Ao mestre Paulo Niemeyer, a quem se deve este artigo
Mudanças de época podem ser vividas como processos dolorosos, quando a sociedade tarda a trazer ao plano da consciência as novas circunstâncias que silenciosamente, com o império da força dos fatos, passaram a reger o seu mundo da vida. Especialmente quando elas afetam experiências outrora bem-sucedidas, consagradas pela tradição, como no ciclo da modernização que vai de Vargas a Lula, passando pelo governo de JK e pelo regime militar.
Interpretações equÃvocas dos processos em curso conduziram a que o governo Dilma Rousseff, em vez de procurar alternativas à crise que se agravava no seu mandato presidencial - salvo no brevÃssimo recurso ao ministro Joaquim Levy, que seguia outra cartilha econômica -, levasse à radicalização do seu modelo de origem, com o que o exauriu.
O impeachment levou com ele, não importa sua motivação jurÃdico-polÃtica, a tradição da modernização por cima, pela mão do Estado. E tal processo de profundas repercussões no imaginário social brasileiro, levado a efeito sem a unção da vontade popular, embora contasse com apoio congressual, estressou a polÃtica brasileira de modo tal que alguns mais afoitos chegaram a cogitar de que estarÃamos na iminência de uma guerra civil com os "exércitos do MST e dos sem-teto" (MTST).
O abandono do paradigma terceiro-mundista, segunda pele da nossa cultura polÃtica, pelo novo governo, de inclinação claramente liberal, desequilibrou os antagonismos a que estávamos afeitos, como sustentava Gilberto Freyre, no sentido da sua radicalização.
Contudo, sem as ruas e os quartéis, os amigos do fim do mundo ficaram devendo às suas ruminações. A rigor, por fora do alcance de nossas percepções, algo de muito profundo já havia mudado. A Carta de 88 tinha se tornado o mapa de navegação da maioria da sociedade organizada, em especial do Judiciário e da corporação militar - que, aferrada a ela, se manteve serena como guardiã da ordem em meio à balbúrdia -, garantindo a fixação do calendário eleitoral. Com isso trouxe à luz uma multidão de candidatos a presidente, aguando as perspectivas de conflitos generalizados, deixando para trás os tempos de cólera desatados pelo impeachment.
As festas carnavalescas, comemoradas como se não houvesse amanhã, principalmente entre os jovens, testemunharam a virada no espÃrito do tempo.
Sente-se que o espÃrito do tempo mudou, os sinais estão por toda parte, mas exigem reflexão, a fim de que um novo rumo seja perseguido. A modernização sem o moderno, a aceleração por cima, pelo Estado, como realizamos em curto espaço de tempo, a mobilização em escala chinesa da população, uma urbanização sem industrialização, que deixa em seu rastro um enorme contingente de uma população marginalizada, e a expansão da riqueza com o aprofundamento abissal da desigualdade, esse foi o legado negativo que ela nos deixou. As marcas da desigualdade são perpetuadas pelo monopólio da propriedade da terra, que resistiu à s tentativas de democratização do mundo agrário, inclusive das suas relações de trabalho, que não incorporaram os trabalhadores do campo à legislação social, garantida apenas aos urbanos, denegando-lhes o caminho da auto-organização na luta por direitos, submetidos por décadas ao discricionarismo da vontade dos proprietários.
A escola de vida dos subalternos, à medida que a modernização avançava, recortava sua inscrição no mundo entre os pertencentes ao moderno ou ao atraso, embora convivessem nos mesmos cortiços, favelas e outras formas de habitação precárias, desenvolvendo diferentes estratégias de sobrevivência, e, com o tempo, formas culturais próprias, algumas de grande valor, exemplar na obra de um Cartola. O estatuto de apartheid que vigia na prática consolidou estilos de vida, alguns importando numa marginalidade de grande altivez. Quando o jogo do bicho irrompe nesse mundo, ele encontrará seus funcionários e soldadesca aptos ao controle e ao exercÃcio de segmentos da vida popular, influente até na polÃtica.
Do jogo do bicho à s drogas foi um pulo - os barões do jogo recusaram-se a participar do tráfico e permaneceram nos seus negócios tradicionais, organizando-se em cartéis. O tráfico encontrava disponÃvel um mercado de alto valor nas elites, que se tornaram sua clientela de consumidores. O crime tinha sido descoberto como negócio por setores sociais subalternos, uma alternativa rentável para jovens que viviam em situação de exclusão social, uma oportunidade de vida à margem do mercado, que só os credenciava para atividades, a seu ver, humilhantes.
Esse mundo particular, sujeito a um código de violência administrado pelos chefões do tráfico e das milÃcias, em velada associação com a banda podre da polÃcia, participava da vida citadina apenas nas suas margens. Para ele, a cidade era um bem escasso, na conhecida caracterização da socióloga Maria Alice Rezende de Carvalho, exposto à dominação violenta e à precariedade no acesso a bens de cidadania.
O Brasil, de fato, não é para principiantes, pois é desse mundo de carências que irrompem do silêncio das ruas, com a velocidade de um raio, tal como em junho de 2013 - como tantos registraram -, manifestações massivas de caráter nacional em protesto contra o bárbaro assassinato de uma vereadora, Marielle Franco, liderança comunitária da favela da Maré. As ruas, criticadas pela ausência, vão-se fazer então presentes por seus próprios motivos e sua rede de representantes, até então invisÃveis.
O novo espÃrito do tempo deixava cravada a sua marcação de luta por direitos, tendo como ponto de partida os de baixo e sua vida associativa, permitindo entrever em meio à quelas poderosas manifestações os novÃssimos eixos de solidariedade social, como os nascidos da comunicação entre vida popular e universidade, que em boa hora têm sido estabelecidos entre nós. Agora cabe a reflexão levar à frente essas descobertas.
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Sociólogo, PUC-Rio
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Observador polÃtico 2018