil em que vicejam ganhos, agora sob contestação. Mais que isso, como as empresas que compõem este núcleo central respondem por parcela significativa dos investimentos de longo prazo no PaÃs, elas têm poder extraordinário em influir sobre o que é e será a própria infraestrutura do crescimento econômico.
O resultado da Operação Lava-Jato pode ser simplesmente a substituição dos protagonistas mais visÃveis da promiscuidade que marca a relação entre o núcleo dominante do capitalismo brasileiro e o Estado. Mas sua magnitude é tal que ela abre ao menos a possibilidade de que os padrões em que se apoiou esta relação sejam reconstruÃdos e daà surjam novos contratos e novas coalizões capazes de reduzir nosso atraso com relação à fronteira do capitalismo global. O que está em jogo na Operação Lava-Jato não é somente o combate à corrupção. É para onde, para quê e para quem a economia brasileira vai crescer, quando a depressão terminar.
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Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de Beyond the Green Economy (Routledge, 2016).
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