Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o PaÃs em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da polÃtica o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.
É a reforma polÃtica, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores polÃticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antÃdoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para "salvar a polÃtica" e "resgatar o sistema", mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.
Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para "melhorar a polÃtica". O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.
Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e polÃtica. Falamos em "reforma polÃtica" quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor à s exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em "reforma da polÃtica" quando quisermos postular que o modo como se faz polÃtica precisa ser alterado.
Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.
Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas polÃticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão polÃtica geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da provÃncia. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio polÃtico ou administrativo.
O sistema polÃtico brasileiro não parece funcionar bem. A "classe polÃtica" não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituÃdos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.
O problema a resolver nesta fase crÃtica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos polÃticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.
Não há reforma polÃtica que possa reduzir o nÃvel de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo polÃtico imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difÃcil imaginar como é que o PaÃs encontrará eixo.
Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aà dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.
Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema polÃtico derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda "pura", radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do PaÃs.
Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma polÃtica, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a polÃtica (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma "classe polÃtica" mais qualificada em termos intelectuais e ético-polÃticos.
Avanços polÃticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, à s interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema polÃtico pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria polÃtica e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp
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