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A poesia política de Francisco Orban

Francisco Orban - Julho 2017
 


33 poetas

Éramos 33 poetas
apesar das falhas do céu
dos talhos no chão da carne
Amontoados sob o silêncio
das tardes com gomos de chuva
por cima da morte das baleias
e do jasmim
dizendo que assim era o plano
que ninguém morreria
no Outono
33 poetas
como Cristina Maria
que tinha cheiro de hortelã
e maresia
e pele morena de porcelana
33 poetas
assim como Luiz Carlos
batalhando no sol de São Gonçalo
ferido nos inúmeros sobrados
que trazia em si e não sabia
33 poetas
esperando a polícia todo dia
fosse inverno verão ou primavera
Isso num tempo distante
quando eu ia correndo
pelas ruas
e o tempo estava estancado
não era como agora
hemorragia de aurora
Éramos como Edgar
- caçador de balões -
herói como todos nós
que sabia subir em jaqueiras
e nunca pensou
que iria enlouquecer
33 poetas
como Janda em Salvador
falando da guerrilha perdida
da adolescência perdida
de todas as coisas que não iam
mais dar certo
apesar do mistério da Bahia
em plena terça-feira de carnaval
no verão da anistia
Éramos 33 poetas
como Odemir
que escreveu um poema assim:
Marta, um homem não é um trombone
Assim éramos tantos
voltando do exílio
falando dos canaviais
e das lutas pela vida e pela paz
numa avenida paulista
corrompida de carros
Éramos 33 poetas
apesar do tempo ser um animal solto
a máquina de quebrar encantação
que antes não quebrava nada
mas hoje me quebra os dentes
e a cartilagem do rosto
Se desse para fazer girar a máquina
escreveria um conto
entre plantas e algas de sol
Ergueria nas paredes brilhantes
blocos de ventanias sumidos
e beberia contigo
nas fontes nas águas nos vinhos
nas cidades sem tempo
nos horizontes abertos
com a pele chamuscada
de marítimas vertigens
e perigos
Onde está Luiz Maranhão
desaparecido
ninguém sabe
ninguém responde
Havia uma bota no caminho
havia o cheiro de cilada e sonho
sobrevoando São Paulo
milharal de luzes
diamante aceso
na noite perdida
de 1974
Éramos 33 poetas
em Santa Teresa
longe da Avenida São João
do petróleo queimado
e das vidas queimadas inutilmente
nas ruas escuras
nos planos nefastos
onde baniu-se para sempre
a realidade e a ternura
Éramos 33 poetas
com planos na terra
com as almas brandas
e as noites soltas
mas não sabíamos
que um vendaval espalharia
os nossos versos
as vozes as cópulas
músicas sobrariam no ar
o tempo uma rede blindada
faria apagar da memória
os tratados das noites mornas
como se isso fosse possível
e Edgar ainda subisse em jaqueiras
Ernesto tomasse a sua cerveja gelada
Cristina com seu hálito de fada
o tempo com sua malha de máquinas
telha frágil nó desatado
não revelou sua face aguada
só disse o seu lado concreto
que não vai dar no mar
mas no deserto
e assim se proclamou
súdito da cidade
senhor da dor e da saudade
Embora no calendário do dia
eu não veja o último verão
sinto os 33 poetas
com seus violões velhos
e gastos
tomarem de assalto
o dia

Francisco Orban é poeta, jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Começou com os livros Sobrado das horas (Taurus-Timbre, 1990), prefaciado por Antonio Houaiss, e Cesto das canções com pássaros (Leviatã, 1994). Publicou em 2001 o livro Recomendações aos sonhadores, Prêmio Mar Absoluto – Cecília Meireles, concedido pela União Brasileira de Escritores. Dois anos depois, recebeu o Prêmio Walmir Ayala (UBE) por Estaleiros de vento (Ed. Orobó). Seguiu-se em 2004 a fábula infanto-juvenil O cavalinho de água, adotada pelo Programa Nacional do Livro Didático-SP. Seu penúltimo livro, Os anzóis da noite, foi lançado pela Ed. Booklink em 2006, ano em que Estaleiros de vento tornou-se um dos finalistas do Prêmio Jabuti. Lançou em dezembro de 2008 Terraço das estações. A Ed. Kazuá reuniu toda a obra com o título de No país dos estaleiros. Sua poesia tem sido elogiada, entre outros, por Geraldo Carneiro, Antonio Carlos Secchin, Alexei Bueno e André Seffrin.




Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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