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Vitoriosos da globalização

Ricardo Abramovay - Maio 2016
 

Branko Milanovic. Global Inequality: A New Approach for the Age of Globalization. Belknap Press, 320 p., US$ 20,44.

A desigualdade global de renda diminuiu nos últimos vinte anos, contrariando a tendência mais que secular de sua elevação. A aparente boa notícia, porém, nem de longe, sinaliza que o mundo do Século XXI está se preparando para reduzir a imensa disparidade na apropriação de sua crescente riqueza. Este novo livro de Branko Milanovic, economista norte-americano e pesquisador sênior do Banco Mundial, reúne os resultados de 600 levantamentos domiciliares, realizados em 120 países, cobrindo 90% da população mundial entre 1988 e 2011. Além disso, ele se volta a estudos históricos que permitiram traçar o panorama da evolução global da desigualdade nos últimos 500 anos.

O resultado é um trabalho, ao mesmo tempo, denso em informações, didático e, sobretudo, capaz de apontar tendências, levantar questões teóricas e políticas de imensa atualidade. São três os movimentos subjacentes à redução da desigualdade global de renda.

O primeiro é a recente formação de uma classe média asiática, não só na China, mas também na Índia, na Indonésia e no Vietnã. Na China, por exemplo, dividindo-se a população entre os 50% mais ricos e os 50% mais pobres, os maiores ganhos de renda estão entre os que se encontram exatamente no centro desta divisão, no que os estatísticos chamam de mediana: entre 1988 e 2008, sua renda real per capita cresceu nada menos que três vezes no meio urbano e 2,2 vezes no meio rural. E em virtude do tamanho da população asiática, este resultado tem incidência global: os segmentos do quinto ou do sexto décimo da distribuição global de renda ampliaram de forma notável seus ganhos. Claro que, para isso, as conhecidas conquistas latino-americanas contam, mas o essencial deste processo inegavelmente virtuoso concentrou-se na Ásia. Aí está parte expressiva dos vitoriosos da globalização.

O segundo movimento vai num sentido oposto. A classe média dos países mais ricos do mundo sofreu perdas inéditas e, sobretudo, inesperadas. Afinal, foi justamente em nome da prosperidade desta classe média que Margareth Thatcher (1925-2013) e Ronald Reagan (1911-2004) inauguraram as políticas de benefícios fiscais aos detentores de grandes fortunas, sob o argumento de que isso traria investimentos, empregos e, portanto, bem-estar.

O tiro saiu pela culatra: a partir dos anos 1980, a junção entre o início da era digital e o avanço da globalização teve efeito devastador sobre a principal fonte de renda da classe média dos países ricos, ou seja, o trabalho assalariado. A revolução digital provocou aumento na remuneração do trabalho mais qualificado e, ao mesmo tempo, promoveu (e continua a promover) a substituição das atividades rotineiras seja por máquinas, seja por trabalhadores de países asiáticos. Com isso, a demanda de trabalho nos países desenvolvidos desloca-se para o setor de serviços. O problema é que o setor de serviços é muito mais heterogêneo que a manufatura nas habilidades que requer e na remuneração que propicia.

As disparidades salariais aí cresceram mais que na indústria e, claro, somente uma pequena minoria teve acesso aos postos de maiores ganhos. Como se sabe, os serviços se apoiam em unidades menores e mais dispersas que as da indústria. Com isso, a organização sindical que pressionou os salários para cima durante os anos em que o crescimento econômico foi acompanhado por distribuição de renda nos países desenvolvidos (basicamente entre 1929 e meados dos anos 1970) simplesmente esvaneceu.

O importante é que este conjunto de fatores não se refere a especificidades nacionais, mas marca de forma generalizada a distribuição global de renda. A classe média dos países ricos é a principal perdedora da globalização e da inovação tecnológica trazida pela sociedade da informação em rede. Mas os grandes ganhadores deste processo não são, nem de longe, a nova classe média asiática, apesar de suas conquistas recentes. Seus padrões de vida e seu nível de consumo não chegam nem perto daqueles que caracterizam as classes médias dos países mais abastados.

Como isso é possível, diante do imenso crescimento de sua renda? É que o ponto de partida na Ásia era muito baixo. Portanto, duplicando ou triplicando sua renda em vinte anos, a classe média asiática escapou da miséria absoluta, mas, quando comparada aos padrões ocidentais, vive ainda em situação de pobreza. Hoje a classe média chinesa tem padrão de consumo ainda inferior à dos países de mais baixa renda da Europa Oriental. Os 20% mais ricos da China não alcançam os níveis de consumo dos 20% mais pobres dos EUA.

É importante lembrar, neste sentido, que na Europa Ocidental, nos EUA e no Japão o que ocorreu não foi tanto uma perda absoluta de renda da classe média, mas sua estagnação. E esta estagnação não seria politicamente chocante se não fosse acompanhada por uma impressionante concentração dos ganhos do crescimento econômico nas mãos de uma ínfima e poderosa minoria.

Este talvez seja o aspecto crucial do livro de Milanovic: forma-se uma plutocracia global, cuja riqueza e cujo poder não têm precedentes na histórica moderna. Seus membros são os que mais ganhos acumularam nos últimos anos, os verdadeiros vitoriosos da globalização e da revolução digital. Eles são os famosos componentes do 1% de maior renda que formam o topo da pirâmide global.

Ao todo são 70 milhões de pessoas, mais que a população da França. Metade deles reside nos EUA, o que significa que 12% da população norte-americana fazem parte deste pequeno grupo. 9% dos suíços e 7% dos canadenses também aí se incluem. Brasil, Rússia e África do Sul têm 1% de sua população neste seleto grupo. Ou seja, a cobertura do andar de cima é composta sobretudo pelos mais ricos dos países mais ricos. E os dados de Milanovic mostram que este segmento perdeu algo de sua renda com a crise de 2008.

O mesmo, entretanto, não parece ter ocorrido com a parcela superior desses 1%. Para analisá-la, Milanovic recorre a informações não apenas de renda, mas também de patrimônio. Ao mesmo tempo ele diversifica suas fontes de análise, pois as pesquisas domiciliares não conseguem captar esta ínfima fração, a cobertura da cobertura do topo da pirâmide, um centésimo de um centésimo do 1% mais rico. Em 1987, havia no mundo 145 bilionários com uma riqueza total de US$ 450 bilhões. Os bi-bilionários de 2013 (que, em termos reais, correspondem ao que controlavam os bilionários de 1997) aumentaram para 735 e sua riqueza, em termos reais, subiu para US$ 2,25 trilhões em dólares de 1987. Enquanto o PIB global aumentou 2,25 vezes entre 1987 e 2013, a riqueza (e não só a renda) desta ínfima fração dos mais ricos cresceu cinco vezes. Sua participação no PIB global aumenta de 3% para 6% entre 1987 e 2013.

A principal consequência teórica da obra de Milanovic é a contestação da mais consagrada teoria econômica sobre a evolução da desigualdade, elaborada pelo prêmio Nobel Simon Kusnetz: os dados dos países desenvolvidos desmentem tragicamente a ideia de que a desigualdade aumenta no início da industrialização, caindo e se estabilizando em seguida. Daí a ideia teórica mais importante de Milanovic: não há propriamente uma curva de Kusnetz, mas ondas ou ciclos de aumento e de redução da desigualdade ao longo do tempo.

Do ponto de vista político, Milanovic traz duas contribuições importantes: a primeira mostra a ligação entre o declínio da classe média ocidental e a ascensão vertiginosa do populismo (sobretudo de direita) nos países mais desenvolvidos e de maior tradição democrática do Planeta. A segunda é bem diferente daquela em que Thomas Piketty insistiu tanto em seu consagrado livro: por mais importantes que sejam as políticas de taxação e de transferência de renda, elas têm alcance limitado em função da própria globalização financeira. Muito melhor é empenhar-se em equalizar as dotações de ativos e a educação. Pode parecer pouco, mas se levada adiante é uma orientação com o potencial de distribuir a riqueza e abrir caminho para uma sociedade menos desigual ao longo do Século XXI.

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Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP e autor de Beyond the Green Economy (Routledge, 2016).

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Fonte: Valor, 29 abr. 2016.

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