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Allende – um golpe real

Paulo Fábio Dantas Neto - Setembro 2016
 

Embora 11 de setembro, para a maioria das pessoas, lembre mais o atentado de 2001 contra as torres gêmeas de New York, o fato que evoco aqui é o golpe de estado que, em 1973, derrubou o presidente chileno Salvador Allende. Foi um ato prenunciador e inaugural de um regime que revogou a política e, consequentemente, por quase 20 anos seguiu assassinando pessoas e liberdades naquele País; um golpe introdutório de uma ditadura que afogou em sangue a iniciativa de criar uma sociedade socialista pela via da democracia política, respeitando e valorizando instituições liberais e democráticas. Instituições que o jargão de um outro tipo de esquerda latino-americana (autoritária e obcecada por confrontos) costuma chamar de "burguesas", "oligárquicas", ou "elitistas", conforme a conveniência do momento.

Pessoalmente, a deposição e morte de Allende têm um significado que impactou de modo objetivo a minha vida. Foi o fato fundamental que me fez ingressar, aos 18 anos de idade, no PCB. Assim iniciei - ao lado de muitas pessoas então jovens e hoje (quase) idosas que viriam a se tornar amigas para sempre - uma militância que, além de ser contra a ditadura que vigorava no Brasil, era a favor da democracia política. Era essa, em 1973, a opção prática do PCB, semelhante à de Allende.

Apesar das contradições de um partido que mantinha um relativo alinhamento com a URSS, essa linha de ação na política brasileira nos levava a atuar nos movimentos da sociedade civil e também no MDB (a única alternativa legal de oposição que havia) para conquistar a democracia, enquanto aquela outra esquerda a que me referi pegava em armas para enfrentar a ditadura, mas ao mesmo tempo denunciava a "democracia burguesa". Faziam isso em nome do sonho de substituir a ditadura "do capital" pela ditadura revolucionária do proletariado, que acreditavam ser a "verdadeira" democracia. Inspiravam-se em figuras de homens guerreiros como Lenin, Mao Tse Tung, Fidel ou Guevara. Mas não em Allende que, como bem lembra em livro Alberto Aggio, parecia mais um tio moderado, se não acomodado, aos olhos daqueles ardorosos, heroicos (e autoritários) revolucionários.

As palavras de Allende que vocês poderão ler abaixo foram transmitidas por rádio na manhã daquele rude 11 de setembro, em meio ao bombardeio do Palácio de La Moneda pelas forças golpistas, após o qual o Presidente tombou morto. Elas foram publicadas no blog de Gilvan Cavalcanti, de onde as copiei. Mas pude ouvi-las pela viva voz de Allende quando, em 2014, visitei, com Guta, o museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, onde se acham gravadas, assim como inúmeros outros registros emocionantes, documentais e testemunhais, de um golpe e de uma ditadura reais.

Compartilho abaixo as palavras de Allende, que podem, é claro, ser alvos de reparos por análises racionais e autocríticas atuais. Mas o faço acima de tudo como reverência à memória histórica de todas as vítimas (chilenas e não) daquela tragédia política. Memória cara, moralmente inatacável, hoje desrespeitada por "narrativas" politicamente interessadas que, na atual conjuntura brasileira, usam as liberdades permitidas pela democracia, na qual, felizmente, vivemos, para pronunciar em vão a palavra "golpe". Compartilho-as, pois me incomoda muitíssimo a acolhida que essa blasfêmia política tem obtido por parte de intelectuais imprescindíveis à nossa cultura e por parte de pessoas de boa consciência e de boa vontade.

A fala final de Allende

"Seguramente, esta será a última oportunidade em que poderei dirigir-me a vocês. A Força Aérea bombardeou as antenas da Rádio Magallanes. Minhas palavras não têm amargura, mas decepção. Que sejam elas um castigo moral para quem traiu seu juramento: soldados do Chile, comandantes-em-chefe titulares, o almirante Merino, que se autodesignou comandante da Armada, e o senhor Mendoza, general rastejante que ainda ontem manifestara sua fidelidade e lealdade ao Governo e que também se autodenominou diretor geral dos carabineros.

Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos.

Trabalhadores de minha Pátria: quero agradecer-lhes a lealdade que sempre tiveram, a confiança que depositaram em um homem que foi apenas intérprete de grandes anseios de justiça, que empenhou sua palavra em que respeitaria a Constituição e a lei, e assim o fez.

Neste momento definitivo, o último em que eu poderei dirigir-me a vocês, quero que aproveitem a lição: o capital estrangeiro, o imperialismo, unidos à reação, criaram o clima para que as Forças Armadas rompessem sua tradição, que lhes ensinara o general Schneider e reafirmara o comandante Araya, vítimas do mesmo setor social que hoje estará esperando, com as mãos livres, reconquistar o poder para seguir defendendo seus lucros e seus privilégios.

Dirijo-me a vocês, sobretudo à mulher simples de nossa terra, à camponesa que em nós acreditou, à mãe que soube de nossa preocupação com as crianças. Dirijo-me aos profissionais da Pátria, aos profissionais patriotas que continuaram trabalhando contra a sedição auspiciada pelas associações profissionais, associações classistas, que também defenderam os lucros de uma sociedade capitalista. Dirijo-me à juventude, àqueles que cantaram e deram sua alegria e seu espírito de luta. Dirijo-me ao homem do Chile, ao operário, ao camponês, ao intelectual, àqueles que serão perseguidos, porque em nosso país o fascismo está há tempos presente nos atentados terroristas, explodindo as pontes, cortando as vias férreas, destruindo os oleodutos e os gasodutos, frente ao silêncio daqueles que tinham a obrigação de agir. Estavam comprometidos.

A história os julgará.

Seguramente a Rádio Magallanes será calada e o metal tranquilo de minha voz não chegará mais a vocês. Não importa. Vocês continuarão a ouvi-la. Sempre estarei junto de vocês. Pelo menos minha lembrança será a de um homem digno que foi leal à Pátria. O povo deve defender-se, mas não se sacrificar. O povo não deve se deixar arrasar nem tranquilizar, mas tampouco pode humilhar-se.

Trabalhadores de minha Pátria, tenho fé no Chile e em seu destino. Superarão outros homens este momento cinzento e amargo em que a traição pretende impor-se. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor.

Viva o Chile! Viva o povo! Viva os trabalhadores! Estas são minhas últimas palavras e tenho a certeza de que meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza de que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a perfídia, a covardia e a traição."

Santiago, 11 de setembro de 1973



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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