Ao lado da insistência na assim chamada narrativa do golpe, o discurso das forças polÃticas afastadas recentemente do governo federal destaca-se pelo tom preditivo. Afoitas como nunca, anunciam o caos polÃtico e social como resultado necessário do sentido antipopular - pecado mortal, para elas - de toda e qualquer ação ou declaração, real ou imputada, do governo interino. Em raciocÃnio circular, vaticinam o fracasso dessa interinidade "neoliberal", resultado lógico e independente de ações concretas, daquilo que afirmam ser o pecado original dessa interinidade. Assim, origem e futuro do governo interino explicam-se mutuamente. Tudo retoricamente explicado e resolvido. Dialética manca e obscura sobre a cena complexa.
Penso não ser coincidência que esse discurso convirja (na parte preditiva, não no diagnóstico do "golpe") com o de setores que, na imprensa e no ambiente polÃtico, mais do que propriamente no mercado, difundem uma ideologia ultraliberal. Vozes assim já ensaiam anunciar que a credibilidade de uma nova postura fiscal se esvairá porque a atitude polÃtica do governo interino, na relação com o Congresso, partidos, servidores públicos e outras "impurezas" do mundo real, afasta-se do script fundamentalista que esses setores propõem.
O cacoete de apontar patologia e fracasso em tudo o que não é espelho de sua crença une os dois extremos de um contencioso que tenta travar a polÃtica, mesmo que o extremo daquilo que se autonomeia esquerda torça e aja abertamente contra o governo Temer e o outro - de uma nem sempre assumida direita - siga numa crÃtica mais branda e enviesada, nutrindo expectativas de instrumentalizar a nova situação.
Percebo nos dois discursos, além das afinidades eletivas apontadas, uma comum contaminação por aquilo que Albert Hirschman chamou de "retórica da intransigência". Cada uma das pedras que têm sido atiradas, na Geni em que procuram converter o governo interino, apoia-se em um ou em mais de um dos três tipos de tese que, segundo Hirschman, são historicamente defendidas pelo pensamento polÃtico reacionário diante de aspirações e movimentos de mudança polÃtica e social. São elas as teses da perversidade (segundo a qual os efeitos das mudanças tendem a se opor aos seus objetivos declarados), da futilidade (a de que promessas de mudança não levarão a lugar novo algum e sim à conservação do mesmo) e da ameaça, a convicção reacionária de que reformas no status quo darão lugar ao caos e à destruição do que foi conquistado antes.
Para nos acautelar contra ambas as correntes de adivinhos, o que há, além do fato de o governo interino respirar há menos de um mês e por isso ser imprudente concluir por seu sucesso ou desastre, é muita confusão de informações e versões conflitantes circulando, tanto no Brasil como lá fora. Vale considerar - pedindo perdão pelo uso de um já hoje lugar-comum - que quem não estiver confuso está mal informado.
Uma das confusões mais curiosas é criada por tentativas ziguezagueantes de tornar plausÃvel a fábula do golpe. Afinal, a Lava Jato foi parte cúmplice e decisiva do golpe, ou o golpe foi dado para detê-la e, logo, foi contra ela? Delações e gravações devem ser desqualificadas como ardis de criminosos autointeressados, mentindo a serviço de uma conspiração golpista, ou algumas delas podem ser seletivamente arroladas para sustentar uma defesa veraz da presidente afastada? Versões e argumentos que mudam conforme o interesse em cada lance imediato da conjuntura não ajudam a entender o que há de mais relevante no conjunto da crise polÃtica. Seria mais realista e construtivo, da parte dos que se opõem ao governo interino (e é legÃtimo que o façam), entender que o governo se equilibra como algodão entre cristais. O caminho de uma oposição firme e responsável, em vez de tentar desestabilizar o governo interino, poderia ser o de fazer do Congresso endereço central de pressões ligadas a interesses sociais, com o intuito, desde já, de negociação polÃtica dos termos do ajuste fiscal e seus impactos sobre polÃticas públicas como educação e saúde e, logo mais, dos termos de uma distribuição social o menos regressiva possÃvel dos custos presentes e futuros de prováveis reformas liberais da previdência social e a das relações reguladoras do mundo do trabalho.
O que predomina, contudo, nessas primeiras semanas, são ações de contestação que desafiam limites da ética republicana e da convivência democrática e tentativas canhestras de usar fatos (quando não se produzem factoides) para pregar quaresmas, como nas exonerações a jato de ministros do governo interino. Seria preferÃvel que, em vez disso, pudesse continuar havendo acobertamento, como a do ministro da educação do governo afastado ao ser flagrado oferecendo dinheiro pelo silêncio do então senador DelcÃdio Amaral? E seria necessário, ou útil, contar, com objetivos de comparação, o número de pessoas, investigadas ou citadas por delatores, que acessaram o ministério, ou nele se mantiveram, nos dois governos?
Sem maquiar versões, percepções e opiniões como se fossem fatos e verdades, pode-se dizer, com base nesse tipo de indicador (maior ou menor exposição à Lava Jato ou ao STF) que não há diferença relevante entre os governos Dilma e Temer. E daÃ? Opiniões mais bem informadas e dotadas de saudável ceticismo analÃtico sabem que o conjunto dos operadores polÃticos vinha agindo dentro de uma lógica sistêmica, digamos, pouco republicana. Ao lidar discursivamente com ética e corrupção e com as imprescindÃveis apurações e punições, é preciso ponderar e distinguir essa circunstância "geral" das condutas de operadores que, agindo em proveito próprio, ou de um grupo, o fizeram para além desse constrangimento sistêmico.
Tornou-se cansativo dizer, com razão, que a Lava Jato e o conjunto das instituições de controle têm papel positivo crucial para a compreensão e a solução da crise ética e polÃtica. E para serem eficazes, seus freios de arrumação deverão estar associados - como em geral estão - com vigilância institucional permanente. Mas a sociedade que sustenta o Sistema de Justiça irá mal se se deixar encantar pela metáfora da faxina geral. Em sua intransigência primária, essa metáfora ignora o fato de que, dentro de regras democráticas, uma elite polÃtica nova e melhor não surgirá das cinzas da atual. Quadros polÃticos, dirigentes e militantes de partidos (PT e PMDB incluÃdos) e essas instituições mesmas, com as experiências negativas e positivas que acumularam antes e durante a crise, têm papel a cumprir em virtual renovação da polÃtica brasileira. Se não são nem poderiam ser santos, também não podem ser simploriamente reduzidos a quadrilhas de malfeitores.
A polÃtica democrática é opção por uma visão de mundo que não faz noções de legitimidade e ilegitimidade derivarem, sem mediações, das de bem e de mal. Felizmente para nós (essa é a razão que justifica moderado otimismo no atacado, apesar das mazelas do varejo), desde 1988, a mediação mais efetiva tem sido feita pelo direito acolhido na Constituição e por instituições que ela consagrou e não por esse ou aquele governo, supostamente dotado de DNA ideológico, polÃtico ou moral, pelo qual ele procure se autodefinir. É essa nova condição, incompatÃvel com qualquer seletividade arbitrária ou facciosa, partidária ou não, que cumpre preservar e pode se firmar como nova tradição polÃtica, para avançar na democracia, na cultura pluralista, na prosperidade material com responsabilidade fiscal e ambiental e na aspiração, não só de inclusão social, mas de redução sustentável de desigualdades sociais. É um horizonte novo e promissor de nossa república.
Mas análises e avaliações mais imediatas e factuais sobre possibilidades de superação do atual impasse polÃtico pedem critério mais modesto: o da possibilidade de um governo obter articulação e apoio polÃtico e parlamentar para governar. Fique claro que se trata de fazer isso com idas e vindas, avanços e recuos, em conjuntura que é - obviamente e compreensivelmente - favorável ao chamado campo conservador. Isso em razão, principalmente, de consequências sociais da polÃtica de um governo afastado que, simbolicamente (embora não tão substancialmente, muito menos procedimentalmente), se identificou como de esquerda.
Para ilustrar essa ideia recorro aqui a uma reiterada analogia que se tem feito entre o governo Temer e o governo Sarney, raciocÃnio sempre feito com base no que foram mazelas daquele passado e no que se julgam ser as do presente. Com ressalva quanto aos riscos de anacronismo histórico intrÃnsecos a analogias desse tipo, lembro um aspecto sugestivo que vai além do protagonismo do PMDB, comum aos dois contextos. É que circunstâncias polÃticas impuseram focos monotemáticos à s respectivas missões de ambos os governos.
A memória do Governo Sarney mostra, por um lado, conservadorismo na cultura polÃtica patrimonialista, amadorismo técnico no trato de polÃticas públicas setoriais e fracasso na sustentabilidade de uma polÃtica econômica coerente. Tudo isso fez daquele governo vidraça quando vieram as eleições presidenciais de 1989. Mas a memória completa mostra também que ele entregou a encomenda mais relevante que recebeu da sociedade (e não das urnas, é bom lembrar), que foi conduzir e garantir a conclusão da transição democrática, retirando do caminho o que então se chamava de entulho autoritário para permitir a emergência de uma nova ordem polÃtica, democrática, da qual a Carta de 1988 é o documento decisivo e a força mais concreta e duradoura.
Se os fatos vierem mesmo a autorizar a analogia (e isso é só uma hipótese, não uma profecia), a memória do governo Temer poderá ter semelhante perfil, de variadas mazelas, seguidas de reprovação eleitoral em 2018, e, por outro lado, a entrega da sua encomenda principal, monotemática também, embora diferente da do Governo Sarney. Agora não se trata de dar à luz uma nova ordem polÃtica, pois a ordem democrática resplandece no vigor da legitimidade polÃtica da Constituição de 88. Por isso sumiram da agenda propostas (seriam golpistas?), como a de um constituinte "exclusiva". Trata-se agora é de levar esse sistema polÃtico disperso e pouco legitimado, que subjaz no âmbito de uma ordem polÃtica forte e muito legÃtima, a produzir decisões legislativas que permitam, mediante ajustes emergenciais e uma polÃtica econômica continuada, tirar o paÃs do fundo do buraco econômico e social em que foi atirado.
A coalizão parlamentar, a composição ministerial, a imagem simbólica transmitida e os solavancos cotidianos do governo interino refletem, de diversos modos, essa encomenda. Se ela for entregue, estaremos conversados, sem embargo de juÃzos crÃticos sobre tantos outros aspectos, importantes, decerto, mas não tão emergenciais, em termos de prazo. JuÃzos que informarão a opção vencedora e as perdedoras, junto ao eleitorado em 2018, num possÃvel ambiente de debate polÃtico, não de briga de turmas, como ocorreria numa eleição hoje, que potencializaria a retórica da intransigência e tenderia a reproduzir a polÃtica do impasse. Caso Temer e sua coalizão entreguem mais do que a encomenda estrita que receberam, sob suspeita, aà será um inesperado superávit extraeconômico, de previsÃvel apelo eleitoral. Seria do jogo democrático também.
Por esse critério polÃtico indicativo, a substituição do governo Dilma pelo de Temer coloca o Brasil mais perto (ou menos longe) da possibilidade de chegar a 2018 com chance de, pelas urnas, pelos movimentos e pelas instituições, encontrar um caminho mais seguro para prosseguir na democratização da sua democracia. O desafio é remeter à história esse momento de instabilidade e constrangimento da vida pública, promovido por ações e inações nada inocentes de agentes polÃticos, no Executivo, no Legislativo, em partidos e empresas, e por omissões de muitos intelectuais e ativistas atrelados, por opção ideológica ou pragmatismo polÃtico e existencial, a uma visão dicotômica e/ou corporativa do mundo.
Mudança mais decisiva poderá vir a ser uma reorientação dos interesses sociais e polÃticos conflitantes, no sentido da transigência democrática. Isso ampliaria horizontes da elite polÃtica e de uma cidadania "comum", que vinha se dispensando de maior participação na vida pública. Nos embates da crise, a parte mais jovem dessa cidadania, curiosa e ciosa de direitos individuais e coletivos, está tendo de tocar música sem partitura polÃtica, ou está sendo treinada para a participação polÃtica e social nos limites impostos pela retórica intransigente daquela visão anacrônica. Com isso é duvidoso que essa mudança ocorra, ao menos em prazo curto. Para acontecer, ela dependerá, entre outras coisas, de haver tempo e espaços para um aprendizado intensivo, teórico e prático, de como sustentar e ampliar direitos pelo método polÃtico da transigência. Fora, é claro, do Judiciário e instituições de controle, que adotam e devem seguir adotando outra pedagogia, a do dever republicano, que acolhe e ambienta a transigência democrática, sem com ela se confundir.
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Paulo Fábio Dantas Neto é cientista polÃtico e professor da UFBA.
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