Congresso, partidos organizados para disputar eleições e polÃticos profissionais eleitos: instituições com prestÃgio baixo e cadente no Brasil e, em graus variados, em todos os paÃses democráticos. É tarefa inglória defendê-los nos dias que correm. E, no entanto, por isso mesmo, é hora de fazê-lo, pois elas constituem um trio indispensável à democracia representativa. Para que não se interprete como uma defesa indiscriminada do nosso sistema polÃtico, cabe ganhar uma certa perspectiva histórica para só depois chegar à cena brasileira atual.
Comecemos pela identificação dos principais inimigos históricos da democracia representativa: os movimentos e regimes nazifascistas e comunistas que marcaram o século 20 com um longo e largo rastro de sangue.
Com a vitória sobre o nazifascismo em 1945 e o colapso do socialismo real em 1991, a democracia representativa triunfou como valor, impondo-se sobre seus inimigos "externos" no plano das ideias e da polÃtica. Num paradoxo apenas aparente, passou então a ser assombrada por seus próprios fantasmas. Sem o contraste com os regimes totalitários, os seus defeitos e imperfeições se tornaram mais visÃveis: as tendências à oligarquização dos partidos, à captura dos sistemas polÃticos por "interesses especiais", ao descolamento entre os polÃticos profissionais e os cidadãos comuns.
Nos últimos anos, o desencanto com a democracia se espalhou pelo mundo (e não apenas nos paÃses mais afetados pela crise financeira de 2007/2008, o que mostra não ser a economia o único fator a explicá-lo). Ele produziu dois efeitos de sinais opostos: de um lado, a rejeição à polÃtica, vista como uma atividade intrinsecamente nociva à sociedade; de outro, uma adesão à polÃtica de alta intensidade, em crÃtica frontal aos Parlamentos, partidos e polÃticos profissionais, em nome da participação direta dos cidadãos nas decisões de governo.
Na América Latina, onde já se enfraquecia a memória das ditaduras militares, deu-se o mesmo fenômeno. A partir do final da década de 1990, o desencanto com a democracia tomou o caminho da "polÃtica de alta intensidade" naqueles paÃses em que o sistema partidário anterior colapsou sob o peso de crises agudas na economia e na representação polÃtica. Surfando a onda global de crÃtica à democracia representativa, movimentos e governos de orientação "bolivariana" adotaram mecanismos de representação direta e formas de mobilização popular que, sob o pretexto de torná-la mais autêntica, submeteram a democracia representativa ao seu projeto hegemônico. Quem mais longe levou esse experimento foi o chavismo, a tal ponto que a Venezuela é hoje uma autocracia com alguns disfarces formais.
O Brasil seguiu uma trajetória distinta. Ao chegar ao poder, o PT encontrou um sistema de partidos comparativamente mais estruturado, no qual ele próprio desempenhava um papel importante, operando no âmbito de instituições polÃticas e jurÃdicas de melhor qualidade. A aprovação da cláusula de barreira em 1995, com previsão de entrada em vigor dez anos depois, parecia apontar para a evolução positiva do sistema partidário. Uma combinação de fatores, porém, levou-o à degeneração progressiva, entre eles a desafortunada decisão do STF de derrubar a cláusula de barreira.
Não se pode atribuir a degeneração do sistema polÃtico-partidário inteiramente aos governos do PT, mas é inegável a sua responsabilidade nesse processo (anabolizando legendas de aluguel, organizando em escala sem precedente a acoplagem do financiamento de campanha à corrupção nas estatais e em empresas privadas prestadoras de serviços à s estatais, etc). Embora tenham cuidado de manter ativa e bem financiada a sua base militante organizada e buscado avançar na construção de conselhos dominados por "representantes da sociedade civil" ligados ao partido, os governos petistas não chegaram a ser "bolivarianos". Mais do que adesão à polÃtica de alta intensidade, apostaram na expansão do consumo para ampliar e manter seu apoio na sociedade.
Hoje temos um sistema polÃtico-partidário em frangalhos e uma sociedade frustrada com a quebra das expectativas de mais consumo (e melhores serviços públicos). Majoritariamente, ela rejeita a polÃtica e os polÃticos. Rejeição que só faz crescer à medida que a Lava Jato expõe as entranhas desse sistema polÃtico-partidário.
Sem dúvida, a sociedade deve estar atenta à s tentativas de barrá-la ou limitar o seu alcance. Todavia, deve estar atenta também ao risco de que os fatos e versões decorrentes das investigações sejam instrumentalizados para fazer afundar em descrédito generalizado o Congresso, os partidos e os polÃticos profissionais, indiscriminadamente. Jogar tudo e todos na vala comum não fará o PaÃs avançar na construção de uma democracia melhor.
A ideia de que um sistema polÃtico regenerado nascerá da destruição completa do atual é ilusória e perigosa, quando não autoritária. Trata-se, isto sim, de reformá-lo com objetivo de aperfeiçoar a democracia representativa, processo que não se dará da noite para o dia. Seu aperfeiçoamento deverá incorporar formas inovadoras de participação dos cidadãos na polÃtica, para tornar mais transparentes, fidedignas e sensÃveis à sociedade as formas clássicas da representação, não para substituÃ-las. Parte (a menor parte, é verdade) dos partidos e dos polÃticos existentes é fundamental para que esse processo se dê com sucesso.
Com a Lava Jato chegando à sua temperatura máxima e o prestÃgio do sistema polÃtico ao seu ponto mais baixo, a sociedade brasileira será exigida em sua capacidade crÃtica e senso de proporção. À justiça cabe julgar com base em provas. Aos cidadãos, definir pelo voto e pela pressão sobre o sistema polÃtico quem merece cartão vermelho, cartão amarelo ou simples advertência verbal. A todos nós cabe nos empenhar para que o jogo democrático continue a ser jogado, com melhores regras e maior qualidade.
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Sergio Fausto é superintendente executivo do iFHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, e membro do Gacint-USP.
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