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A chacina de Pau dÂ’Arco

Lúcio Flávio Pinto - Junho 2017
 

Mais uma vez o governo do Pará mostra insensibilidade e incompetência no trato de um dos problemas mais graves do Estado: os conflitos de terras. Depois de Eldorado dos Carajás, 21 anos atrás, nova chacina acontece sob um governo do PSDB. Os tucanos emudecem.

O secretário de segurança pública do Pará, general Jeannot Jansen, fez a primeira declaração sobre o conflito em Pau D’Arco, no sul do Pará, poucas horas depois do acontecimento, na manhã do dia 24 [de maio], que resultou em 10 mortes, nove homens e uma mulher. Sua maior preocupação foi ressaltar que a polícia - civil e militar - não cumpria mandado de reintegração de posse. Ou seja: não ia desalojar os ocupantes da fazenda Santa Lúcia, como acontecera em duas situações anteriores. A fazenda, de 3,5 mil hectares, é motivo de disputa entre os seus proprietários e posseiros desde 2012.

Desta vez, a polícia cumpriria 16 mandados judiciais de prisão contra quatro pessoas, que teriam participado do assassinato de um vigilante da fazenda, ocorrido um mês antes, e de busca e apreensão de armas e documentos, e que acabaram sendo mortas durante o ataque. Na explicação do secretário, a presunção era de que a operação resultara da constatação de que o alvo eram delinquentes comuns e não posseiros.

Havia antecedentes. Uma reintegração de posse executada um mês antes retirara os ocupantes da área, mas eles voltaram ao local logo depois. No dia 30 de abril eles mataram Marcos Montenegro, vigilante da fazenda. Duas semanas depois, atacaram a sede da fazenda, queimando algumas instalações e depredando outras. No dia 22 a polícia não conseguiu cumprir os mandados judiciais de prisão dos responsáveis pelos danos porque o acesso ao acampamento foi bloqueado por uma barricada. Decidiram voltar, na madrugada do dia 24, para assim surpreender os ocupantes da área. Mas eles receberam a tropa a tiros.

A versão oficial é coerente com essa tese. Com um contingente com 25 a 30 pessoas, os posseiros se beneficiaram do fato de estarem numa área conhecida e a partir de uma trincheira que podem ter montado. Tinham arsenal para essa decisão: 11 armas de grosso calibre, incluindo espingardas, um fuzil 763 e uma potente pistola Glock.

Mas quem já acompanhou esse tipo de situação, sabe que o tiroteio costuma se generalizar. É quase impossível que só haja baixa de um lado - e do lado que estava melhor posicionado no que os combatentes chamam de teatro de operações.

Essa expectativa, ao contrário do que proclamou o delegado licenciado e deputado federal Éder Mauro (do PSD), contumaz nesse tipo de operação, na sua reação corporativa e parcial, não significa que se deseje a morte ou ferimento de policiais. É hipótese coerente com a versão da secretaria de segurança pública.

Se a tropa foi vítima dos primeiros disparos ao entrar na área é porque foi surpreendida por essa reação. Até encontrar um lugar para se proteger, se defender e reagir, inevitavelmente teria sofrido alguma baixa, mesmo que sem vítima fatal. O tiroteio pesado deixaria marcas claras do combate, o que, nas vistorias posteriores ao local, não foi constatado.

Mas se os policiais só atiraram porque foram alvejados antes, sua maior preocupação seria preservar a integridade do local para usá-lo como prova da sua versão, logo posta em questão, ou imediatamente desacreditada. No entanto, a expedição retirou os cadáveres, arrecadou as armas e limpou o ambiente, prejudicando - ou até inviabilizando - o trabalho dos peritos.

Novamente na sua manifestação utilitária, para ganhar a pronta aprovação dos seus pares e das pessoas que encaram o problema por uma ótica simplista e radical, o deputado Éder Mauro desdenha esse argumento. Disse que a ação foi humanitária. Afinal, os policiais não iam deixar os cadáveres expostos.

A gravidade do acontecimento, com 10 mortes só de um lado (e, talvez, mais oito feridos que escaparam do tiroteio pelo mato), reforçaria o cumprimento do dever profissional dos policiais de preservar a cena do crime, com os corpos dilacerados pelas balas, o sangue espalhado e, sobretudo, a prova definitiva de que houve mesmo um combate e não uma matança deliberada, planejada, cumprida para atender uma das partes do conflito fundiário.

Chegando de madrugada, sob chuva, os 29 homens da operação (21 da Polícia Militar e oito da polícia civil) pareciam ter o propósito de matar, se prender não fosse possível. A tropa era da própria região e já estava afetada emocionalmente pelas tentativas de retirada dos ocupantes da fazenda e prisão dos que participaram do ataque à sede da propriedade. Poderiam também estar querendo vingar o vigilante assassinado, ainda mais se ele fosse um policial?

Suscitar essas hipóteses, de sólida consistência, não significa levar ao absurdo a defesa dos direitos humanos, como se apenas uma das partes, a falsamente (ou verdadeiramente) mais fraca, tivesse direitos, enquanto a outra, a dos policiais e fazendeiros, é totalmente ignorada.

O maniqueísmo se mostra deturpador em mais este exemplo. Se houve um momento em que o conflito de terras na Amazônia era claramente entre duas partes, a dos donos (por justo título ou mera grilagem) da terra e os posseiros, que só dispunham do seu trabalho para exercer seus direitos, hoje esse dualismo desapareceu.

É tal o fracasso do governo como órgão regulador de litígio, acompanhante dos fatos e repressor de ilícitos que os atores em cena se diversificaram muito. Em meio a posseiros há pistoleiros, grileiros, desmatadores, intermediários de fazendeiros e um universo humano que se desenvolveu sob a incompetência da administração pública.

Ainda assim, o caso de Pau D’Arco tem uma violência e um nítido sentido de parcialidade que torna difícil - se não impossível - absorver as explicações do governo, formuladas - mais uma vez - com incompetência pelo abúlico secretário de segurança pública.

A figura inexpressiva do general Jansen parece só se manter diante da criminosa omissão do governador Simão Jatene. Mais uma vez, diante de novo escândalo, que devolve o Pará ao pior noticiário nacional e internacional, o governador sumiu.

Nesses momentos, o tucano parece renunciar à condição de comandante-em-chefe da força policial, que só exerce em momentos festivos, com hinos, dobrados e medalhas. O Pará que trate suas dores por si próprio, entre as quais matanças como esta, 21 anos depois de Eldorado dos Carajás, são o atestado da continuidade de uma marca que tanto mal lhe faz: a selvageria.

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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e do blog Amazônia hoje – a nova colônia mundial. Entre outros, é autor de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).

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Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.

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