Busca:     


De Rubens Paiva a Amarildo. E "Nego Sete"? O regime militar e as violações de direitos humanos no Brasil

Luciano Oliveira - Fevereiro 2017
 

[...] sua primeira tarefa é [...] reconhecer os fatos incômodos, ou seja, aqueles fatos que são incômodos para a sua opinião partidária; e para todas as opiniões partidárias – inclusive a minha – há fatos extremamente incômodos (Max Weber, A ciência como vocação).

Começo com "Nego Sete", um nome desconhecido das "nossas novas gerações", como dizia Chico Buarque num inesquecível sucesso do ano de 1985, Vai passar, um samba flamejante comemorando o fim da ditadura militar e o começo de um novo tempo. Mas isso foi bem depois da morte de "Nego Sete", alcunha de Antônio de Souza Campos, delinquente da periferia de São Paulo assassinado em novembro de 1968 pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury e sua equipe na porta de sua casa, numa missão de vingança pela morte de um policial assassinado num confronto com uma quadrilha da qual ele supostamente fazia parte. "Nego Sete" foi sumariamente executado por "uma chuva de balas". Seu cadáver, "enrolado num cobertor e carregado [...], foi encontrado no dia seguinte na estrada [...] que vai para Mogi das Cruzes, nas imediações da cidade de São Paulo". Sua companheira, que a linguagem da época chamava de "amásia", foi também levada pelos policiais que tinham acabado de executar seu amásio – "e dela jamais teve alguém notícia ou rastro do seu destino", como informa um bravo promotor público paulista de então, Hélio Bicudo, que, designado em julho de 1970 para se ocupar das denúncias envolvendo o "denominado Esquadrão da Morte" em São Paulo, levou a sério uma missão que seus superiores preferiam cobrir rapidamente com panos quentes (Bicudo, 1977, p. 45-48). Às vezes, as pressões extravasavam os corredores aveludados dos palácios. Seis meses depois da sua designação, em dezembro de 1970, num programa de televisão, ninguém menos que o próprio governador de São Paulo, Abreu Sodré, desancou Hélio Bicudo negando pura e simplesmente a existência do Esquadrão paulista:
Isso é sensacionalismo: o que existe é como existe em qualquer parte do mundo: a polícia precisa se defender em termos de não morrer para que nós não morramos nas mãos dos marginais. [...] Então quando [...] vai um grupo de policiais, quer da militar ou da civil, para prender um homem perigoso como esse, é evidente que é um tiroteio ferrado em cima [...] do criminoso. E daí aparecer com muitos tiros. Então, aí inventam que fazem aquilo em termos de presunto, essas coisas (idem, p. 126).
Naquele momento, já estávamos sob a vigência do Ato Institucional n.5 e o delegado Fleury, que tinha um reconhecido know-how no assunto, foi "chamado pelos órgãos de segurança para a luta contra o terrorismo". E saiu-se bem: "chegou a ser considerado, pelas Forças Armadas, como herói nacional, condecorado, dentre outros, pelo Ministério da Marinha, com a medalha ‘Amigo da Marinha’" (idem, p. 51). Quando morreu, em 1º de maio de 1979, num mal explicado acidente no mar do litoral norte de São Paulo, seu desaparecimento foi diversamente recebido: de um lado, velório com pompas oficiais; de outro, em São Bernardo do Campo, regozijo numa celebração pelo dia do trabalho: "Estamos comemorando também a morte do maior torturador do país", vibrava o orador no palanque (Souza, 2000, p. 15). A trajetória de Sérgio Paranhos Fleury – o mais notório e emblemático torturador da época do regime militar, mas sempre oficiando na polícia civil de São Paulo – serve de ilustração para o argumento que quero desenvolver nesse texto: a de que as brutais violações de direitos humanos perpetradas ainda hoje pela polícia brasileira (torturas, execuções e mesmo "desaparecimentos") não são, como quer uma versão corrente no Brasil, uma "herança maldita" daqueles tempos. A questão, que não é recente, retornou ao debate público quando, em 2013, ocorreu o famoso "caso Amarildo".

Foi num 14 de julho, uma data emblemática. Na França, ela é patrioticamente comemorada e, no resto do mundo, lembrada por ter sido nesse dia que, no longínquo ano de 1789, revoltosos parisienses promoveram o assalto a uma velha prisão transformada em fortaleza, num episódio que ficou conhecido como a Queda da Bastilha. Foi o início da Revolução Francesa, espécie de marco inaugural dos tempos modernos. Logo depois, a Assembleia Nacional francesa iria produzir a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em cujo artigo 7º se lê: "Nenhum homem pode ser indiciado, preso ou detido exceto em casos determinados pela lei e segundo as formas que a lei prescreve". O Brasil, desde a Carta Política do Império de 1824, repete dispositivos desse jaez em todas as suas constituições. Mas exatos duzentos e vinte quatro anos depois da tomada da Bastilha, a polícia do Rio de Janeiro, no dia 14 de julho de 2013, prendeu, torturou, matou e fez desaparecer o corpo de Amarildo, um pobre trabalhador brasileiro que tinha nome de bicampeão mundial de futebol. Os novos tempos, anunciados pelo espetacular Vai passar, sem tortura e sem "desaparecimentos", vieram. Mas não para todos.

Amarildo foi mais um "desaparecido" nas mãos da polícia brasileira. Diferentemente daqueles sumidos durante os anos mais duros da ditadura militar, esses outros são de todos os tempos e regimes, formam incontável legião e são obscuros. Deles, geralmente nem o nome fica. Desse, ficou: Amarildo de Souza, 47 anos, mulato, morador da Rocinha, ajudante de pedreiro. Um típico trabalhador brasileiro. Preso, foi levado a uma Unidade de Polícia dita Pacificadora. Suspeito de esconder armas do tráfico de drogas, foi interrogado com os métodos reservados para a classe social a que pertencia: levou socos e pontapés, e passou por sessões de asfixia com saco plástico [1]. O "interrogatório" de Amarildo – como provavelmente aconteceu com o ex-deputado Rubens Paiva em 1971, e o jornalista Vladimir Herzog em 1975 – desandou e o ajudante de pedreiro morreu. Foi mais um "acidente de trabalho". No contexto do caso Amarildo, uma pergunta foi recorrentemente colocada: o que ele podia nos ensinar sobre os anos de chumbo? Ou, de forma inversa: o que as brutais violações de direitos humanos daqueles anos têm a ver com o caso Amarildo?

Uma resposta que tem sido dada é a de que têm tudo a ver. Marcelo Rubens Paiva, filho do "desaparecido" Rubens Paiva, em entrevista ao jornal El País (03/04/14), defrontou-se com a pergunta: "A morte, ou desaparecimento de pessoas comuns como Amarildo é uma das heranças da ditadura?" Ele não titubeou na resposta: "É". Noutro registro, idêntica opinião pode ser encontrada nos meios acadêmicos, dos quais destaco, a título de exemplo, uma publicação coletiva de alguns anos atrás sobre "o que resta da ditadura" (Teles e Safatle, 2010). Uma hipótese perpassa toda a coletânea: a ausência de uma autêntica "justiça de transição" entre nós – já que os torturadores que fizeram o "trabalho sujo" na época do regime militar foram acobertados pela Lei de Anistia – é responsável pela continuidade das práticas daquela época depois do processo de redemocratização. Para os organizadores da coletânea, "a incapacidade de reconhecer e julgar os crimes de Estado transforma-se em uma espécie de referência inconsciente para ações criminosas perpetradas por nossa polícia, pelo aparato judiciário, por setores do Estado" (p. 10-11 – itálicos meus).

Este artigo investe numa hipótese divergente. Considero que é hora de assumir, talvez com um grão de sal e outro de ousadia, a hipótese de que a versão da "herança maldita" repousa mais na retórica do que na análise cuidadosa dos fatos; de que o caso Amarildo praticamente nada nos ensina sobre o regime militar, e que este e sua ferocidade, na via inversa, não servem para iluminar o evento na Rocinha. Minha hipótese é a de que as torturas, as execuções e os desaparecimentos perpetrados pelo regime dos generais não antecipam o que aconteceu no Rio de Janeiro em 14 de julho do ano da graça de 2013, porque o que aí aconteceu acontecia antes e durante, e continuou acontecendo depois que o general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto em 1985. Como veremos, já havia ferocidade bastante na sociedade brasileira dos dourados anos 50 e começo dos anos 60 para, com ou sem ditadura militar, produzir máquinas mortíferas estatais como a Rota de São Paulo e o Bope do Rio de Janeiro; semiestatais, como os esquadrões da morte; e civis como os "justiceiros". Se a ditadura reforçou essa ferocidade, trata-se, evidentemente, de uma hipótese razoável. Mas se a ditadura acabou há mais de trinta anos, por que essa ferocidade lhe sobreviveu? Em minha opinião, porque lhe antecedeu e, indiferente à redemocratização dos anos 1980, lhe sobreviveu.

Trata-se de uma hipótese, é verdade, a exigir validação um tanto difícil de ser obtida – para falar no jargão positivista. Mas a tese contrária, a da "herança maldita", também não é fácil de ser validada. Ela beneficia-se, a meu ver, de uma adesão quase espontânea, facilitada por nossa aversão ao regime dos generais. Ela é, além disso, reconfortante. Afinal, se a violência policial brasileira deita raízes no regime de 1964, a democracia brasileira, por que tanto lutamos, não é responsável por ela. Mas se desde o inesquecível ano de 1984 – o das "Diretas, já!" e da eleição de Tancredo Neves para a presidência da república – vivemos, sem solução de continuidade, mais de trinta anos de democracia, já não seria tempo, se a tese da "herança maldita" fosse correta, de termos dela nos livrado? Minha tese, sem dúvida, minimiza a possível influência que a impunidade dos torturadores do regime teve sobre a sequência da história. Mas, de novo, enfatizo: a prática de torturar e de executar sumariamente (e eventualmente fazer desaparecer) delinquentes, no Brasil, antecede de muito o regime militar.

Resta, é claro, a questão de saber se, e em que medida, a impunidade dos torturadores do regime alimentou e incrementou essas práticas. Mas, como quer que seja, dificilmente alguém discordará da tese de que as violações de direitos humanos durante o regime militar seriam, para usar uma expressão da moda, um "ponto fora da curva", porque suas práticas mais odiosas já eram amplamente usadas contra bandidos comuns ou meros suspeitos das classes populares, o "ponto fora" residindo no fato de que a classe média, inesperadamente, teria sentido na própria pele o que era corriqueiro em relação aos seus concidadãos menos afortunados pelo dinheiro, pela posição, pelas relações sociais. Amarildo, aquele que tinha nome de bicampeão mundial de futebol, nasceu em 1966 e foi morto em 2013 pela polícia encarregada de pacificar a favela onde morava. Viveu, portanto, a maior parte da sua vida relativamente breve sob um regime democrático. É, no meu modo de ver, à democracia brasileira – uma democracia à brasileira – que devemos dirigir nossas cobranças. Dito isso, é tempo de passarmos a alguns fatos incômodos.

É nos amenos anos 1950 que começa a história do famoso Esquadrão da Morte. Tal abominação surgiu na cidade do Rio de Janeiro na época da Bossa Nova, quando, na Secretaria de Segurança Pública do então Distrito Federal (sendo presidente da república o sorridente JK), se criou um grupo conhecido como "homens de ouro" – uma unidade da policia encarregada de limpar a cidade dos seus bandidos. Um valioso relato dessa história encontra-se no livro Cidade partida, de Zuenir Ventura, do qual me valho para relembrá-la. A nossa memória "afetiva, proustiana" funciona de maneira seletiva, "e muita gente acredita que o melhor do Rio ocorreu por volta dos anos 50, os anos dourados, lembra o autor (Ventura, 1994, p. 17). Mas foi em 1958, ano da primeira Copa do Mundo ganha pelo Brasil e da revolução musical promovida por João Gilberto com o lançamento de Chega de saudade, que os diretores da Associação Comercial do Rio de Janeiro procuraram o então chefe de polícia, general Amauri Kruel, para resolver o problema dos assaltos a lojas. Como alardeavam os jornais, a cidade estava "infestada de facínoras". Os bandidos de então eram conhecidos por nomes como "Coisa Ruim", "Praga de Mãe", "Paraibinha", "Buck Jones" etc. Em resposta, o general Kruel anunciou a adoção de "medidas drásticas", e ordenou ao delegado Cecil Borer que criasse imediatamente uma "organização de combate aos marginais, o Serviço de Diligências Especiais (SDE), com carta branca para aplicar as tais ‘medidas drásticas’". Na época, o chefe de polícia do Distrito Federal tinha o poder de um quase Ministro da Justiça, pois era nomeado diretamente pelo presidente da República. Com tais credenciais, "a ordem do general Kruel equivalia a instituir na prática a pena de morte, concedendo aos seus subordinados o livre arbítrio para aplica-la". Tanto mais que o delegado Cecil Borer, nomeado para comandar o SDE, conhecia do riscado. Ele era um dos egressos da truculenta Polícia Especial do Estado Novo, "terror de prisioneiros políticos" da era varguista.

Articulando corrupção e violência [...], o SDE reuniu homens violentos e decididos a exterminar os bandidos do Rio e adjacências. Esses Homens de Ouro ou Turma da Pesada, também conhecidos como Esquadrões da Morte, subiriam morros, invadiriam barracos e desentocariam assaltantes, caçando-os como ratos. Limpariam a cidade (idem, p. 34-35).
Passaram-se os anos, mas não os costumes. Em 1962, já com a cidade do Rio de Janeiro – que perdeu o status de Distrito Federal com a transferência da capital para Brasília – transformada em estado da Guanabara, ocorreu um caso do qual muito se falou à época: o "caso Mineirinho". Quem foi Mineirinho? Hoje em dia é facílimo saber. Basta ir ao Google e digitar: "Mineirinho e Clarice Lispector". Sim, Clarice Lispector! Mineirinho foi, no começo dos anos 1960, um bandido carioca que virou o que, de quando em vez, a imprensa elevava à categoria de "inimigo público n° 1" – e, portanto, tornava-se alguém destinado ao abate. Foi abatido, em 1962 (isto é, dois anos antes de 1964...), com treze tiros. Na ocasião, Clarice Lispector escreveu uma crônica impactante, da qual realço o seguinte trecho, uma irretocável pequena obra-prima:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto, desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina. [...] Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela.
O primeiro sentimento confessado por Clarice é "um alívio de segurança", logo substituído por um "alerta" ao som do terceiro tiro. Mas não são todas as pessoas que chegam à lucidez da escritora a partir do quarto estampido. No começo dos anos 1960, a maioria dos seus concidadãos (como ocorre ainda hoje) preferia não se colocar questões sobre o modus operandi que pôs fim à carreira de Mineirinho. E a polícia carioca, resolvida a limpar a cidade sem prestar contas a ninguém, terminou protagonizando um dos episódios mais chocantes daqueles idos, o famoso "caso do Rio da Guarda". Carlos Lacerda era o governador da Guanabara, e o caso está relatado por ele mesmo em suas memórias:
Certa vez leio na Última Hora que tinha aparecido boiando no Rio da Guarda [...] o corpo de um sujeito amarrado com perfurações de balas na nuca e não sei mais o quê, e que um outro tinha sobrevivido e ido à delegacia [...] e contado que a polícia o tinha levado para lá e atirado no rio (Lacerda, 1978, p. 226).
Chamado para dar explicações, seu Secretário de Segurança esclareceu tudo. Como o Rio atraía muitos mendigos de outras cidades, de vez em quando "eles [a polícia] dão uma limpeza assim na cidade e devolvem os mendigos para as terras de origem. [...] Pagam a passagem de ônibus e o ‘cara’ vai embora, mas depois volta. E fica nesse eterno negócio" (idem, p. 227). Esclarecida a história, Lacerda diz ter tomado a decisão de "abrir um inquérito sério". Aparentemente, foi, pois é o próprio ex-governador que conta:
E fomos bater no negócio, numa coisa trágica! Havia um serviço chamado Serviço de Recuperação de Mendigos, dirigido por um rapaz que tinha sido um modesto membro do gabinete [...] do Juscelino, que também, evidentemente, não tinha culpa nenhuma nesse caso [...]. E ele começou participando daquela história de mendigo pra cá, mendigo pra lá. Depois começou a fazer um pequeno "esquadrão da morte", e com outros auxiliares agarravam o mendigo, iam para o Rio da Guarda; chegando lá, amarravam o sujeito, davam um tiro nele, jogavam o corpo dentro d´água e vinham embora (idem, p. 227).
Como se vê, já havia iniquidade bastante na sociedade brasileira daqueles anos contra nossos desvalidos – bandidos ou não – antes que os militares empalmassem o poder e começassem a usar os mesmos métodos contra os inimigos do regime. Pode-se especular se tais abjeções teriam sido suprimidas se não tivesse havido o golpe militar e o país, levando adiante as "reformas de base" do presidente Goulart, tivesse se tornado mais justo. Pode-se igualmente especular – retomando a hipótese da brutalidade policial do presente como uma "herança maldita" da ditadura – se uma verdadeira "justiça de transição" que tivesse punido os torturadores do regime não teria levado à abolição de tais práticas. Dando asas à imaginação, pode-se até mesmo especular sobre o que teria acontecido se a esquerda revolucionária que pegou em armas contra o regime de 1964 tivesse vencido e implantado o socialismo no país... Pode-se especular à vontade. Mas, infelizmente, não se pode fazer análise histórica com base no que não aconteceu – "a vida inteira que podia ter sido e que não foi", como diria o poeta Manuel Bandeira.

E na vida que foi, naquele começo dos maravilhosos anos 60, a questão da violência policial comum não fazia parte das preocupações da sociedade de um modo geral, muito menos da agenda de suas expressões políticas, aí incluída a esquerda. Sobre isso, encontra-se no livro de memórias do ex-guerrilheiro Fernando Gabeira uma passagem bastante instrutiva a respeito do choque que sentiu quando, preso e torturado em 1969, descobriu o inferno das prisões brasileiras. E se pergunta:

Até que ponto não fomos cúmplices disto, nós da esquerda? Até que ponto não somos simetricamente injustos para aqueles que não pertencem ao mercado de trabalho, que não são trabalhadores reais ou em potencial? Nunca nos comovemos de fato com o Esquadrão da Morte – as misérias e torturas que se passavam nos porões da polícia comum eram apenas injustiças que iam desaparecer com o socialismo. Marginal não dá voto, marginal não faz greve. A violência a que era submetido o preso comum não foi discutida em detalhe, não foi analisada minuciosamente (Gabeira, 1982, p. 245)
. Noutras palavras, o aparato de repressão ensaiado em 1964 e consolidado a partir de dezembro de 1968, com seu cortejo de prisões arbitrárias e clandestinas, de torturados e desaparecidos, não foi uma invenção ex nihilo do regime militar. Antes dele tudo isso já existia, como continuou existindo depois dele. O "pau-de-arara", um método de tortura tão característico dos "anos de chumbo" a ponto de ter se tornado símbolo do movimento Tortura nunca mais, vem de muito longe. De forma rudimentar, ele já era utilizado pelos senhores de escravos para imobilizá-los, como se pode ver numa gravura de Debret, que andou por aqui na primeira metade do século XIX. O escravo era colocado numa posição semelhante à de um remador inclinado para frente, e tinha os pulsos amarrados aos tornozelos. Em seguida, passava-se um pau através da concavidade formada pelo arqueamento dos cotovelos e joelhos: o escravo não podia mais se mexer. Então, como mostra a célebre gravura, era chicoteado.

Mas, aí, poder-se-ia dizer – retomando a frase famosa com que Manuel Antonio de Almeida abre o seu delicioso Memórias de um sargento de milícias –, "era no tempo do rei". Sim, era aquele tempo. Com a vinda da Corte para o Brasil, o Rio de Janeiro, sua capital, deveria tornar-se uma cidade à altura do seu novo status. E criou-se uma "guarda real" com poder de polícia para disciplinar uma cidade onde se misturavam, com seus costumes pouco apresentáveis a uma corte européia, escravos e negros livres. A Guarda tinha seus "agentes implacáveis", entre eles Miguel Nunes Vidigal – o famoso Major Vidigal, personagem que aparece no livro de Manuel Antonio de Almeida. Como escreve um historiador, "Vidigal tornou-se o terror dos vadios e ociosos, que podiam encontrá-lo ao virar uma esquina à noite ou vê-lo aparecer de repente nos batuques que aconteciam com frequência nos arredores da cidade". E continua:

Dessas reuniões, participavam pessoas comuns, na maioria escravos, que confraternizavam, bebiam cachaça e dançavam ao som de músicas afro-brasileiras até tarde da noite. Sem ligar a mínima aos procedimentos legais [...], Vidigal e seus soldados, escolhidos a dedo em função do tamanho da truculência, batia em qualquer participante, vadio ou tratante que conseguissem capturar (Holloway, 1997, p. 48-49).
Era no tempo do rei, certo. Mas as práticas desse tempo sobreviveram aos dois reinados e às várias repúblicas que desde então tivemos. Voltemos à gravura de Debret. A polícia brasileira, bem antes de 1964, aperfeiçoou o castigo ali retratado: uma vez a vítima imobilizada, ela era suspensa e o pau apoiado pelas extremidades em duas mesas. Nessa posição, recebia choques elétricos até que, como se diz, "desse o serviço". O método sobreviveu à Lei de Anistia do general Figueiredo em 1979 e à Nova República de Tancredo Neves em 1984. No ano seguinte, em 10 de agosto de 1985, já sob a presidência do civil José Sarney, o Jornal do Brasil publicou uma foto chocante: numa delegacia de polícia de Porto Alegre, um jovem negro de 19 anos, Antonio Clovis Lima dos Santos, conhecido por "Doge", aparecia pendurado num pau-de-arara. "Doge", gari de profissão e suspeito de ter participado de um assalto a um caminhão de bebidas, foi arrancado do seu barraco às 4 horas da manhã e levado à delegacia, onde foi torturado para confessar seu crime. Uma história banal como milhares de outras no Brasil. Se o seu caso saiu da rotina foi graças a essa foto feita por um policial, contrário aos métodos dos seus colegas, num instante em que esses tinham abandonado a sala de tortura. Essa súbita notoriedade de "Doge" parece ter sido, ao mesmo tempo, sua perdição: anos depois, dezoito dias antes de depor num inquérito instaurado para apurar as responsabilidades das torturas que lhe foram infligidas, "Doge" foi misteriosamente assassinado (Veja, 27.06.90).

Convenhamos: o que de novo ocorre a partir de 1964, mas, sobretudo, depois de 1968 com o AI-5, é que a tortura passa a atingir segmentos da população normalmente protegidos pelas imunidades sociais inerentes à sua condição: estudantes, jornalistas, políticos, advogados etc. Normalmente porque, também em períodos de exceção anteriores a 1964, esses segmentos já haviam experimentado o tratamento reservado aos seus concidadãos mais desprotegidos. Algo ao acaso (porque os exemplos, para quem se disponha a procura-los, são muitos), relembro o que está escrito no livro de memórias de Mário Lago – radialista, ator e compositor brasileiro, autor, entre outros sucessos, da letra do famoso "Ai! que saudades da Amélia". Nascido em 1911, nosso memorialista era um jovem adolescente no começo dos anos 1920, e o Brasil vivia sob o estado de sítio vigente durante quase toda a presidência de Artur Bernardes. Mário Lago morava num prédio em frente à Polícia Central, no Rio de Janeiro, "chefiada pelo sinistro general Fontoura" (Lago, 2011, p. 96). Estudando bem tarde da noite no apartamento onde morava, o jovem conta: "De repente tive a atenção despertada por gritos e imprecações vindos de uma sala da Polícia, em frente à janela onde eu me encontrava". O que viu, "[lhe] ficou grudado nos olhos, resistindo à superposição de milhões de imagens que a vida foi fixando depois":

Um homem já de idade, mas ainda bastante forte, lutava desesperadamente contra cinco ou seis policiais. Do rosto não havia como se perceber muitos detalhes de fisionomia, pois era praticamente todo uma pasta de sangue, levando a concluir que o espancamento já vinha durando algumas horas. [...] À proporção que a luta se tornava mais encarniçada, o grupo foi se aproximando da janela. [...] E a certa altura [...] um dos policiais o empurrou com violência, indo ele estatelar-se na calçada como um saco (Lago, 2011, p. 93-94).
O morto não era nenhum Zé-ninguém. Tratava-se de Conrado Niemeyer, "conceituado engenheiro e arquiteto, pertencente a uma família de alto gabarito e ferrenho adversário de Bernardes". Nessa condição, "sua morte não podia ficar no ora-veja". Instaura-se o competente inquérito. A versão oficial para a sua morte, o leitor já adivinhou: suicídio. Ele mesmo teria se atirado pela janela. No inquérito, entretanto, peritos demonstraram que, pela trajetória do corpo, ele fora atirado. Mas, como lembra o memorialista, a Polícia havia cometido o crime, e ela mesma conduzia as investigações. Assim, "deu tudo em água de barrela" (idem, p. 96).

Cerca de uma década depois, instala-se o regime de Vargas, e outra vez as camadas médias e mesmo altas da sociedade brasileira, ainda que de maneira bastante minoritária em relação aos opositores de origem operária, caem momentaneamente na categoria dos "torturáveis" – para usar uma expressão do escritor inglês Graham Greene. A tortura volta a ser posta a serviço de um desígnio político relacionado diretamente ao governo. Cria-se a Polícia Especial, chefiada por um militar que havia participado da famosa Coluna Prestes, o tenente Filinto Müller. O regime de Vargas, deve-se reconhecê-lo, bateu à esquerda e à direita. À esquerda primeiro, por ocasião da insurreição promovida pela Aliança Nacional Libertadora em 1935, que ficou conhecida como Intentona Comunista. Uma vez a insurreição dominada, seguiu-se uma violenta repressão contra comunistas e simpatizantes. Três anos mais tarde, foi a vez da direita: em maio de 1938, militantes da Ação Integralista Brasileira (AIB) ? que havia apoiado Vargas, mas que se sentiu traída quando o ditador, em 1937, fechou todos os partidos políticos ? lançaram uma ação armada contra o palácio do Catete, sede do governo. A tentativa de golpe foi rapidamente dominada e foi a vez de os militantes da AIB conhecerem, eles também, os métodos da Polícia Especial de Filinto Müller. Esses fatos estão relatados num livro hoje esquecido do jornalista David Nasser, muito apropriadamente chamado Falta alguém em Nuremberg. Estrela maior da extinta revista O Cruzeiro, Nasser era um jornalista inescrupuloso, mas o seu relato é convalidado por outras fontes. Entre elas, o monumental Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, que, se não foi torturado, conheceu as prisões do Estado Novo e colheu vários fatos como os narrados por Nasser. O "alguém" do título do livro do jornalista, já se adivinha, refere-se ao próprio Filinto Müller, o qual, aliás, passou de uma ditadura a outra sem maiores problemas: quando morreu, em 1970, num acidente aéreo no aeroporto de Orly, na França, era o líder do governo Médici no Senado. Com o que chegamos ao regime militar.

É consensual que foi em São Paulo, com a famosa "Operação Bandeirante" (Oban), em 1969, que a repressão política se instituiu nos moldes que viriam depois a formar o modelo dos DOI-Codis, espalhados pelo Brasil. Até então, a repressão institucional aos inimigos do regime, mesmo se esporadicamente as forças armadas tomavam iniciativas nesse sentido, cabia precipuamente às delegacias de ordem política e social existentes nos estados (DOPS), formada por policiais civis. E sabemos como, desde sempre, eram os métodos de trabalho da polícia comum no Brasil, notadamente as famosas delegacias de roubos e furtos. "Quando estourou o golpe de 1964, já estava em curso na polícia, e há muito tempo, uma ‘cultura’ diferenciada sobre o trato com homens que viviam à margem da lei: a cultura do pau" – informa um conhecedor do assunto, o jornalista Percival de Souza (2000, p. 29). Mesmo os "desaparecimentos", como aconteceu com a amásia de "Nego Sete", não eram novidade: "Jogados em qualquer ponto da cidade, os cadáveres engrossavam a lista dos crimes misteriosos. Nascia assim, com prisioneiros comuns, a cultura dos desaparecidos" (idem, p. 30). O resto, teria vindo por acréscimo:

Quando os chamados atos de subversão começaram [...], o DOPS foi apanhado de surpresa. Na instituição, ninguém sabia exatamente o que fazer, porque nunca, apesar de sua longa existência, se vira nada igual. Os militares começaram a cobrar respostas. Foi quando o DOPS pediu reforço à Secretaria da Segurança. A ajuda veio da Delegacia de Roubos com todo o seu estilo, a sua cultura, os seus métodos (idem, p. 33).
Era nesse ambiente que pontificavam figuras como o delegado Fleury, aureolado em novembro de 1969 por ter conseguido, com os métodos que se conhece, emboscar e matar Carlos Marighella, o maior líder da luta armada no Brasil. Em algum momento do começo dos anos 1970, quando a Oban começava a se transformar em DOI-Codi, o capitão Ênio da Silveira, um dos mais importantes quadros da repressão militar, fez "uma espécie de ‘estágio’ na Divisão de Ordem Social do Dops, onde teve como professor o Doutor Fleury, o símbolo do Esquadrão da Morte e da repressão política daqueles tempos" (Godoy, 2014, p. 36). Por essas e outras Percival de Souza, biógrafo de Fleury, não hesita no seu julgamento: "O know-how da repressão nos porões foi civil" (Souza, p. 33).

O juízo talvez precise ser matizado, particularmente no que diz respeito ao aspecto expertise da coisa. Sabe-se, afinal, que desde a revolução cubana de 1959 os Estados Unidos, resolvidos a não deixar a experiência se repetir na América Latina, investiram no treinamento de militares do continente para o exercício de tarefas policiais de repressão aos grupos revolucionários, o que incluía cursos de contra insurreição ministrados na "Escola das Américas" instalada na Zona do Canal do Panamá, então sob sua jurisdição, bem como em vários endereços militares instalados no próprio território americano. Vários militares brasileiros (assim como argentinos, chilenos, uruguaios etc.) que depois, nos "anos de chumbo", iriam se destacar no combate à guerra revolucionária – alguns inclusive como torturadores – foram alunos de tais cursos. Mas esse não foi um movimento de mão única. Se militares iam daqui para lá, de lá vinham "experts" ministrar seus conhecimentos in loco. Um relato dessa história encontra-se no livro do jornalista americano A. J. Langguth (1979), A face oculta do terror, que tem como fio condutor a história de Dan Mitrione, um ítalo-americano que andou por aqui entre 1960 e 1967 como instrutor de um Programa de Segurança Pública do governo americano que tinha como objetivo modernizar as polícias do "mundo livre", tornando-as capazes de enfrentar as ameaças de insurreição que rondavam o hemisfério depois do exemplo cubano. Em 1969, Mitrione foi enviado para exercer seu ofício no Uruguai, onde foi sequestrado e finalmente executado pelos tupamaros em agosto do ano seguinte. A execução fez de Mitrione um nome conhecido mundo afora. Sob o nome de Philip Santore, ele foi apresentado ao grande público em 1973 através do filme de Costa-Gavras, Estado de sítio, onde é interpretado por Yves Montand.

O que faziam esses instrutores por aqui? Oficialmente, eles cumpriam um programa de "modernização" das nossas polícias: cursos sobre o uso de gás lacrimogêneo, o manejo de cassetetes etc.; e intermediavam o recebimento de veículos, algemas, equipamentos de comunicação à distância etc. Mas também testemunhos dão conta de que, off the record, suas atividades não se limitavam ao que podia ser publicado. Os equipamentos de comunicação, por exemplo, incluíam geradores que podiam ser usados – e foram – na aplicação de choques elétricos em prisioneiros. É verdade que quando Mitrione deixa o Brasil, em 1967, a tortura política ainda estava longe de ser largamente aplicada pelos nossos aparelhos de repressão, como vai ocorrer depois. Segundo Langguth, os policiais que haviam trabalhado na época de Vargas contavam como se "arrancavam informações" naquele tempo: "Suas técnicas, muitas vezes brutais [...], geralmente envolviam o espancamento até que o preso estivesse quase morto, ponto em que ou falava ou morria". Nesse contexto, "alguns instrutores argumentavam que era mais humanitário aplicar dor intensa, mas não mortal, do que espancar indiscriminadamente". Mitrione era um desses instrutores, e um policial da "velha guarda" conta que ele, ao ouvir uma dessas histórias, "observou que um prisioneiro morto não podia prestar muita informação" (Langguth, p. 123). Quando foi destacado para o Uruguai, a tortura já tinha se incorporado aos usos e costumes das forças de segurança locais encarregadas da repressão aos tupamaros, mas ele teria contribuído para "modernizar" os métodos: "quando o equipamento de tortura se tornou mais sofisticado", um dos informantes do jornalista americano "creditou a mudança ao instrutor de polícia dos Estados Unidos" (idem, p. 223).

Mas tem mais. Se já dispomos há bastante tempo de informações bem assentadas sobre a atuação desses experts americanos entre nós, de uns tempos para cá não podemos desconhecer o papel que também tiveram spécialistes franceses sobre o assunto. Para não me alongar, remeto ao trabalho de João Roberto Martins Filho sobre a influência da "doutrina francesa" da guerre révolutionnaire sobre os militares brasileiros bem antes de 1964, uma vez que foi introduzida na ESG já em 1959 (Martins Filho, 2009). Gestada no contexto das guerras anticolonialistas movidas pela Indochina e pela Argélia contra a França nos anos 1950, a "doutrina francesa" assume que numa guerra desse tipo, onde as forças regulares têm de combater inimigos não identificados por um uniforme, escondidos no meio da população e praticando o terrorismo, há que se usar, para combatê-los, métodos propriamente policiais. Entre eles, o que os franceses chamam eufemisticamente de interrogatoire musclé – o que, numa tradução literal, seria "interrogatório musculoso", mas que, o leitor já percebeu, quer dizer de fato tortura. Mais recentemente, a jornalista Leneide Duarte-Plon apresentou ao leitor brasileiro o general Paul Aussaresses, um "especialista" francês que no começo dos anos 1960 foi instrutor de militares latino-americanos nas escolas de contra insurreição sediadas nos Estados Unidos e mais tarde, entre 1973 e 1975, foi adido militar da França no Brasil, onde continuou ministrando seus cursos (Duarte-Plon, 2016).

Esse breve desvio a respeito de um expert americano e um spécialiste francês agindo no Cone Sul objetiva retomar a hipótese enunciada mais atrás do "ponto fora da curva". Acho que a ingerência de estrangeiros na nossa "guerra suja" a reforça. Figuras turvas como Dan Mitrione ou Paul Aussaresses não introduziram a tortura entre nós – longe disso! –, mas, sem dúvida, tiveram um papel não desprezível na organização e sofisticação de sua prática nos "anos de chumbo". O "espancamento até que o preso estivesse quase morto", típico dos velhos tempos, certamente não desapareceu; mas as instalações adredemente preparadas para a aplicação da tortura, com sua sinistra parafernália de máquinas de dar choques e infligir outros tipos de sofrimento, além da assistência de médicos para dizer até onde o torturado pode aguentar sofrer, não são certamente de todos os tempos. Tudo isso exige uma organização de estado e um desembaraço garantido por uma férrea censura, o que só é possível em tempos de exceção. Com a "normalidade" democrática, a tortura reflui para os locais de onde na verdade nunca sumiu: as repartições policiais e carcerárias comuns, onde continuam em vigor métodos mais improvisados.

Num livro recente, fruto de uma tese de doutorado em sociologia na Universidade de Salamanca, Marcelo Barros, delegado de polícia em Pernambuco, discorre sobre a tortura na polícia brasileira como uma prática de todos os tempos. Barros usa uma expressão para se referir aos colegas que praticam ou toleram a tortura: "a caixa das maçãs podres". Elas estão em Pernambuco, por onde a pesquisa começou, mas estão também em Alagoas, na Paraíba, na Bahia, no Amazonas, em Minas Gerais, em São Paulo, no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul, para onde a pesquisa se expandiu. Ou seja: a "caixa" é na verdade um "pomar" do tamanho do Brasil! A pergunta inicial é aquela já tantas vezes feita: como, "vinte e cinco anos depois da Constituição Federal de 1988", e mesmo sendo "punida de forma bastante severa em lei penal especial", a tortura continua "sendo uma prática clandestina nas corporações policiais?" (Barros, 2015, p. 15). A resposta do autor vai além daquela mais evidente e ao alcance de qualquer um: justamente porque não é punida. A riqueza do seu trabalho consiste em ir além do que todo mundo sabe e analisar tais práticas: as condições em que são exercidas; que "cumplicidades" se estabelecem entre os que "metem a mão na massa" e aqueles outros, numerosos, que preferem não saber o que se passa nos porões de suas jurisdições; os que, ouvindo gritos, preferem passar sem parar; ou, surpreendendo um preso com um saco plástico enfiado na cabeça, virar o rosto. Marcelo Barros esmiúça tudo isso num livro que, doravante, não pode deixar de ser considerado por quem quer que, no Brasil, se debruce sobre o assunto. Afinal, ele é um insider...

Além disso, Barros toca numa questão que, de um modo geral, preferimos não olhar de frente: "a enorme anuência da sociedade" brasileira a tais práticas (idem, p. 20). Para o autor, "a tortura que ocorre hoje nas delegacias não advém de períodos de exceção, ao contrário, os períodos de exceção se apropriam e superdimensionam as práticas policiais cotidianas". É a hipótese do "ponto fora da curva" de que falava. Noutros termos, "o padrão da prática da tortura utilizada hoje mais se assemelha às práticas anteriores às ditaduras" (idem, p. 50). Cedo-lhe a palavra:

Quanto ao modo de praticar, não há novidades. Os policiais costumam utilizar qualquer meio capaz de causar sofrimento, se possível, sem deixar marcas, demonstrando preferência por espancamento e utilização de sacos plásticos, de supermercado, para sufocamento (idem, p. 155).

Estamos falando de hoje. Mas voltemos no tempo – aquele em que os revolucionários que pegaram em armas contra o regime, de que Fernando Gabeira é talvez o melhor exemplo, descobriram toda a dimensão da violência praticada desde sempre contra presos comuns. Essa geração de esquerdistas torturados descobriu a questão dos direitos humanos no Brasil e a transformou numa palavra de ordem. Com o fim da ditadura, experimentaram um transbordante otimismo. Os primeiros anos da década de 1980 assistiram a uma verdadeira proliferação de grupos de defesa desses direitos, desta feita, entretanto, voltados para a classe dos "torturáveis". Considerando-se o prestígio acumulado na luta contra o regime militar, seria de se esperar idêntica fortuna daí para a frente. Mas foi o contrário que aconteceu. A tortura e o abate sumário de delinquentes – reais ou não – do meio popular continuaram atravessando galhardamente nossa história, independentemente do regime político vigente. Vamos a alguns números.

No começo dos anos 1990 o jornalista Caco Barcellos publicou o livro Rota 66, com um subtítulo bem apropriado: "A história da polícia que mata" (Barcellos, 1992). Ele se referia à Rota – Rondas Ostensivas "Tobias de Aguiar" –, esquadrão da polícia paulista que nessa época executava bandidos ou simples suspeitos praticamente às escâncaras. Segundo seus cálculos, a Polícia Militar de São Paulo, entre abril de 1970 e meados de 1992, foi responsável pela morte de mais de 4 mil pessoas. A corriqueira afirmação de que as mortes decorriam de tiros trocados entre as duas partes revelava-se uma fantasia a partir da constatação de que não há registro na história dos confrontos armados com uma desproporção tão grande entre as baixas de cada um dos lados: 97 civis mortos para cada policial morto. Dando um salto de vinte anos, pesquisadores do Rio de Janeiro lançaram um livro (Misse et alii, 2013) que parece repercutir o subtítulo do livro de Caco Barcellos: Quando a polícia mata. O subtítulo explica: "Homicídios por ‘autos de resistência’ no Rio de Janeiro (2001-2011)". São mais de dez mil mortos. Comparando os dados de um e de outro, verifica-se uma progressão assustadora: no primeiro caso, o estudo abrange mais de vinte anos; no segundo, dez. Lá, os mortos são mais de quatro mil; aqui, mais de dez. Ou seja: enquanto o tempo foi dividido por dois, os mortos foram multiplicados igualmente por dois! Dir-se-ia que a violência letal da policia piorou. Mas o problema é que não foi só ela...

Por uma infeliz coincidência, a partir dos anos 1980 – justamente quando o problema dos direitos humanos emergiu entre nós – a criminalidade urbana violenta, aquela que faz as pessoas terem medo, cresceu assustadoramente no Brasil. Foi quando a defesa desses direitos começou a ser hostilizada. Os militantes que saíam em defesa dos que eram torturados e mortos pela polícia costumavam ser interpelados com uma pergunta capciosa e incômoda: "E os direitos humanos das vítimas?" A pergunta continua sendo tão insistentemente ouvida que não é exagerado dizer que estamos em presença de uma verdadeira campanha, renovada cotidianamente pelo rádio e pela televisão nos assim chamados "programas policiais", de grande prestígio e audiência entre o público. Daí o grande complicador com que se defrontam os militantes dos direitos humanos no Brasil: a oposição estado-torturador versus sociedade civil-torturada, tão clara nos anos 1970, foi substituída por uma relação bem mais complexa e ambígua, pois ela varia da revolta explícita contra massacres como o de Vigário Geral, em 1993 (21 mortos), ao apoio tácito à chacina do Carandiru, em 1992 (111 mortos). Apanhada no fogo cruzado entre a violência da polícia e dos marginais, a população tanto é capaz de protestar quando as vítimas são honestos pais de família, quanto de aplaudir quando os mortos são bandidos – reais ou supostos.

Aqui entra a hipótese adjacente de que a persistência dessas práticas de violações de direitos humanos no Brasil resulta da infeliz confluência de uma mentalidade escravocrata (dentro da qual os "inferiores" são naturalmente "torturáveis") com o fenômeno da "criminalidade urbana violenta" que explodiu nos anos 1980, justamente quando o país se redemocratizava. É importante recuperar isso porque, no bojo do processo de redemocratização de então, houve iniciativas de romper a mentalidade vigente na política de segurança pública – que, como se sabe, é de competência dos estados. É interessante e didático relembrar o que ocorreu, por exemplo, em São Paulo, na sequência da primeira eleição direta para governador desde o golpe, a de 1982.

Como se sabe, com a "abertura" levada a cabo aos trancos e barrancos pelo presidente Figueiredo, os governadores dos estados voltaram a ser eleitos pelo voto direto. Em São Paulo, o eleito foi Franco Montoro, um liberal moderado, mas histórico combatente pelo retorno do país ao estado de direito. Nessa conjuntura, o novo governador anunciou algumas medidas que sinalizavam uma ruptura com a tradição de violação sistemática dos direitos humanos pelos aparelhos de repressão. Para atacar o problema da violência nas prisões, Montoro tomou uma atitude corajosa: nomeou o advogado José Carlos Dias para ocupar a Secretaria de Justiça. Antigo defensor de prisioneiros políticos, Dias anunciou abertamente que iria aplicar uma política de direitos humanos na sua gestão. Os ataques não se fizeram esperar. Eles vinham da imprensa sensacionalista, dos "programas policiais", mas também de membros do seu próprio partido, o PMDB. A sua política era acusada de defender os criminosos e incentivar rebeliões nas prisões. À medida que o número de crimes na cidade subia nas estatísticas, o grito "Segurança Já!" tornava-se o slogan preferido do principal adversário de Montoro, o impagável Paulo Maluf. Aos poucos, a posição de Dias tornou-se insustentável. Nessas circunstâncias, o mais surpreendente é que tenha conseguido manter-se no cargo por mais de três anos. Em junho de 1986, entretanto, com a proximidade das novas eleições, sua hora soou. O candidato do próprio Montoro à sucessão estadual, Orestes Quércia, começou a falar a mesma linguagem dos adversários do governador. Nesse momento, Dias renunciou. A reação do eleitorado parece ter sido positiva: Quércia ganhou as eleições.

E no Rio de Janeiro, onde padeceu Amarildo? Também em 1982 foi eleito um dos arqui-inimigos do regime: Leonel Brizola. Todos ainda se lembram da gritaria que houve quando o novo governador anunciou que a sua polícia não iria mais adotar a política do "pé na porta" no barraco de favelados para prender bandidos. Depois de Brizola, veio Marcello Alencar. Ele, que nos "anos de chumbo" tinha sido um dos corajosos defensores de presos políticos, nomeou para seu secretário de segurança ninguém menos que o coronel Nilton Cerqueira, que ocupou o cargo entre 1995 e 1998. Cerqueira foi o comandante da operação que executou Carlos Lamarca no sertão da Bahia em 1971. Em 1995, quase vinte e cinco anos depois, foi chamado por um antigo defensor dos direitos humanos para se ocupar da política de segurança do estado de que era governador. Condizente com sua vocação guerreira, Cerqueira instituiu na corporação policial uma gratificação para agentes que tivessem praticado "atos de bravura". O resultado é de todos conhecido: tais atos, na maioria das vezes, referiam-se a ações que resultavam na morte de criminosos – reais ou suspeitos. A coisa ficou tão escancarada que os aumentos salariais ficaram conhecidos como "gratificação faroeste" (Misse et alii, p. 16).

Com isso introduzo eu mesmo um matiz na hipótese inicial – estabelecida a guisa de hipótese de trabalho – de que os casos Rubens Paiva e Amarildo nada têm a ver um com o outro. Bem pensadas as coisas, as violações de direitos humanos em tempos de exceção e em tempos ordinários não são realidades estanques. Mesmo se no contexto e nas motivações elas são diversas, isso não significa dizer que não se cruzaram em vários momentos, ou que não prestaram serviço uma à outra. Há vários exemplos disso. Um deles: em retribuição aos serviços que o delegado Fleury lhe prestava, o regime militar editou em 1973 uma lei permitindo que réus primários e com bons antecedentes (por mais surrealista que pareça, era "tecnicamente" o caso dele!) respondessem a processos penais em liberdade até o julgamento final. Isso o livrou da cadeia, para onde, pela lei antiga, seria fatalmente despachado por ter sido enviado a júri no processo movido por Hélio Bicudo contra o Esquadrão da Morte. A lei ficou conhecida como "Lei Fleury" e continua em vigor [2]. Mas o exemplo não é único. Chega mesmo a ser lógico que tenha havido outros cruzamentos promíscuos entre a repressão policial comum e a repressão política promovida pelo regime. Afinal, as duas coisas eram contemporâneas e conviviam muito bem. É perfeitamente defensável a hipótese de que a segunda tenha estimulado e reforçado a primeira. Numa quadra histórica em que a classe média (e mesmo alta) brasileira tinha caído no rol dos "torturáveis", certamente os responsáveis pela repressão policial "normal" sentiram-se mais à vontade para dar vazão à opinião tão nossa conhecida de que "bandido bom é bandido morto".

Convém também não esquecer que mais de uma vez militares foram chamados pelo poder civil para se ocupar da segurança pública em relação à criminalidade comum, como o general Amaury Kruel por Juscelino Kubitschek e o coronel Nílton Cerqueira pelo governador Marcello Alencar, da mesma maneira que também militares foram deslocados para as repartições policiais quando se tratou de reprimir inimigos políticos, como o general Fontoura no estádio de sítio de Artur Bernardes e o tenente Filinto Müller na ditadura de Getúlio Vargas. E um personagem como o delegado Cecil Borer, que aterrorizou presos políticos durante a ditadura de Vargas, continuou aterrorizando presos comuns no período democrático de Juscelino Kubitschek. Como se vê, em muitas ocasiões os atores são os mesmos. Mas se, de fato, a passagem do coronel Cerqueira pela secretaria de segurança do Rio de Janeiro foi parte da "herança maldita", convenhamos que foi um legado aceito de bom grado por um governador civil eleito pelo povo e com um histórico de luta contra as violações de direitos humanos na época do regime militar. Francamente, que responsabilidade têm nessa nomeação os generais que em dezembro de 1968 tiraram a focinheira dos seus torturadores?

***

Mas não quero concluir de modo pessimista. Por um dever de justiça – além do dever da honestidade intelectual –, devo lembrar que os tempos, pelos dias que correm, já não são os mesmos. Os que mataram Amarildo em 2013 foram presos e estão à disposição da justiça. Será que não há, apesar de aberrações como o seu caso, alguma diferença entre a polícia das UPPs e os "homens de ouro" que matavam delinquentes como Mineirinho e tantos outros nos anos 1950 e 1960, e eram publicamente enaltecidos por seus superiores? Tudo isso na indiferença do Ministério Público e do Judiciário brasileiros?

----------

Luciano Oliveira é professor aposentado da UFPE.

----------

Este artigo começou a ser pensado quando, no início de 2014, recebi um convite de Túlio Barreto e Celma Tavares, da Fundação Joaquim Nabuco, para escrever um texto sobre o caso Amarildo e o que ele podia nos ensinar sobre o regime militar. O convite aflorou divergências geradoras de uma discussão fraterna e produtiva. Mas terminei desistindo do artigo naquele momento. Posteriormente, convidado pelo professor Bruno Galindo para participar de um debate na Faculdade de Direito do Recife sobre os 50 anos do golpe militar, retomei as reflexões que tinha deixado de lado. Mas o artigo continuou sem ser escrito. Agora, finalmente, retomei-o. Sou muito grato aos três pela oportunidade de pensar nessas coisas e, finalmente, pôr o que penso desse tenebroso assunto no papel. Digo, na tela!

Notas

[1] A técnica tornou-se familiar do grande público brasileiro através do filme Tropa de elite, de 2007. Para além do enorme sucesso de bilheteria que foi, o filme tornou-se um fenômeno cultural com rebatimentos políticos de grande significação no Brasil por causa da adesão entusiasmada do público aos métodos do Capitão Nascimento, seu herói, que incluíam a tortura e o abate de marginais ou simples suspeitos com um descaso absoluto por qualquer vestígio de um "estado democrático de direito" que supostamente somos.

[2] Considerada – inclusive por mim mesmo – como um avanço em relação à legislação anterior, ela mostra que o Diabo, como se diz de Deus, também pode escrever certo por linhas tortas...

Bibiliografia citada

BARCELLOS, Caco. Rota 66 ? A história da polícia que mata. São Paulo: Globo, 1992.

BARROS, Marcelo. Polícia e tortura no Brasil. Curitiba: Appris, 2015.

DUARTE-PLON, Leneide. A tortura como arma de guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

GABEIRA, Fernando. O que é isso, companheiro? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

GODOY, Marcelo. A casa da vovó. São Paulo: Alameda, 2014.

HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

LACERDA, Carlos. Depoimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

LAGO, Mário. Na rolança do tempo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

LANGGUTH, A. J. A face oculta do terror. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

MARTINS FILHO, João Roberto. "Tortura e ideologia: os militares brasileiros e a doutrina da guerre révolutionnaire (1959-1974)." In: Cecília MacDowell Santos, Edson Teles e Janaína de Almeida Teles (orgs.). Desarquivando a Ditadura – Vol. I. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2009.

MISSE, Michel et alii. Quando a polícia mata. Rio de Janeiro: Necvu & Booklink, 2013.

SOUZA, Percival de. Autópsia do medo. São Paulo: Globo, 2000.

VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.



Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

  •