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Lula: um monumento político que desabou

Lúcio Flávio Pinto - Setembro 2016
 

Ainda bem que Luiz Inácio Lula da Silva decidiu responder de improviso, no dia 15, à denúncia que o Ministério Público Federal do Paraná fizera contra ele, na véspera, acusando-o de ser o "comandante máximo" do esquema de corrupção na Petrobrás, investigado pela força-tarefa da Operação Lava-Jato. Certamente ele pensou muito no que ia dizer. Também deve ter ouvido conselhos, ponderações e orientações dos seus advogados, amigos e correligionários. Deve ter levado tudo isso em consideração. Mas na hora de falar, preferiu ser Lula mesmo.

Não se revelou por inteiro, como nas conversas grampeadas pela Lava-Jato com autorização judicial. Mas se expressou como nos velhos tempos de dirigente sindical, político e presidente consagrado durante os seus oito anos de mandato. Com isso, foi o máximo de aproximação possível nas circunstâncias da linguagem de impropérios, palavrões e arrogância usada nos contatos telefônicos supostamente privados que manteve com interlocutores, em especial com a então presidente Dilma Rousseff. A extensão do pronunciamento também o ajudou (e, mais do que a ele, ajudou aos que o observavam à distância e com senso crítico) a perder o domínio das palavras e de si mesmo, indo muito além do que pensava ou era do seu interesse.

O discurso foi bem ao estilo de Lula: emotivo, apelativo, manipulador e de empolgar pelo carisma do orador. Mas foi gasto com uma plateia restrita, principalmente de militantes e de integrantes do diretório nacional do PT, que se reuniu dentro e fora de um hotel em São Paulo, para testemunhar a defesa pessoal do ex-presidente da república sobre o pedido do seu indiciamento criminal pelo MPF.

Lula continua ágil, sagaz e ladino, mas o seu público encolheu. Já encolheu no cenário paulista, mas essa redução certamente tem amplitude nacional, do que dá prova seu elevado índice de rejeição, em 46% na última pesquisa. Isso logo será verificado quando forem apurados os votos das eleições municipais, no próximo mês.

O PT encolheu em candidaturas e poderá diminuir bastante em sua expressão política. Lula, seu guia e estrela, já está em fase de declínio - não só em relação ao seu público como internamente, do que dá prova seu súbito e drástico envelhecimento - e praticamente seu desaparecimento (junto com Dilma) dos programas petistas no rádio e na televisão.

Ele já não é o dono do Brasil, que empolgava e manobrava como raros (talvez nenhum?) antes dele. Lula deixou a presidência da república e passou o cargo à sua ilustre sucessora, até então inexistente eleitoralmente, com o maior índice de popularidade alcançado por um presidente da república no encerramento do seu mandato. Parecia que ele tinha sido também um dos maiores chefes do poder executivo federal em todos os tempos, maior do que Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, só menor do que Jesus Cristo no Brasil, conforme apostrofou (e caiu em apostasia involuntária) no seu discurso de palanque (embora sufocado por "papagaios de pitada" dos lados e ao fundo, a ponto de ter dado uma cotovelada no peito do senador Paulo Rocha, que estava perto demais do grande líder).

De menino pobre, que não tinha "um prato de feijão" à sua mesa quando criança, ele chegou  a presidente da república. Já teria bastado para introduzir a sua biografia no panteão nacional, com destaque singular por uma carreira única na vida pública brasileira. Hoje, como sempre, ele não ficou à espera de ser consagrado por terceiros: delegou-se o direito de se avaliar e aprovar com louvor.

"Governo de verdade é aquele que diz que pobre tem direito a andar de avião, de ser médico e até procurador", proclamou. Em grande parte dos seus dois mandatos seu brilho ofuscou a opinião pública, hipnotizou a maioria do povo brasileiro e deu-lhe a grandeza de um mito. Por isso deixou o Palácio do Planalto, na transição de 2010 para 2011, coberto de glórias. Mas com o propósito de voltar ao poder o mais breve possível, de preferência dentro de quatro anos.

Esse projeto começou a não dar certo quando sua sucessora se apegou ao cargo e decidiu unilateralmente ser candidata de novo. O problema - para ela e todo o PT - foi a sua inesperada mediocridade e incompetência. Os mais avisados e informados logo perceberam que a reeleição seria penosa - e cara.

Ela e seus "luas pretas" cometeram o erro fatal de fazer reviver o esquema de corrupção do mensalão, que só não se transformou em completo desastre porque Lula estava acima de tudo na ocasião e tinha uma competência rara para montar esquemas e armar alianças, sobretudo com os "300 canalhas" (sua versão para os 300 de Esparta) que encontrara na Câmara Federal quando foi efêmero deputado federal.

Por "milagre" a avalanche de sujeiras políticas e corrupção deu a Lula a possibilidade de se desvencilhar da imagem ruim e do risco de ver sua carreira política interrompida. Pouco tempo antes da eleição de 2002 (com sua vitória, depois de três derrotas consecutivas), dois fatos iam demarcar a mudança radical do PT e da entourage de Lula. Um foi a morte do tesoureiro da sua campanha e prefeito licenciado de Santo André, no ABC paulista. Se foi assassinato comum ou político, a controvérsia ainda não foi decidida.

O certo é que Celso Daniel foi o primeiro dirigente petista a apontar o "desvio de finalidade" do caixa 2, que havia e sempre houve na mecânica dos partidos políticos no Brasil. Até então, ele seguia para os fundos do PT, juntando-se às contribuições - compulsórias ou voluntárias - dos seus militantes e políticos. O tesoureiro constatou que a drenagem também começava a seguir para bolsos particulares. E acendeu o sinal vermelho de advertência interna.

O problema é que Lula tinha que receber muito mais dinheiro se quisesse colocar em prática o caro projeto do publicitário Duda Mendonça para, finalmente, se tornar presidente da república. Até então o cérebro da máquina política do partido era José Dirceu. Mas a sombra de Dirceu se projetava cada vez mais espaçosa sobre o totem lulista. Era uma ameaça de concorrência, de divisão de poder. E não era eficiente o bastante.

Aí surgiu o engenheiro Delcídio do Amaral, com uma carreira brilhante, que viera da Holanda, de uma diretoria da Shell (uma das antigas seis "irmãs" do petróleo), após passar pelo comando da construção da hidrelétrica de Tucuruí, a quarta maior do mundo, e ser incorporado pelos tucanos de FHC durante o "apagão" de 2001, que aplicou o coice final nas aspirações de glória de Fernando Henrique Cardoso.

Delcídio concebeu a primeira organização global de corrupção do Brasil, reunindo os núcleos de políticos, executivos de estatais e empresários para desviar dinheiro público de tal monta que, só no caso da Petrobrás, teriam provocado rombo de 42 bilhões de reais e, em quatro fundos de pensão, apenas em 2015, responderam por grande parte do déficit de quase R$ 30 bilhões.

O esquema funcionou, foi azeitado e parecia tão seguro, depois de absorver e se livrar do escândalo do "mensalão", que Lula cometeu um erro fatal ao se ver acuado pela ofensiva - com incomum eficácia - da Operação Lava-Jato. Saiu do seu bunker do "nada sei, nada vi, nada ouvi", que o isolava de tantas candidaturas de escândalos que se acumulavam em tapetes e armários,e se desnudou por inteiro, sem máscaras nem retoques, nas conversas íntimas que teve com vários interlocutores, a mais reveladora delas com a então presidente Dilma Rousseff.

Emergiu dessas conversas um Lula incivilizado, mal educado, arrogante, messiânico, maledicente, raivoso - um contraste com o "Lula paz & amor" que o publicitário Duda Mendonça inventou, a peso de ouro - depositado ilicitamente no exterior e (provavelmente) apenas em parte devolvido aos cofres públicos (mas garantindo impunidade ao marqueteiro desde então).

Seus conceitos depreciativos e ofensivos sobre alguns dos mais poderosos homens públicos do país, em contraste com as opiniões que externava de público a respeito deles, criou uma vasta predisposição contra Lula, sobretudo no poder judiciário, com ênfase no Supremo Tribunal Federal.

Sintomaticamente, ele se permitiu comparecer à posse da nova presidente da corte, em meio a ataques contundentes à corrupção realizada, apoiada ou acobertada por líderes políticos (cujo modelo se amoldava ao perfil do ex-presidente). E foi conversar com seu ex-advogado, que indicou para o cargo, ministro Dias Toffoli (aquele que não passou em concurso para juiz no Amapá).

Disse a Toffoli, de forma um tanto jocosa e até debochada, que ele se livrara da ameaça que lhe fizera a revista Veja, de envolvê-lo em escândalo, graças à coragem de sair imediatamente em contundente defesa do colega do ministro Gilmar Mendes, ali ao lado, a quem, pela primeira vez, após tantas críticas e ataques, por considerá-lo quinta coluna tucana no Supremo, Lula elogiou. Estaria imaginando formar ali quórum para si quando seus vários processos demandassem a última instância da justiça brasileira?

O mundo da inclusão social, da elevação do padrão de vida do brasileiro, da eliminação da miséria, do bem-estar social, da defesa das riquezas nacionais e outras conquistas mais desmoronou. A revisão das realizações do líder petista seguiu por outra ótica, tão realista que o trecho principal da denúncia é muito mais política do que jurídica. É um libelo, no exato sentido da expressão.

Um país se sentiu enganado e se escandalizou pela revelação do que se passava num universo restrito em torno da Petrobrás e suas derivações ou desdobramentos, que, como destacou a peça do MPF, tinha Lula como o eixo de tudo. A principal tarefa a partir de agora é encontrar as conexões concretas, baseadas em fatos e não apenas em indícios, por mais robustos que eles sejam.

A denúncia apresentada pelos procuradores federais é falha. Se ela fosse a única peça do contencioso, estaria sujeita a um grande risco de fracassar. Ao invés de destruir Lula, lhe daria o passaporte de vítima para que com ele se reapresentasse em 2018 na condição de candidato a um inédito terceiro mandato de presidente da república.

Por efeito desse texto cheio de adjetivações e de tons políticos, mais subjetivo do que seria de se esperar de um produto da técnica jurídica, inflamado por uma indisfarçável busca de glória e notoriedade do trio de procuradores, o debate nacional transcendeu os casos concretos em apuração, dos imóveis atribuídos ao ex-presidente, mas registrados em outros nomes em cartórios.

O que mais se discute agora é a raiz de um projeto de poder concebido para durar por longo prazo à base da compra de apoios e com suporte financeiro expressivo, tão grande que estourou todas as barreiras em 2014, para reeleger Dilma, afundando ainda mais um país que resistia aos erros graves cometidos pela administração pública federal.

Naturalmente, a primeira das denúncias contra o ex-presidente seguirá uma instrução judicial, caso o juiz Sérgio Moro aceite a pronúncia. Mas outras peças deverão surgir da investigação da Lava-Jato, munidas dos dados fartamente acumulados por um trabalho sem igual de investigação de corrupção no Brasil.

Essa história está começando e ninguém pode, em sã consciência, dizer neste momento em como acabará. Mas provavelmente não será mais o final feliz em que Lula pensava quando voltou a ser um cidadão comum, no primeiro dia de 2011, sem aceitar, no fundo, não voltar a ser um cidadão acima de qualquer suspeita.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

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Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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