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Os Diários da Presidência FHC

Paulo Timm - Agosto 2016
 

Fernando Henrique Cardoso. Diários da Presidência 1995-1996 (v. 1). São Paulo: Companhia das Letras, 2015. 928p.

Política não se faz apenas afirmando o que é certo e o que é errado, mas articulando as forças capazes de provocar modificações (Diários 1995-1996, p. 55).

Diários, que eu saiba, nunca constituem uma leitura muito prazerosa. São muito extensos, repetitivos, cansam o leitor. À exceção, talvez, dos diários de viagens, alimentados por impressões pessoais, paisagens deslumbrantes e descrições tão interessantes que os elevam a gênero literário, quando revelam os desígnios da luta do homem na vida. Isso não ocorre com os Diários de FHC, embora esteja, aí, a luta dele, como líder, numa viagem de ida, como quem atravessa o Atlântico por vez primeira. Digo-o sem pretender ferir susceptibilidades. Ele, afinal, é um escritor consagrado. Presidente da República por dois mandatos. Quem sou eu...? Há, por certo, momentos nos Diários de FHC dignos de deleite. Raros. Vou transcrever alguns. E há a p. 687, que não reproduzirei, deixando-a à curiosidade do leitor. Marcante. O resto, quase 900 páginas, é diário de bordo mesmo:

Ontem despachei com os ministros tal e qual, segunda fui a São Paulo. Meu Deus, como é difícil! Coordenar o Congresso e forças políticas, cuidar de uma administração gigantesca, enfrentar uma agenda diária de receber credenciais e dignitários do mundo inteiro, receber sem parar empresários e políticos que trazem consigo gentes sem qualquer relevância, aparar arestas dos ministros, o nhem-nhem-nhem de sempre. Jantamos eu e Ruth sozinhos. [...] Uma verdadeira moenda de dias sem fim.

Quer dizer, um pouco essa disputa da PUC do Rio para mostrar que é ortodoxa, quer segurar o câmbio e o déficit, e diz que os outros são gastadores. A coisa é um pouco infantil (p. 651).

Ainda assim, acho os Diários uma leitura indispensável a estudantes de Ciências Políticas, História e Comunicação Social, para não falar dos políticos em geral, pois é um testemunho sem entrelinhas de um dos presidentes mais importantes da história republicana do Brasil. Tem uma linguagem franca e direta, sempre muito civilizada, comme il faut, que revela a disciplina rigorosa do acadêmico. Não perde tempo. Permite-se poucos momentos de relaxamento. Nenhum dia passa em branco e, quando passa, é reconstituído no relato da semana.

Mas advirto-os, jovens estudantes dos cursos assinalados: FHC é implacável com jornalistas. E reclama dos cientistas políticos pela falta de análises de processos. Nada fala contra os sociólogos, seus colegas, mas não por corporativismo. É que naquela época - ainda hoje - não se percebia a presença forte destes profissionais nos círculos de governo, mídia ou opinião pública. À exceção, talvez, de Luciano Martins e Vilmar Faria, este muito próximo, para não falar de Da. Ruth Cardoso, que volta e meia lhe proporcionavam um momento de fuga dos compromissos para uma reflexão acadêmica sobre legitimidade do Governo. Deveriam, aliás, ter sacudido mais as sólidas convicções do Presidente. Nem precisava arrancarem-lhe os olhos da cara, bastaria tê-los aberto um pouco mais.

Luciano [Martins] insiste que o Real está se esgotando como fonte legitimadora, que é preciso algum outro processo simbólico de integração, coisa que eu também digo e digo sempre. O Vilmar e Ruth insistem muito que não basta o simbólico, que tem que haver processos efetivos que liguem essa sociedade fragmentada, educação, saúde etc. Uma discussão bastante estimulante (p. 669-70).
Quanto aos jornalistas, porém, vale um parágrafo. FHC não os ataca diretamente enquanto profissionais. Prefere reclamar da imprensa em geral. Mas não perde oportunidade para, traindo-se no desprezo que lhes devota, fulminar uma jovem que viria a ser reconhecida comentarista: Cristiana Lobo, no começo da carreira:
O Lula posando outra vez de herói nacional e, no Estado de S. Paulo, a fotografia dele na coluna da Cristiana Lobo com uma frasesinha: "Ser professor de ciência política não significa saber política". Enfim, essa coisa deprimente, essa mediocridade que faz com que gente que não tem proposta para o país encontre logo acolhida na mídia (p. 107).
Pior, não perdoa sequer o grande nome do jornalismo político, "Carlinhos" Castelo Branco, já falecido à época, tratando-o como um tipo nada mais do que folclórico, ou melhor, compatível com o folclore político:
O Castelinho poderia, hoje, escrever coisas bem interessantes, ao estilo dele. Se bem que acho que ele não iria gostar; o Castelo também era um homem desse meio, do jantar à noite para ouvir intriga, e a política era o desfiar de um sem-fim de pequenas conversas, pequenas intrigas, como ele próprio retrata no livro sobre o Jânio [Quadros]. O Brasil mudou bastante e para melhor (p. 883).
Mas não se preocupem, a pena do ex-presidente desliza com acidez sobre muitas outras vacas sagradas da República. Comentando um dia de folga, dedicado à leitura, pega no pé de Roberto Campos, advertindo-o de criticar sem ter lido o livro dele e Enzo Faletto, Desenvolvimento e dependência, e desdenha de Delfim Netto e Celso Pastore, talvez por classificá-los como modernos "peritos contadores":
[...] li também uns bons trechos de um livro que o Malan me deu, com entrevistas com economistas brasileiros [Conversas com economistas brasileiros, São Paulo: Ed. 34, 1996]. Li uma do Roberto Campos, muito boa. Ele faz a história recente do pensamento econômico, do desenvolvimento do Brasil e das posições dele. Claro, a mim ele faz uma enorme injustiça no caso de Desenvolvimento e dependência. Acho que ele nunca leu o livro, ele me critica como se eu fosse um "dependentista". Li a do Celso Furtado, equilibrado como sempre, folheei de quase todos, do Pérsio, do André Lara, não li a do Delfim nem a do [Affonso Celso] Pastore, que pode ser um bom técnico, mas é intelectualmente menos fecundo (p. 885).

Mas, enfim, como abordar um diário de bordo?

Primeiro, situando-o no seu tempo. Anos 90. Esta foi uma década crucial ao final do século XX, uma verdadeira dobradiça da modernidade no rumo do terceiro milênio. O mundo entrava na era da Terceira Revolução Industrial - eletrônica -, dando os primeiros passos no rumo da interconectividade total da reconstituída aldeia. Do ponto de vista político, um ano antes, em 1989, caíra o Muro de Berlim, abrindo passo para a desagregação do bloco soviético liderado pela URSS, consumada em 1991. Era o fim da Guerra Fria. Isso não só fortaleceu os Estados Unidos como potência, mas como fonte de inspiração ideológica no mundo inteiro sob a batuta de Margareth Thatcher, na Grã-Bretanha, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. O ideário socialista estava em baixa e a globalização, como única alternativa para o aprofundamento da modernização, passava a ser a senha mágica desta Nova Era.

Tudo isso contribuiu para uma certa convergência ideológica do reformismo europeu, que alimentara o Estado de Bem-Estar no continente, com o liberalismo, em nome do que se chamou de Terceira Via, à qual aderem partidos, movimentos e lideranças da América Latina: o peronismo, com Menem, na Argentina, e o Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB - , liderado, justamente, por Fernando Henrique Cardoso. Ainda assim, FHC tem uma visão possibilista da globalização, fruto de sua formação na Sociologia da USP, que não descuidava das leituras tanto de Marx e Durkheim, como, principalmente, Max Weber. Em várias passagens dos Diários ele deixa isso claro, evidenciando a necessidade de construir uma globalização sem exclusão, como neste encontro com R. Ruggiero, em 1996:

À tarde conversei com Renato Ruggiero, que é diretor-geral da Organização Mundial do Comércio [...]. Eu disse a ele: "O problema é a exclusão, não a globalização; a globalização está aí, a grande questão é saber se ela vai ser totalmente excludente, mais ou menos excludente ou includente. O que vai acontecer com a África, com partes do mundo que se desenvolvem? Como vão se integrar?". Ele acha que a África está avançando bastante. É a primeira vez que ouço uma observação desse tipo. Vou prestar mais atenção na África (p. 743).
Tampouco mergulhou FHC de cabeça na máxima do "fim da História" que acompanhou a década de 90. Ele acreditava, sim, na globalização como um umbral inédito e inevitável da expansão do capitalismo, mas sabia-o dominado pela financeirização e dos riscos que isso representava. Chega a ser profética sua visão nesta passagem, num encontro com Joseph Safra, no dia 7 de agosto de 1997, principalmente se comparada à afirmação de Lula, já no auge da crise de 2008, interpretando-a como "marolinha":
Olha, se vier crise, é crise grande, porque o mundo virou um grande cassino com os derivativos, e não há governo mundial. Se houver aí um desaguisado, [...] vai ser muito difícil controlar as consequências (p. 683).

Note-se: ninguém falava em "derivativos" nesta época...

E uma curiosidade, também, na tentativa de situar FHC na corrente neoliberal que, mesmo fortemente repudiada por ele, acabaria envolvendo-o: a questão do Estado. Sua visão estratégica, apesar da promoção da privatização, não era a de perseguir um Estado mínimo nem a de acreditar que o Brasil tivesse um excesso de Estado, mas, sim, de burocracia e poder corporativo em suas várias agências e corpos funcionais, os quais tinham que ser limitados. Deixa isso claro em várias momentos:

O desaparelhamento do Estado brasileiro é patético (p. 111).

Agora, vamos aos Diários.

Ponto de partida: tomá-lo em sua especifidade, pelo que é: um relato. Não farei aqui nenhuma avaliação do significado de FHC na vida pública do país. Fico com o relato para descobrir, nele, alguma pista de seu estilo de governança, de seus defeitos e virtudes pessoais, de suas preferências políticas.

A primeira impressão que me ocorre é a de que Fernando Henrique pode ter até pensado em ser papa na juventude, mas dificilmente pensou que chegaria a presidente da República. Não estava nas suas intenções, embora seja uma ambição de qualquer mortal ganhar na megassena, ser campeão olímpico ou chegar a ser rei. Fernando Henrique deixa evidente, o tempo todo, que não gosta do cotidiano da política que ele chama de "pequena", coalhada de interesses vulgares e intrigas intestinas. Chega, inclusive, em alguns momentos, ao que vejo como a revelação mais crua e negativa de sua postura política, resvalando para uma concepção próxima da que os gaúchos republicanos da primeira hora defendiam, com os quais seu avô lutou, ao lado do pai de Getúlio Vargas: o quase desprezo pelo Congresso:

É que o Congresso perdeu o sentido neste mundo contemporâneo; quinhentos deputados sem função tendo reunião todos os dias na Câmara. Eles não acompanham direito a política, não podem. Uns não demonstram interesse, outros não têm condição, e para o Governo é impossível estar a toda hora passando informações. É um sistema que ainda não está bem, digamos assim, fluido - não o relacionamento do Congresso com o Executivo, mas o do Congresso com a sociedade (p. 867).

O fato de eu ter me tornado presidente, já disse, não foi porque eu quisesse isso ou aquilo ou porque tinha mudado o Brasil. Ao contrário, o Brasil é que mudou! E mudou tanto que até foi possível que uma pessoa como eu, que na verdade não tem nada a ver nem com Tancredo, nem com Ulysses, nem com o Quércia, nem com essa paixão pela miudeza do cotidiano do Congresso - eu nunca tive essa paixão - viesse a ser presidente [...]. O Brasil mudou bastante e para melhor (p. 883).

Aqui, então, outro ponto a destacar: a crença de FHC de que o Brasil havia mudado, e para melhor. Ao longo de todas as anotações, ele reafirma esta quase obsessão, embora sempre pontilhada pelos contratempos e evidências em contrário. Há momentos, inclusive, em que parece que ele, exausto, vai reconhecer isso, mas depois volta à miragem.
Estou ficando cansado de insistir, insistir, insistir... (p. 831). [...] É cansativo, as pessoas não mudam. Já disse isso mais de uma vez: certas pessoas não foram socializadas para a grande cena política, para o grande jogo de poder, e estão metidas nele (p. 833).
Daí um suspiro de indignação:
É curioso, quando há uma grande mudança as pessoas se perdem nela e se mantêm fixadas no passado (p. 701).
Onde estaria, se está, o erro de FHC? Na incompreensão, talvez, de que ele fora muito mais o resultado das condições de possibilidade ditadas pelas circunstâncias do que a consequência direta de grandes mudanças no país e no sistema político. Ele foi aquilo que denominamos o cara certo na hora certa. Havia uma transição em curso, acelerada pela Constituição de 1988, com nítido desgaste das lideranças conservadoras oriundas do período militar. Elas tiveram a sabedoria de escolhê-lo para barrar o avanço da esquerda naquele momento. Até seu próprio partido, o PSDB, tinha que ser permanentemente ajustado ao papel idealizado por FHC, dada a tendência inevitável a se igualar aos demais aliados.
[...] tanto no presente como no futuro só haverá governabilidade com esses três: PFL, PMDB e PSDB, mais ou menos entendidos, e que a posição do PSDB deve ser de hegemonia gramsciana, ou seja, ser um partido que propõe o futuro, que tem convicções, que apoia reformas, e não que disputa mais um cargo aqui, outro ali (p. 721).
Ah, se fosse realmente isso...!

Esta "positividade" do ex-Presidente, que se vê - e ao seu partido - como um grande avanço na política, guiou-se, no início do governo, para uma certa ingenuidade sobre o real funcionamento da administração no Brasil. Ao indicar o Ministério, respira, meio aliviado:
O Clóvis coordena a ação administrativa, o Serra coordena os resultados, e o Malan coordena o fluxo financeiro (p. 49).
E insiste, ainda um ano depois:
[...] ganhamos o governo, porque tínhamos um projeto e, gramscianamente, nós somos hegemônicos. Nós é que tivemos e temos a capacidade de apresentar uma alternativa viável para o Brasil, por isso ganhamos. Nós não ganhamos porque tínhamos votos; ganhamos porque tínhamos caminho (p. 668-9).
Ora, as coisas não funcionam assim e ele próprio vai se dando conta com o passar do tempo, até porque vai também mudando de opinião sobre muitas questões:
Fiz, então, um apelo: que todos estivessem à altura do momento histórico. Eu vi lá fora as enormes repercussões, até exageradas, do que estamos fazendo aqui. Está faltando grandeza. A Miriam Leitão usou esta expressão numa reunião que teve no exterior, dizendo que parecia que a equipe econômica não estava percebendo a mudança histórica que está acontecendo aqui. É verdade. Impressionante como eles não se sentem mordidos pela importância da obra que eles próprios fizeram. Talvez só o Gustavo Franco e o Pedro tivessem esse sentimento mais agudo. Mas, mesmo assim, por que ficarem, Pedro e Serra, nessa discussão menor? (p. 279-80)
Esta supervalorização do "Brasil mudou" por FHC teve consequências dramáticas não só para seu governo, como para a aspiração do PSDB de comandar o país por duas décadas. Veja-se este registro:
Agora no fim da tarde recebi o Philippe van Parijs com o Eduardo Suplicy. É o autor da teoria sobre renda mínima. Convidei várias .pessoas para discutir o assunto. [...] O principal, para ele, é que os programas têm que ser universais. Não se deve fazer grupos-alvo, porque isso não resolve. Eduardo estava muito animado porque parece que no Alasca fizeram uma distribuição de renda mínima, acho que de mil e poucos dólares para cada pessoa. No Brasil, se fizermos de 20 dólares por mês para cada pessoa, serão 240 dólares por ano, multiplica por 160 milhões vai dar mais de 30 bilhões de reais, que é o que se gasta com a Previdência Social. Então, são ideias um pouco vagas, que não vão longe (p. 800).

O que era isso? Nada mais, nada menos do que o embrião do Bolsa Família, instituído por Lula em 2003 e distribuído, até hoje, a cerca de 12 milhões de famílias, e um instrumento decisivo na legitimação de sua plataforma social. FHC recebeu o Senador Eduardo Suplicy como uma obrigação formal, não deu qualquer importância à ideia considerada "um pouco vaga", relegou-a ao esquecimento e só graças aos Diários temos a oportunidade de sabê-la ao seu alcance. Não que seu Governo fosse omisso às políticas sociais. Pelo contrário, houve até avanço, mesmo no campo das transferências, mas nunca com a audácia necessária para transformá-las em fato político decisivo. Pior, FHC faz mal as contas, como se fosse o caso de distribuir a "bolsa" de 20 dólares a 160 milhões de brasileiros, chegando a um montante anual equivalente ao gasto com a já claudicante Previdência Social. Ora, não era para tanto. Bastava alavancar o programa com 10 milhões de brasileiros carentes, elevando-o, como fez Lula, gradualmente, com os indicados 20 dólares, na medida das disponibilidades orçamentárias, estas muito longe do gasto previdenciário.

Enfim, eis o registro do excesso de confiança de FHC e que, malgrado sua indiscutível formação sobre a realidade brasileira, levou-o a perder, nesta terça-feira, dia 22 de outubro de 1996, a oportunidade de ter se consagrado junto à opinião pública. Este teria sido o grande salto da imagem de FHC: de homem que matou o facínora da hiperinflação para aquele que deu o passo significativo rumo a uma sociedade menos desigual, sem prejuízo ideológico à sua plataforma modernizadora, passo tão reivindicado por Ruth Cardoso, Vilmar Faria e Luciano Martins, e que lhe escapou pelo ralo do cotidiano. Teria aqui, sim, razão Cristiana Lobo em escrever que não basta ser doutor em politica para saber fazê-la...

Luciano [Martins] insiste que o Real está se esgotando como fonte legitimadora, que é preciso algum outro processo simbólico de integração, coisa que eu também digo e digo sempre. O Vilmar e Ruth insistem muito que não basta o simbólico, que tem que haver processos efetivos que liguem essa sociedade fragmentada, educação, saúde etc. Uma discussão bastante estimulante (p. 669-70).
Tivesse tido mais coragem e audácia com a adoção de uma política social mais ativa, FHC teria, certamente, não só consolidado uma base social mais ampla para seu partido, como queriam, aliás, alguns aliados do movimento sindical distantes da CUT/PT, como ter-se-a reconciliado melhor com sua consciência, sempre mais à esquerda do que suas ações. Não por acaso, por exemplo, se regozija do afago que lhe faz Fidel Castro, com cujo isolamento dá sinais de preocupação ao longo de várias páginas dos Diários, como por ocasião da Cúpula Ibero-Americana em Bariloche, em outubro de 1995:
Fidel Castro me cobriu de gentilezas. Queria saber como tinha ganhado do Lula, se mostrou muito interessado pelo Plano Real, sabia muito do Brasil, explicou que dissera que eu não era seu inimigo, saíram notícias dizendo isso, mas queria dizer o contrário, enfim, muito doce, muito expressivo (p. 274).

De qualquer forma, ressalte-se como virtude pessoal de FHC sua extrema sensibilidade para a avaliação psicológica das pessoas. Não tenho dúvida de que o melhor retrato, neste sentido, até pela frequência da convivência sobre assuntos complicados, é o que faz do ex-presidente José Sarney: ambíguo, pouco confiável, hábil até. Mas lhe concede uma qualidade: "intelectual como eu...". Isso deve ter contribuído para aliviar as mágoas diante das pouco favoráveis avaliações que lhe faz. Em sentido contrário, registro a extrema boa vontade de FHC com o ministro Paulo Renato, o que mais o frequentava, aparentemente, em família, e que é o mais bem tratado. Sempre registra o entusiasmo de Paulo Renato, enfeita-lhe a presença, reiterando exaustivamente que se está saindo muito bem à testa do Ministério da Educação. Fala bem das reformas encaminhadas, mas jamais as explica nem menciona. Tudo no ar. Pura subjetividade... Uma pena, pois FHC poderia ter deixado um legado muito maior, como professor, na educação. Preocupou-se muito mais, ao longo do governo, com a economia, um assunto que pouco dominava, e disso dá conta várias vezes: "Não compreendi bem...".

Diante de José Serra, porém, registra uma amizade concertada, com o cuidado, sempre, de evitar mal-entendidos, na percepção clara das melindrosas sutilezas do senador. Trata-o bem e o reconhece como um tocador, gosta dele como aquele amigo que permanece amigo "apesar" de conhecê-lo. Muito diferente da relação que tem com Pedro Malan, em quem tem absoluta confiança, mas se mostra irritado, às vezes, com sua reticência. Explica-se: são parecidos...

Com outros, sem nomear, porque lhe traria problemas, como Serjão e Bresser-Pereira, se exaspera diante da incapacidade de medirem suas palavras e aí vaticina, sem citar nomes:

É cansativo, as pessoas não mudam. Já disse isso mais de uma vez: certas pessoas não foram socializadas para a grande cena política, para o grande jogo de poder, e estão metidas nele (p. 833).
A grande sacação, porém, de FHC, nessa leitura dos personagens que o cercam na Presidência, foi quanto a Ciro Gomes. Vale registrar, pela precisão:
Acho ainda que, a despeito disso, o Ciro está tão complicado do ponto de vista pessoal que não vai poder fazer grandes coisas. [...] Ele é uma personalidade complicada, é precipitado, afirmativo, inteligente, tem coragem, mas é um pouco oportunista nas posições e não vai fundo nas questões (p. 679).
Mas, se abundam nomes de auxiliares próximos, ministros, deputados e senadores, militares de alta patente, embaixadores, é muito estranho que quase não apareçam nos Diários membros das Cortes Superiores. No caso do Procurador-Geral da República, então, que viria a ter papel tão significativo duas décadas depois, chega a ser hilário o comentário, se não francamente desabonador. Um presidente não tem que estar mais ou menos "satisfeito" com o desempenho do Procurador-Geral, que ficaria mais conhecido como "Engavetador-Geral da República":
Em seguida, recebi uma porção de pessoas [...]. Entre elas, Geraldo Brindeiro, procurador-geral, com quem conversei mais longamente. Ele tem agido com muita correção, estou satisfeito com seu desempenho (p. 876).
Vamos adiante, saltando dos maus momentos para uma passagem mais lírica, para finalizar esta resenha. Com isso, deixo o registro do trecho de que mais gostei nestes Diários:
No dia seguinte, [...] fomos para Iauaretê que significa "onça na cachoeira". A cachoeira das onças. Porque havia onças na região. Hoje não há mais nada. Lindíssimo o local. Fronteira com a Colômbia [...]. Extraordinário. E ali um pelotão, índios tucanos, índios de vários grupos que lá estão. A língua ou é o tucano ou a língua geral. Até hoje toda a população é indígena. Soldados: a metade é indígena. O pessoal do Exército ficou com um muito bom relacionamento com os índios. Entrei numa sala de aula onde se ensina tudo em tucano e em português. Todas as criancinhas, índias, as professoras também. Aquela coisa simples do Exército. Um tenente empertigado, casado com uma mocinha jovem, que veio do Ceará, ele também do Ceará. Um clima muito positivo lá no fim do Brasil. Me emocionou mesmo (p. 715-6).

Como balanço final, pois, dos Diários 1995-1996, fica a impressão do bom registro de um presidente diligente, atento aos assuntos internacionais e hábil na condução da política como exercício de agregação de forças para a obtenção de consensos, na base do "acocha aqui, arrocha acolá", além de um excelente observador de pessoas. Se deu certo como sociólogo, imagino como se sairia como psicólogo... Se algum defeito o Diário recolhe, é o do excesso de confiança do autor, fato acentuado pela sua própria condição de profundo conhecedor da sociedade brasileira. Mas excedeu-se no otimismo quanto ás mudanças do Brasil. Apostou demais tanto no cenário positivo da globalização como nas transformações da política nacional. Hoje, tenho certeza que atuaria com mais cuidado. Naquela altura, porém, apesar do pretenso distanciamento com que tratava seu objeto não só de análise, mas de intervenção, dobrou-se ao messianismo. Sua gestão enfrentou os contratempos da pax americana sobre a economia global, a qual acarretou diversos sobressaltos na esfera cambial; no plano interno, porém, salvo uma ou outra pressão maior do MST e de uns poucos arrufos em suas aparições públicas, o país se regozijava pelo acesso à asinha de frango.

A grande queixa de FHC nos Diários, aliás, não é contra a oposição, o PT ou até mesmo os movimentos sociais. É a verdadeira lamúria contra a imprensa, principalmente a Folha de S. Paulo, sempre identificada como um traço do passado, alimentando intrigas, inventando situações críticas. Não obstante isso, os anos 1995/1996 lhe deram a sensação, registrada nos Diários, de que tudo estava indo muito bem, o que é corroborado pelos comentários alvissareiros sobre os índices de aprovação do governo em pesquisas de opinião e sobre o apoio do Congresso. Foi isso que o animou a contragosto, segundo ele, para a emenda da reeleição. Acha-se bem, num país que crê renovado, e não encontra ninguém à altura da continuidade da obra.

Uma novidade, para mim, que quase me ia esquecendo: as dificuldades para disciplinar os protagonistas da área econômica, sempre envolvidos, embora "concernidos" da missão, na fogueira das vaidades e nas disputadas pessoais, com a evidência, da parte do ex-Presidente do seu relevante papel como árbitro. De resto, como frisa a letra da imortal melodia de Casablanca:

The fundamental things apply as time goes by.

E as coisas apareceram. Exagero? Talvez...

(Covilhã, Portugal, julho de 2016)

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Brasil, de Collor a Lula

O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e desenvolvimentismo



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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