Em um texto preparado como conferência para um seminário organizado pelo Tribunal Regional Eleitoral da Bahia em 23.11.2017, o cientista polÃtico e professor da UFBA Paulo Fábio Dantas Neto fez uma análise da situação polÃtica brasileira que merece ser conhecida.
Seu foco é a reforma polÃtica, tema sempre alardeado como cataplasma universal para os males que nos afligem. Paulo Fábio conhece o tema como poucos, graças à s décadas de estudo acadêmico e de militância polÃtica. Tem para si que é preciso caminhar na "contramão de certo senso comum que se formou no Brasil" e que apresenta o sistema polÃtico brasileiro como falimentar. Para ele, em nosso sistema, ancorado na Constituição de 88, "há mais a conservar que a reformar". Apesar disso, continua viva a ideia de que, para termos "polÃticos melhores", seria preciso reformar o sistema. No seu entender, é uma ilusão "supor que eles serão achados ao adotarmos sistemas de governo, de partidos e de eleições diferentes".
A fórmula utilizada pelo professor para ilustrar sua posição é ótima: "os problemas que temos estão em softwares, não no hardware".
O texto, muitÃssimo bem escrito e persuasivo, toca com maestria em um dos nervos principais da confusão polÃtica que se instalou no paÃs. Precisamos mesmo de um novo sistema polÃtico? Se por acaso viermos a encontrá-lo (coisa que não se pode dar como lÃquida e certa), temos como assegurar que ele será melhor que o atual e que, por isso, produzirá uma "classe polÃtica" de superior qualidade, sem os vÃcios exibidos pelos polÃticos hoje existentes? E mais: podemos dar esse salto para um novo sistema de uma só vez, como uma espécie de refundação completa da democracia representativa, ou o mais indicado é seguir por uma trilha progressiva que saiba separar o joio do trigo e vá corrigindo o que se mostrar inadequado?
No correr do texto de Paulo Fábio, encontramos uma boa resposta para tais dilemas.
Ele não acredita em reformas salvacionistas, feitas de uma vez por todas, em bloco, indiferentes ao que há de valor no hardware. Prefere depositar suas esperanças na polÃtica democrática, em sua capacidade de decifrar enigmas, desatar nós e ultrapassar montanhas tidas como inexpugnáveis.
A análise que nos apresenta não é adversária da reforma, mas pensa a reforma de outra maneira. Ajustes não somente são necessários como vem sendo introduzidos ao longo do tempo, como ocorreu, por exemplo, com as modificações derivadas da modesta reforma eleitoral aprovada no Congresso Nacional há dois ou três meses, que sinaliza uma rota: "reformar, a cada momento, o que for praticável, em termos polÃticos, pois nenhuma convicção doutrinária é válida se não puder ser viabilizada democraticamente, logo, politicamente".
Não se trataria, portanto, de uma falência do sistema, mas da necessidade de ajustes e correções.
Paulo Fábio sabe que o eleitorado está insatisfeito com o sistema, a polÃtica e os polÃticos. As ruas de 2013 reverberaram essa insatisfação, que só tem feito crescer. A culpa, porém, não cabe ao sistema em sentido estrito. Parte importante dos problemas que irritam os cidadãos vem dos governos e da dimensão fiscal do Estado. São, como diz o professor da UFBA, "os duros efeitos de polÃticas públicas (softwares) mal implementadas", cujo financiamento tornou-se problemático. Além disso, o eleitorado fala mal da elite polÃtica, mas não vê que o problema está nos partidos polÃticos, que exibem "um padrão de interação polÃtica de má qualidade", não buscam a sociedade nem conseguem atuar como escolas de quadros ou filtros que selecionem candidatos e representantes. Partidos são parte do sistema, mas não são o sistema. E há, evidentemente, a corrupção, que o sistema facilita mas que se deve antes de tudo a maus hábitos cÃvicos, arrogância e sensação de impunidade.
Sendo difÃcil perceber as árvores em meio ao matagal espesso e pouco compreensÃvel que cerca a polÃtica atual, opta-se pelo discurso mais fácil de que "mudar o hardware é solução para mazelas criadas pelos atores (do estado e da sociedade civil)".
A análise de Paulo Fábio nos ajuda a entender que, em se tratando de sistemas polÃticos democráticos e representativos de massa, o ajuste permanente é a única saÃda: constatada uma falha ou mudando a estrutura da vida, e havendo correlação de forças favorável, reforme-se o que precisar ser reformado. A reforma polÃtica, nesse caso, seria uma espécie de estrela-guia, a ser perseguida de forma realista e incremental.
Da minha parte, tenho insistido muito na ideia de que o dilema polÃtico brasileiro é mais de "cultura polÃtica" que de "institucionalidade". O sistema tem problemas, mas uma alteração de sua estrutura não garante que chegaremos ao paraÃso. A crise pode ser entendida como faz Paulo Fábio: uma "crise de aperfeiçoamento e não de colapso da democracia brasileira".
Há riscos e probabilidades de tropeços, claro. Resistências poderão se sobrepor a esforços renovadores. Os fundamentalismos costumam cegar. Afinal, sentimos os efeitos das toxinas liberadas por embates polÃticos organizados como um "rude e surdo vale-tudo". Os próprios competidores, à esquerda e à direita, não ajudam, muito ao contrário. Batem-se entre si "na contramão da polÃtica, com discursos intolerantes, salvacionistas ou justiceiros", ajudando a que parte da sociedade civil proceda do mesmo jeito.
Mas tudo isso vai além de um fracasso das instituições polÃticas. Se não temos bons polÃticos e bons partidos é porque o que está a pedir reforma é o campo dos atores, que não nascem como filhos naturais das instituições, mas são criados ao longo do tempo, em contato com tradições, ideias e valores mais fortes do que a institucionalidade polÃtica.
Caso a expressão seja adequada, o reformismo de que necessitamos hoje (e também o que podemos cogitar como possÃvel) é um reformismo realista e incremental, e é para ele que nos aponta o texto de Paulo Fábio.
A sociedade atual, no Brasil e no mundo, ingressou em outro patamar e funciona em ritmo acelerado e de constantes modificações. Tudo ficou mais complexo e a polÃtica tem tido dificuldades para se adaptar e adquirir a dose necessária de sofisticação e complexidade.
Mas, como observa Paulo Fábio, na experiência brasileira das últimas décadas, temos uma Constituição que "cumpre um papel de agência" e funciona, em conjunto com os ritos democráticos e o calendário eleitoral, como "âncoras que até aqui nos detém ante o precipÃcio e nos prendem a um terreno áspero, mas real, de uma ampla democracia".
É um terreno que mergulhou em uma crise profunda nas últimas décadas, aqui e no mundo todo. A democracia está em crise, falta confiança social nela. Os cidadãos desconfiam dos polÃticos e de seus ritos, pensam que não são por eles representados. A época é de invenção.
O tema da reforma polÃtica é delicado pois pode reforçar ou abalar as âncoras que ainda nos prendem ao terreno democrático. Não pode ser menosprezado, nem tratado como tábua de salvação.
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Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria polÃtica e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
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